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JOGOS

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O CRIME DO PADRE AMARO
O CRIME DO PADRE AMARO


Bristol, 1 de Janeiro de 1880.
EÇA DE QUEIRÒS


I
Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha
morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que passava
entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O
Carlos da Botica - que o detestava - costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face
afogueada de sangue, muito enfartado:
- Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura!
Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe - à hora em que defronte, na casa do doutor
Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro.
Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca,
cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes.
Nunca fora querido das devotas; arrotava no confessionário, e, tendo vivido sempre em
freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera
por isso, logo ao princípio, quase todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão,
tão cheio de lábia!
E quando as beatas, que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos de visões, José Miguéis
escandalizava-as, rosnando:
- Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus! Mais miolo na bola!
As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:
- Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura!
Era miguelista - e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no duma cólera
irracionável:
- Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho.
Nos últimos anos tomara hábitos sedentários, e vivia isolado - com uma criada velha e um cão, o
Joli. O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo
D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho. O pároco tinha um
grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio -
que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.
O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hércules.
- Hércules pela força - explicava sorrindo, Frei pela gula.
No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecer-lhe todos os dias
rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cônegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo
o ritual, o primeiro torrão de terra:
- É a última pitada que lhe dou!
Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o cônego Campos
contou-o à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram
as virtudes do chantre, e afirmou-se com respeito - que sua excelência tinha muita pilhéria!
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o Joli. A criada entrara
com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um
gozo pequeno, extremamente gordo, - que tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das
batinas, ávido dum dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria o
infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão, repelido como um pretendente, toda a
noite uivava pelas ruas. Uma manhã apareceu morto ao pé da Misericórdia; a carroça do estrume levou-o
e, como ninguém tomou a ver o cão, na Praça, o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.
Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco. Dizia-se que era um
homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha
a influências políticas, e o jornal de Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposição, falou com
amargura, citando o Gólgota, no favoritismo da corte e na reação clerical. Alguns padres tinham-se
escandalizado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre.
- Não, não, lá que há favor, há; e que o homem tem padrinhos, tem - disse o chantre. - A mim
quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da Justiça).
Até me diz na carta que o pároco é um belo rapagão. De sorte que - acrescentou sorrindo com satisfação -
depois de Frei Hércules vamos talvez ter Frei Apolo.
Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o pároco novo: era o cônego Dias, que fora nos
primeiros anos do seminário seu mestre de Moral. No seu tempo, dizia o cônego, o pároco era um rapaz
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franzino, acanhado, cheio de espinhas carnais...
- Parece que o estou a ver com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto
bom rapaz! E espertote...
O cônego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordara, o ventre saliente enchialhe
a batina e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas
anedotas de frades lascivos e glutões.
O tio Patrício, o Antigo, negociante da Praça, muito liberal e que quando passava pelos padres
rosnava como um velho cão de fila, dizia às vezes ao vê-lo atravessar a Praça, pesado, ruminando a
digestão, encostado ao guarda-chuva:
- Que maroto! Parece mesmo D. João VI!
O cônego vivia só com uma irmã velha, a Sra. D. Josefa Dias, e uma criada, que todos
conheciam também em Leiria, sempre na rua, entrouxada num xale tingido de negro, e arrastando
pesadamente as suas chinelas de ourelo. O cônego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria
propriedades arrendadas, dava jantares com peru, e tinha reputação o seu vinho duque de 1815. Mas o
fato saliente da sua vida - o fato comentado e murmurado - era a sua antiga amizade com a Sra. Augusta
Caminha, a quem chamavam a S. Joaneira, por ser natural de S. João da Foz. A S. Joaneira morava na
Rua da Misericórdia, e recebia hóspedes. Tinha uma filha, a Ameliazinha, rapariga de vinte e três anos,
bonita, forte, muito desejada.
O cônego Dias mostrara um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica
do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé, exaltou os seus bons estudos no seminário, a sua prudência de
costumes, a sua obediência: gabava-lhe mesmo a voz: "um timbre que é um regalo.'"
- Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa, está a calhar!
Predizia-lhe com ênfase um destino feliz, uma conezia decerto, talvez a glória de um bispado!
E um dia, enfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, criatura servil e calada, uma carta
que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
Era uma tarde de Agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a
construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Lis tinha sido destruído, já
se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e
atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de expropriação; ainda se via o lodoso
caminho da freguesia de Marrazes, que a estrada nova devia desbastar e incorporar; camadas de
cascalho cobriam o chão; e os grossos cilindros de pedra, que acalcam e recamam os macadames,
enterravam-se na terra negra e úmida das chuvas.
Em roda da Ponte a paisagem é larga e tranqüila. Para o lado de onde o rio vem são colinas
baixas, de formas arredondadas, cobertas da rama verde-negra dos pinheiros novos; embaixo, na
espessura dos arvoredos, estão os casais que dão àqueles lugares melancólicos uma feição mais viva e
humana - com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde
se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas
terras baixas entre dois renques de salgueiros pálidos, estende-se até os primeiros areais o campo de
Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de águas abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade;
apenas uma esquina das cantarias pesadas e jesuíticas da Sé, um canto do muro do cemitério coberto de
parietárias, e pontas agudas e negras dos ciprestes; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de
vegetações rebeldes, onde destacam as ruínas do Castelo, todas envolvidas à tarde nos largos vôos
circulares dos mochos, desmanteladas e com um grande ar histórico.
Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco à beira do rio. É um
lugar recolhido, coberto de árvores antigas. Chamam-lhe a Alameda Velha. Ali, caminhando devagar,
falando baixo, o cônego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre ''uma idéia que ela
lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre!'' Amaro pedia-lhe com urgência que lhe arranjasse uma
casa de aluguel, barata, bem situada, e se fosse possível mobilada; falava sobretudo de quartos numa casa
de hóspedes respeitável. "Bem vê o meu caro padre-mestre, dizia Amaro, que era isto o que
verdadeiramente me convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o bastante. O
que é necessário é que a casa seja respeitável, sossegada, central, que a patroa tenha bom gênio e que não
peça mundos e fundos; deixo tudo isto à sua prudência e capacidade, e creia que todos estes favores não
cairão em terreno ingrato. Sobretudo que a patroa seja pessoa acomodada e de boa língua."
- Ora a minha idéia, amigo Mendes, é esta: metê-lo em casa da S. Joaneira! resumiu o cônego
com um grande contentamento. É rica idéia, hem!
- Soberba idéia, disse o coadjutor com a sua voz servil.
- Ela tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto que pode servir de escritório. Tem
boa mobília, boas roupas...
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- Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito.
O cônego continuou:
- É um belo negócio para a S. Joaneira: dando os quartos, roupas, comida, criada, pode muito
bem pedir os seus seis tostões por dia. E depois sempre tem o pároco de casa.
- Por causa da Ameliazinha é que eu não sei - considerou timidamente o coadjutor. - Sim, pode
ser reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor pároco é ainda novo... Vossa senhoria sabe o que são
línguas do mundo.
O cônego tinha parado:
- Ora histórias! Então o padre Joaquim não vive debaixo das mesmas telhas com a afilhada da
mãe? E o cônego Pedroso não vive com a cunhada, e uma irmã da cunhada, que é uma rapariga de
dezenove anos? Ora essa!
- Eu dizia... atenuou o coadjutor.
- Não, não vejo mal nenhum. A S. Joaneira aluga os seus quartos, é como se fosse uma
hospedaria. Então o secretário-geral não esteve lá uns poucos de meses?
- Mas um eclesiástico... insinuou o coadjutor.
- Mais garantias, Sr. Mendes, mais garantias! exclamou o cônego. E parando, com uma atitude
confidencial: - E depois a mim é que me convinha, Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!
Houve um pequeno silêncio. O coadjutor disse, baixando a voz:
- Sim, vossa senhoria faz muito bem à S. Joaneira...
- Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse o cônego. E com uma entonação
terna, risonhamente paternal: - que ela é merecedora! é merecedora. Boa até ali, meu amigo! - Parou,
esgazeando os olhos: - Olhe que dia em que eu não lhe apareça pela manhã às nove em ponto, está num
frenesi! Oh criatura! digo-lhe eu, a senhora rala-se sem razão. Mas então, é aquilo! Pois quando eu tive a
cólica o ano passado! Emagreceu, Sr. Mendes! E depois não há lembrança que não tenha! Agora, pela
matança do porco, o melhor do animal é para o padre santo, você sabe? é como ela me chama.
Falava com os olhos luzidos, uma satisfação babosa.
- Ah, Mendes! acrescentou, é uma rica mulher!
- E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
- Lá isso! exclamou o cônego parando outra vez. Lá isso! Bem conservada até ali! Pois olhe que
não é uma criança! Mas nem um cabelo branco, nem um, nem um só! E então que cor de pele! - E mais
baixo, com um sorriso guloso: - E isto aqui! ó Mendes, e isto aqui! - Indicava o lado do pescoço debaixo
do queixo, passando-lhe devagar por cima a sua mão papuda: - É uma perfeição! E depois mulher de
asseio, muitíssimo asseio! E que lembrançazinhas! Não há dia que me não mande o seu presente! é o
covilhete de geléia, é o pratinho de arroz-doce, é a bela morcela de Arouca! Ontem me mandou ela uma
torta de maçã. Ora havia de você ver aquilo! A maçã parecia um creme! Até a mana Josefa disse: "Está
tão boa que parece que foi cozida em água benta!" - E pondo a mão espalmada sobre o peito: - São coisas
que tocam a gente cá por dentro, Mendes! Não, não é lá por dizer, mas não há outra.
O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.
- Eu bem sei, disse o cônego parando de novo e tirando lentamente as palavras, eu bem sei que
por ai rosnam, rosnam... Pois é uma grandíssima calúnia! O que é, é que eu tenho muito apego àquela
gente. Já o tinha em tempo do marido. Você bem o sabe, Mendes.
O coadjutor teve um gesto afirmativo.
- A S. Joaneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o
cônego batendo no chão fortemente com a ponteira do guarda. sol.
- As línguas do mundo são venenosas, senhor cônego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E
depois dum silêncio, acrescentou baixo: - Mas aquilo a vossa senhoria deve-lhe sair caro!
- Pois aí está, meu amigo! Imagine você que desde que o secretário-geral se foi embora a pobre
da mulher tem tido a casa vazia: eu é que tenho dado para a panela, Mendes!
- Que ela tem uma fazendita, considerou o coadjutor.
- Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as décimas, os jornais! Por
isso digo eu, o pároco é uma mina. Com os seis tostões que ele der, com que eu ajudar, com alguma coisa
que ela tire da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um alívio, Mendes.
- É um alívio, senhor cônego! repetiu o coadjutor.
Ficaram calados. A tarde descaía muito límpida; o alto céu tinha uma pálida cor azul; o ar estava
imóvel. Naquele tempo o rio ia muito vazio; pedaços de areia reluziam em seco; e a água baixa arrastavase
com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos.
Duas vacas, guardadas por uma rapariga, apareceram então pelo caminho lodoso que do outro
lado do rio, defronte da alameda, corre junto de um silvado; entraram no rio devagar, e estendendo o
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pescoço pelado da canga, bebiam de leve, sem ruído; a espaços erguiam a cabeça bondosa, olhavam em
redor com a passiva tranqüilidade dos seres fartos - e fios de água, babados, luzidios à luz, pendiam-lhes
dos cantos do focinho. Com a inclinação do sol a água perdia a sua claridade espelhada, estendiam-se as
sombras dos arcos da Ponte. Do lado das colinas ia subindo um crepúsculo esfumado, e as nuvens cor de
sangüínea e cor de laranja que anunciam o calor faziam, sobre os lados do mar, uma decoração muito rica.
- Bonita tarde! disse o coadjutor.
O cônego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:
- Vamo-nos chegando às Ave-Marias, hem?
Quando, daí a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o cônego parou, e voltando-se para o
coadjutor:
- Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S. Joaneira! É uma pechincha para
todos.
- Uma grande pechincha! disse respeitosamente o coadjutor. Uma grande pechincha!
E entraram na igreja, persignando-se.
II
Uma semana depois, soube-se que o novo pároco devia chegar pela diligência de Chão de
Maçãs, que traz o correio à tarde; e desde as seis horas o cônego Dias e o coadjutor passeavam no Largo
do Chafariz, à espera de Amaro.
Era então nos fins de Agosto. Na longa alameda macadamizada que vai junto do rio, entre os
dois renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na
correnteza de casebres pobres, velhas fiavam à porta; crianças sujas brincavam pelo chão, mostrando seus
enormes ventres nus; e galinhas em redor iam picando vorazmente as imundícies esquecidas. Em redor do
chafariz cheio de ruído, onde os cântaros arrastam sobre a pedra, criadas ralham, soldados, com a sua
fardeta suja, enormes botas cambadas, namoravam, meneando a chibata de junco; com o seu cântaro
bojudo de barro equilibrado à cabeça sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares, meneando os quadris; e
dois oficiais ociosos, com a farda desapertada sobre o estômago, conversavam, esperando, a ver quem
viria. A diligência tardava. Quando o crepúsculo desceu, uma lamparina luziu no nicho do santo, por
cima do Arco; e defronte iam-se iluminando uma a uma, com uma luz soturna, as janelas do hospital.
Já tinha anoitecido quando a diligência, com as lanternas acesas, entrou na Ponte ao trote
esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e veio parar ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do
Cruz; o caixeiro do tio Patrício partiu logo a correr para a Praça com o maço dos Diários Populares; o tio
Baptista, o patrão, com o cachimbo negro ao canto da boca, desatrelava, praguejando tranqüilamente; e
um homem que vinha na almofada, ao pé do cocheiro, de chapéu alto e comprido capote eclesiástico,
desceu cautelosamente, agarrando-se às guardas de ferro dos assentos, bateu com os pés no chão para os
desentorpecer, e olhou em redor.
- Oh, Amaro! gritou o cônego, que se tinha aproximado, oh ladrão!
- Oh, padre-mestre! disse o outro com alegria. E abraçaram-se, enquanto o coadjutor, todo
curvado, tinha o barrete na mão.
Daí a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praça, entre a corpulência
vagarosa do cônego Dias e a figura esguia do coadjutor, um homem um pouco curvado, com um capote
de padre. Soube- se que era o pároco novo; e disse-se logo na botica que era uma boa figura de homem. O
João Bicha levava adiante um baú e um saco de chita; e como aquela hora já estava bêbedo, ia
resmungando o Bendito.
Eram quase nove horas, a noite cerrara. Em redor da Praça as casas estavam já adormecidas: das
lojas debaixo da arcada saía a luz triste dos candeeiros de petróleo, entreviam-se dentro figuras
sonolentas, caturrando em cavaqueira, ao balcão. As ruas que vinham dar à Praça, tortuosas, tenebrosas,
com um lampião mortiço, pareciam desabitadas. E no silêncio o sino da Sé dava vagarosamente o toque
das almas.O cônego Dias ia explicando pachorrentamente ao pároco "o que lhe arranjara". Não lhe tinha
procurado casa: seria necessário comprar mobília, buscar criada, despesas inumeráveis! Parecera-lhe
melhor tomar- lhe quartos numa casa de hóspedes respeitável, de muito conchego - e nessas condições (e
ali estava o amigo coadjutor que o podia dizer), não havia como a da S. Joaneira. Era bem arejada, muito
asseio, a cozinha não deitava cheiro; tinha lá estado o secretário-geral e o inspetor dos estudos; e a S.
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Joaneira (o Mendes amigo conhecia-a bem) era uma mulher temente a Deus, de boas contas, muito
econômica e cheia de condescendências...
- Você está ali como em sua casa! Tem o seu cozido, prato de meio, café...
- Vamos a saber, padre-mestre: preço? disse o pároco.
- Seis tostões. Que diabo! é de graça! Tem um quarto, tem uma saleta...
- Uma rica saleta, comentou o coadjutor respeitosamente.
- E é longe da Sé? perguntou Amaro.
- Dois passos. Pode-se ir dizer missa de chinelos. Na casa há uma rapariga, continuou com a sua
voz pausada o cônego Dias. E a filha da S. Joaneira. Rapariga de vinte e dois anos. Bonita. Sua pontinha
de gênio, mas bom fundo... Aqui tem você a sua rua.
Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da velha Misericórdia, com
um lampião lúgubre ao fundo.
- E aqui tem você o seu palácio! disse o cônego, batendo na aldraba de uma porta esguia.
No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam saliência, com os seus
arbustos de alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas de madeira; as janelas de cima,
pequeninas, eram de peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades, fazia lembrar uma lata amolgada.
A S. Joaneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e sardenta, alumiava com um
candeeiro de petróleo; e a figura da S. Joaneira destacava plenamente na luz sobre a parede caiada. Era
gorda, alta, muito branca, de aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham já em redor a pele
engelhada; os cabelos arrepiados, com um enfeite escarlate, eram já raros aos cantos da testa e no começo
da risca; mas percebiam-se uns braços rechonchudos, um colo copioso e roupas asseadas.
- Aqui tem a senhora o seu hóspede, disse o cônego subindo.
- Muita honra em receber o senhor pároco! muita honra! Há-de vir muito cansado! por força!
Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrauzinho.
Levou-o para uma sala pequena, pintada de amarelo, com um vasto canapé de palhinha
encostado à parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta verde.
- É a sua sala, senhor pároco, disse a S. Joaneira. Para receber, para espairecer... Aqui -
acrescentou abrindo uma porta - é o seu quarto de dormir. Tem a sua cômoda, o seu guarda-roupa... -
Abriu os gavetões, gabou a cama batendo a elasticidade dos colchões. - Uma campainha para chamar
sempre que queira... As chavinhas da cômoda estão aqui... Se gosta de travesseirinho mais alto... Tem um
cobertor só, mas querendo...
- Está bem, está tudo muito bem, minha senhora, - disse o pároco com a sua voz baixa e suave.
- É pedir! O que há, da melhor vontade...
- Oh criatura de Deus! interrompeu o cônego jovialmente, o que ele quer agora é cear!
- Também tem a ceiazinha pronta. Desde as seis que está o caldo a apurar...
E saiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:
- Vá, Ruça, mexe-te, mexe-te!...
O cônego sentou-se pesadamente no canapé, e sorvendo a sua pitada:
- É contentar, meu rico. Foi o que se pôde arranjar.
- Eu estou bem em toda parte, padre-mestre, disse o pároco, caçando os seus chinelos de ourelo.
Olha o seminário!... E em Feirão! Caía- me a chuva na cama.
Para o lado da Praça, então, sentiu-se o toque de cometas.
- Que é aquilo? perguntou Amaro, indo à janela.
- As nove e meia, o toque de recolher.
Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candeeiro esmorecia. A noite estava muito negra. E
havia sobre a cidade um silêncio côncavo, de abóbada.
Depois das cometas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado do quartel; por baixo da
janela um soldado, que se demorara nalguma viela do Castelo, passou correndo; e das paredes da
Misericórdia saía constantemente o agudo piar das corujas.
- É triste isto, disse Amaro.
Mas a S. Joaneira gritou de cima:
- Pode subir, senhor cônego! Está o caldo na mesa!
- Ora vá, vá, que você deve estar a cair de fome, Amaro! - disse o cônego, erguendo-se muito
pesado.
E detendo um momento o pároco, pela manga do casaco:
- Vai você ver o que é um caldo de galinha feito cá pela senhora! Da gente se babar!...
No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa alegrava, com a sua
toalha muito branca, a louça, os copos reluzindo à luz forte dum candeeiro de abajur verde. Da terrina
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subia o vapor cheiroso do caldo e, na larga travessa a galinha gorda, afogada num arroz úmido e branco,
rodeada de nacos de bom paio, tinha uma aparência suculenta de prato morgado. No armário envidraçado,
um pouco na sombra, viam-se cores claras de porcelana; a um canto, ao pé da janela, estava o piano,
coberto com uma colcha de cetim desbotado. Na cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro fresco que vinha
dum tabuleiro de roupa lavada, o pároco esfregou as mãos, regalado.
- Para aqui, senhor pároco, para aqui, disse a S. Joaneira. Dai pode vir-lhe frio. - Foi fechar as
portadas das janelas; chegou-lhe um caixão de areia para as pontas dos cigarros. - E o senhor cônego toma
um copinho de geléia, sim?
- Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente o cônego, sentando- se e desdobrando o
guardanapo.
A S. Joaneira, no entanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o pároco, que, com a cabeça sobre
o prato, comia em silêncio o seu caldo, soprando a colher. Parecia bem-feito; tinha um cabelo muito
preto, levemente anelado. O rosto era oval, de pele trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com
pestanas compridas.
O cônego, que não o via desde o seminário, achava-o mais forte, mais viril.
- Você era enfezadito...
- Foi o ar da serra, dizia o pároco, fez-me bem! - Contou então a sua triste existência em Feirão,
na alta Beira, durante a aspereza do Inverno, só com pastores. O cônego deitava-lhe o vinho de alto,
fazendo-o espumar.
- Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! Desta gota não pilhava você no seminário.
Falaram do seminário.
- Que será feito do Rabicho, o despenseiro? disse o cônego.
- E do Carocho, que roubava as batatas?
Riram; e bebendo, na alegria das reminiscências, recordavam as histórias de então, o catarro do
reitor, e o mestre do cantochão que deixara um dia cair do bolso as poesias obscenas de Bocage.
- Como o tempo passa, como o tempo passa! diziam.
A S. Joaneira então pôs na mesa um prato covo com maçãs assadas.
- Viva! Não, lá nisso também eu entro! exclamou logo o cônego. A bela maçã assada! nunca me
escapa! Grande dona de casa, meu amigo, rica dona de casa, cá a nossa S. Joaneira! Grande dona de casa!
Ela ria; viam-se os seus dois dentes de diante, grandes e chumbados. Foi buscar uma garrafa de
vinho do Porto; pôs no prato do cônego, com requintes devotos, uma maçã desfeita, polvilhada de açúcar;
e batendo-lhe nas costas com a mão papuda e mole:
- Isto é um santo, senhor pároco, isto é um santo! Ai! devo-lhe muitos favores!
- Deixe falar, deixe falar, dizia o cônego. - Espalhava-se-lhe no rosto um contentamento baboso.
- Boa gota! acrescentou, saboreando o seu cálice de Porto. Boa gota!
- Olhe que ainda é dos anos da Amélia, senhor cônego.
- E onde está ela, a pequena?
- Foi ao Morenal com a D. Maria. Aquilo naturalmente foram para casa das Gansosos passar a
noite.
- Cá esta senhora é proprietária, explicou o cônego, falando do Morenal. É um condado! - Ria
com bonomia, e os seus olhos luzidios percorriam ternamente a corpulência da S. Joaneira.
- Ah, senhor pároco, deixe falar, é uma nesga de terra... disse ela.
Mas vendo a criada encostada à parede, sacudida com aflições de tosse:
- Ó mulher, vai tossir lá para dentro! credo!
A moça saiu, pondo o avental sobre a boca.
- Parece doente, coitada, observou o pároco.
Muito achacada, muito!... A pobre de Cristo era sua afilhada, órfã, e estava quase tísica. Tinha-a
tomado por piedade...
- E também porque a criada que cá tinha foi para o hospital, a desavergonhada... Meteu-se aí com
um soldado!...
O padre Amaro baixou devagar os olhos - e trincando migalhas, perguntou se havia muitas
doenças naquele Verão.
- Colerinas, das frutas verdes, rosnou o cônego. Metem-se pelas melancias, depois tarraçadas de
água... E suas febritas...
Falaram então das sezões do campo, dos ares de Leiria.
- Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo,
tenho saúde, tenho!
- Ai, Nosso Senhor lha conserve, que nem sabe o bem que é! exclamou a S. Joaneira. - Contou
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imediatamente a grande desgraça que tinha em casa, uma irmã meio idiota entrevada havia dez anos! Ia
fazer sessenta anos... No Inverno viera-lhe um catarro, e desde então, coitadinha, definhava, definhava...
- Há bocado, ao fim da tarde, teve ela um ataque de tosse! Pensei que se ia embora. Agora
descansou mais...
Continuou a falar "daquela tristeza", depois da sua Ameliazinha, das Gansosos, do antigo
chantre, da carestia de tudo - sentada, com o gato no colo, rolando com os dois dedos, monotonamente,
bolinhas de pão. O cônego, pesado, cerrava as pálpebras; tudo na sala parecia ir gradualmente
adormecendo; a luz do candeeiro esmorecia.
- Pois senhores, disse por fim o cônego mexendo-se, isto são horas!
O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos deu as graças.
- O senhor pároco quer lamparina? perguntou cuidadosamente a S. Joaneira.
- Não, minha senhora. Não uso. Boas noites!
E desceu devagar, palitando os dentes.
A S. Joaneira alumiava no patamar, com o candeeiro. Mas nos primeiros degraus o pároco parou,
e voltando-se, afetuosamente:
- É verdade, minha senhora, amanhã é sexta-feira, é jejum...
- Não, não, acudiu o cônego que se embrulhava na capa de lustrina, bocejando, você amanhã
janta comigo. Eu venho por cá, vamos ao chantre, á Sé, e por aí... E olhe que tenho lulas. É um milagre,
que isto aqui nunca há peixe.
A S. Joaneira tranqüilizou logo o pároco.
- Ai, é escusado lembrar os jejuns, senhor pároco. Tenho o maior escrúpulo!
- Eu dizia, explicou o pároco, porque infelizmente hoje em dia ninguém cumpre.
- Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ela. - Mas eu! credo!... A salvação da minha alma
antes de tudo!
A campainha embaixo, então, retiniu fortemente.
- Há-de ser a pequena, disse a S. Joaneira. Abre, Ruça!
A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.
- És tu, Amélia?
Uma voz disse adeusinho! adeusinho! E apareceu, subindo quase a correr, com os vestidos um
pouco apanhados adiante, uma bela rapariga, forte, alta, bem-feita, com uma manta branca pela cabeça e
na mão um ramo de alecrim.
- Sobe, filha. Aqui está o senhor pároco. Chegou agora à noitinha, sobe!
Amélia tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus de cima, onde o pároco
ficara, encostado ao corrimão. Respirava fortemente de ter corrido; vinha corada; os seus olhos vivos e
negros luziam; e saía dela uma sensação de frescura e de prados atravessados.
O pároco desceu, cingido ao corrimão, para a deixar passar, murmurando boas-noites! com a
cabeça baixa. O cônego, que descia atrás, pesadamente, tomou o meio da escada, diante de Amélia:
- Então isto são horas, sua brejeira?
Ela teve um risinho, encolheu-se.
- Ora vá-se encomendar a Deus, vá! disse batendo-lhe no rosto devagarinho com a sua mão
grossa e cabeluda.
Ela subiu a correr, enquanto o cônego, depois de ir buscar o guarda- sol à saleta, saía, dizendo à
criada, que erguia o candeeiro sobre a escada:
- Está bem, eu vejo, não apanhes frio, rapariga. Então às oito, Amaro! Esteja a pé! Vai-te,
rapariga, adeus! Reza à Senhora da Piedade que te seque essa catarreira.
O pároco fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de
linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga dum Cristo crucificado. Amaro abriu o seu
Breviário, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e
então por cima, sobre o teto, através das orações rituais que maquinalmente ia lendo, começou a sentir o
tique-tique das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se.
.
III
Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marquesa de Alegros. Seu pai era criado do
marquês; a mãe era criada de quarto; quase uma amiga da senhora marquesa. Amaro conservava ainda um
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livro, o Menino das Selvas, com bárbaras imagens coloridas que tinha escrito na primeira página branca:
À minha muito estimada criada Joana Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido, - Marquesa de
Alegros. Possuía também um dagtterreótipo de sua mãe: era uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas,
a boca larga e sensualmente fendida, e uma cor ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a
mãe, que fora sempre tão sã, sucumbiu, daí a um ano, a uma tísica de laringe. Amaro completara então
seis anos. Tinha uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio,
merceeiro abastado do bairro da Estrela. Mas a senhora marquesa ganhara amizade a Amaro; conservou-o
em sua casa, por uma adoção tácita: e começou, com grandes escrúpulos, a vigiar a sua educação.
A marquesa de Alegros ficara viúva aos quarenta e três anos, e passava a maior parte do ano
retirada na sua quinta de Carcavelos. Era uma pessoa passiva, de bondade indolente, com capela em casa,
um respeito devoto pelos padres de S. Luís, sempre preocupada dos interesses da Igreja. As suas duas
filhas, educadas no receio do céu e nas preocupações da Moda, eram beatas e faziam o chique falando
com igual fervor da humildade cristã e do último figurino de Bruxelas. Um jornalista de então dissera
delas: - Pensam todos os dias na toalete com que hão-de entrar no Paraíso.
No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alamedas aristocráticas onde os pavões
gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então ocupações avidamente
aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da freguesia, bordavam frontais para os altares da igreja. De
Maio a Outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros
beatos e doces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a
virtude dos santos. Deus era o seu luxo de Verão.
A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida eclesiástica. A sua figura
amarelada e magrita pedia aquele destino recolhido: era já afeiçoado às coisas de capela, e o seu encanto
era estar aninhado ao pé das mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de santas. A senhora
marquesa não o quis mandar ao colégio porque receava a impiedade dos tempos, e as camaradagens
imorais. O capelão da casa ensinava- lhe o latim, e a filha mais velha, a Sra. D. Luísa, que tinha um nariz
de cavalete e lia Chateaubriand, dava-lhe lições de francês e de geografia.
Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha-morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol.
Se à tarde acompanhava a senhora marquesa às alamedas da quinta, quando ela descia pelo braço do
padre Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, mono, muito encolhido, torcendo com as
mãos úmidas o forro das algibeiras, - vagamente assustado das espessuras de arvoredos e do vigor das
relvas altas.
Tomou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé de uma ama velha. As criadas de resto
feminizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio delas, beijocavam-no, faziam-lhe cócegas, e
ele rolava por entre as saias, em contato com os corpos, com gritinhos de contentamento. Às vezes,
quando a senhora marquesa saía, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas; ele abandonava-se, meio
nu, com os seus modos lânguidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas, além
disso, utilizavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tomou-se
enredador, muito mentiroso.
Aos onze anos ajudava à missa, e aos sábados limpava a capela. Era o seu melhor dia; fechava-se
por dentro, colocava os santos em plena luz em cima duma mesa, beijando-os com ternuras devotas e
satisfações gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santíssimo, ia tirando a traça dos
vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Mártires.
No entanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miúdo e amarelado; nunca dava uma boa risada;
trazia sempre as mãos nos bolsos. Estava constantemente metido nos quartos das criadas, remexendo as
gavetas; bulia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente preguiçoso, e custava de
manhã arrancá-lo a uma sonolência doentia em que ficava amolecido, todo embrulhado nos cobertores e
abraçado ao travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca.
···
Num domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marquesa
de repente caiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu testamento um legado para que Amaro, o filho
da sua criada Joana, entrasse aos quinze anos no seminário e se ordenasse. O padre Liset ficava
encarregado de realizar esta disposição piedosa. Amaro tinha então treze anos.
As filhas da senhora marquesa deixaram logo Carcavelos e foram para Lisboa, para a casa da
Sra. D. Bárbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrela. O
merceeiro era um homem obeso, casado com a filha dum pobre empregado público, que o aceitara para
sair da casa do pai, onde a mesa era escassa, ela devia fazer as camas e nunca ia ao teatro. Mas odiava o
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marido, as suas mãos cabeludas, a loja, o bairro, e o seu apelido de Sra. Gonçalves. O marido,
esse adorava-a como a delícia da sua vida, o seu luxo; carregava-a de jóias e chamava-lhe a sua duquesa.
Amaro não encontrou ali o elemento feminino e carinhoso, em que estivera tepidamente
envolvido em Carcavelos. A tia quase não reparava nele; passava os seus dias lendo romances, as análises
dos teatros nos jornais, vestida de seda, coberta de pó-de-arroz, o cabelo em cachos, esperando a hora em
que passava debaixo das janelas, puxando os punhos, o Cardoso, galã da Trindade. O merceeiro
apropriou-se então de Amaro como duma utilidade imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer
logo às cinco horas da manhã; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul, molhando à pressa o pão na
chávena de café, ao canto da mesa da cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o cebola e o tio
chamava-lhe o burro. Pesava-lhes até o magro pedaço de vaca que ele comia ao jantar. Amaro emagrecia,
e todas as noites chorava.
Sabia já que aos quinze anos devia entrar no seminário. O tio todos os dias lho lembrava:
- Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro. Em tendo quinze anos, é para o
seminário. Não tenho obrigação de carregar contigo! Besta na argola, não está nos meus princípios!
E o rapaz desejava o seminário, como um libertamento.
Nunca ninguém consultara as suas tendências ou a sua vocação. Impunham-lhe uma sobrepeliz;
a sua natureza passiva, facilmente dominável, aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe
desagradava ser padre. Desde que saíra das rezas perpétuas de Carcavelos conservara o seu medo do
Inferno, mas perdera o fervor pelos santos; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora
marquesa, pessoas brancas e bem tratadas, que comiam ao lado das fidalgas, e tomavam rapé em caixas
de ouro; e convinha-lhe aquela profissão em que se cantam bonitas missas, se comem doces finos, se fala
baixo com as mulheres, - vivendo entre elas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante, - e se
recebem presentes em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um anel de rubi no dedo mínimo;
monsenhor Saavedra com os seus belos óculos de ouro, bebendo aos goles o seu copo de Madeira. As
filhas da senhora marquesa bordavam-lhes chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fora padre na Baia,
viajara, estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas que cheiravam a águade-
colônia, apoiadas ao castão de ouro da bengala, todo rodeado de senhoras em êxtase e cheias dum
riso beato, cantava, para as entreter, com a sua bela voz:
Mulatinha da Baia,
Nascida no Capujá...
Um ano antes de entrar para o seminário, o tio fê-lo ir a um mestre para se afirmar mais no latim,
e dispensou-o de estar ao balcão. Pela primeira vez na sua existência, Amaro possuiu liberdade. Ia só à
escola, passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exército de infantaria, espreitou às portas dos cafés, leu os
cartazes dos teatros. Sobretudo começara a reparar muito nas mulheres - e vinham-lhe, de tudo o que via,
grandes melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando voltava da escola, ou aos domingos depois
de ter ido passear com o caixeiro ao jardim da Estrela. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma
janelinha num vão sobre os telhados. Encostava-se ali olhando, e via parte da cidade baixa, que a pouco e
pouco se alumiava de pontos de gás: parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida
que não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrasados de luz, e mulheres que arrastam rugeruges
de sedas pelos peristilos dos teatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente apareciam-lhe
no fundo negro da noite formas femininas, por fragmentos, uma perna com botinas de duraque e a meia
muito branca, ou um braço roliço arregaçado até ao ombro... Mas embaixo, na cozinha, a criada
começava a lavar a louça, cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe então desejos
de descer, ir roçar-se por ela, ou estar a um canto a vê-la escaldar os pratos; lembravam-lhe outras
mulheres que vira nas vielas, de saias engomadas e ruidosas, passeando em cabelo, com botinas
cambadas: e, da profundidade do seu ser, subia-lhe uma preguiça, como que a vontade de abraçar alguém,
de não se sentir só. Julgava-se infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo:
- Então tu não estudas, mariola?
E daí a pouco, sobre o Tito Lívio cabeceando de sono, sentindo-se desgraçado, roçando os
joelhos um contra o outro, torturava o dicionário.
Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de padre, porque não poderia
casar. Já as convivências da escola tinham introduzido na sua natureza efeminada curiosidades,
corrupções. Às escondidas fumava cigarros: emagrecia e andava mais amarelo.
···
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Entrou no seminário. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um pouco úmidos, as
lâmpadas tristes, os quartos estreitos e gradeados, as batinas negras, o silêncio regulamentado, o toque das
sinetas - deram-lhe uma tristeza lúgubre, aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito agradou.
Começaram a tratá-lo por tu, a admiti-lo, durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo, às
conversas em que se contavam anedotas dos mestres, se caluniava o reitor, e perpetuamente se
lamentavam as melancolias da clausura: porque quase todos falavam com saudade das existências livres
que tinham deixado: os da aldeia não podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias
de cantigas e de abraços, as filas da boiada que recolhe, enquanto um vapor se exala dos prados; os
que vinham das pequenas vilas lamentavam as ruas tortuosas e tranqüilas de onde se namoravam as
vizinhas, os alegres dias de mercado, as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim. Não lhes
bastava o pátio do recreio lajeado, com as suas árvores definhadas, os altos muros sonolentos, o
monótono jogo da bola: abafavam na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Inácio, onde se faziam as
meditações da manhã e se estudavam à noite as lições; e invejavam todos os destinos livres ainda os mais
humildes - o almocreve que viam passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que
ia cantarolando ao áspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu
alforje escuro.
Da janela dum corredor via-se uma volta de estrada: à tardinha uma diligência costumava passar,
levantando a poeira, entre os estalidos do chicote, ao trote das três éguas, carregadas de bagagem;
passageiros alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados, sopravam o fumo dos charutos; quantos
olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando com eles para as alegres vilas e para as cidades, pela
frescura das madrugadas ou sob a claridade das estrelas!
E no refeitório, diante do escasso caldo de hortaliça, quando o regente de voz grossa começava a
ler monotonamente as cartas de algum missionário da China ou as Pastorais do senhor bispo, quantas
saudades dos jantares de família! As boas postas de peixe! O tempo da matança! Os rijões quentes que
chiam no prato! Os sarrabulhos cheirosos!
Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do rosto enfastiado da tia
coberto de pó-de-arroz; mas insensivelmente pôs-se também a ter saudades dos seus passeios aos
domingos, da claridade do gás e das voltas da escola, com os livros numa correia, quando
parava encostado à vitrina das lojas a contemplar a nudez das bonecas!
Lentamente, porém, com a sua natureza incaracterística, foi entrando como uma ovelha indolente
na regra do seminário. Decorava com regularidade os seus compêndios; tinha uma exatidão prudente nos
serviços eclesiásticos; e calado, encolhido, curvando-se muito baixo diante dos lentes - chegou a ter boas
notas.
Nunca pudera compreender os que pareciam gozar o seminário com beatitude e maceravam os
joelhos, ruminando, com a cabeça baixa, textos da Imitação ou de Santo Inácio; na capela, com os olhos
em alvo, empalideciam de êxtase; mesmo no recreio, ou nos passeios, iam lendo algum volumezinho de
Louvores a Maria; e cumpriam com delícia as regras mais miúdas - até subir só um degrau de cada vez,
como recomenda S. Boaventura. A esses o seminário dava um antegosto do Céu: a ele só lhe oferecia as
humilhações duma prisão, com os tédios duma escola.
Não compreendia também os ambiciosos; os que queriam ser caudatários dum bispo, e nas altas
salas dos paços episcopais erguer os reposteiros de velho damasco; os que desejavam viver nas cidades
depois de ordenados, servir uma Igreja aristocrática, e, diante das devotas ricas que se acumulam no
frufru das sedas sobre o tapete do altar-mor, cantar com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fora da
Igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lajeadas o tlintlim dum sabre; ou a farta vida da
lavoura, e desde a madrugada, com um chapéu desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar
ordens nas largas eiras cheias de medas, apear à porta das adegas! E, a não ser alguns devotos, todos, ou
aspirando ao sacerdócio ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza do seminário para comer
bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.
Amaro não desejava nada:
- Eu nem sei, dizia ele melancolicamente.
No entretanto, escutando por simpatia aqueles para quem o seminário era o "tempo das galés",
saia muito perturbado daquelas conversas cheias de impaciente ambição da vida livre. Às vezes falavam
de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janelas, as peripécias da noite negra pelos negros
caminhos: anteviam balcões de tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres.
Amaro ficava todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir, e, no fundo das suas
imaginações e dos seus sonhos, ardia como uma brasa silenciosa o desejo da Mulher.
Na sua cela havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas, pousada sobre a esfera, com o
olhar errante pela luz imortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ela como para um
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refúgio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade da
Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava, despindo-se olhava-a de revés
lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor
formas, redondezas, uma carne branca... Julgava então ver os olhos do Tentador luzir na escuridão do
quarto; aspergia a cama de água benta; mas não se atrevia a revelar estes delírios, no confessionário, ao
domingo.
Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral falar, com a sua voz roufenha, do Pecado,
compará-lo à serpente e com palavras untuosas e gestos arqueados, deixando cair vagarosamente a pompa
melíflua dos seus períodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos pés a
serpente ominosa! E depois era o mestre de Teologia mística que falava, sorvendo o seu rapé, no dever de
vencer a Natureza! E citando S. João de Damasco e S. Crisólogo, S. Cipriano e S. Jerônimo, explicava os
anátemas dos santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente, Dardo,
Filha da Mentira, Porta do Inferno, Cabeça do Crime, Escorpião...
- E como disse o nosso padre S. Jerônimo - e assoava-se estrondosamente - Caminho de
iniqüidade, iniquita via!
Até nos compêndios encontrava a preocupação da Mulher! Que ser era esse, pois, que através de
toda a teologia ora era colocada sobre o altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apóstrofes
bárbaras? Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu encontro, numa paixão
extática, dando-lhe por aclamação o profundo reino dos Céus, - ora vai fugindo diante dela como do
Universal Inimigo, com soluços de terror e gritos de ódio, e escondendo-se, para a não ver, nas tebaidas e
nos claustros, vai ali morrendo do mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações: elas
renasciam, desmoralizavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos desfalecia no desejo de os
quebrar.
E em redor dele, sentia iguais rebeliões da natureza: os estudos, os jejuns, as penitências podiam
domar o corpo, dar-lhe hábitos maquinais, mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como num
ninho serpentes imperturbadas. Os que mais sofriam eram os sangüíneos, tão doloridamente apertados na
Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o
temperamento irrompia: lutavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos linfáticos a natureza
comprimida produzia as grandes tristezas, os silêncios moles: desforravam-se então no amor dos
pequenos vícios: jogar com um velho baralho, ler um romance, obter de intrigas demoradas um maço de
cigarros - quantos encantos do pecado!
Amaro por fim quase invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes, estudavam
perpetuamente, escrevinhavam notas no silêncio da alta livraria, eram respeitados, usavam óculos,
tomavam rapé. Ele mesmo tinha às vezes ambições repentinas de ciência; mas diante dos vastos infolios
vinha-lhe um tédio insuperável. Era no entanto devoto: rezava, tinha fé ilimitada em certos santos, um
terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminário! A capela, os chorões do pátio, as comidas
monótonas do longo refeitório lajeado, os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada:
parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse na liberdade duma rua ou na paz dum quintal, fora
daquelas negras paredes. Emagrecia, tinha suores éticos: e mesmo no último ano, depois do serviço
pesado da Semana Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa.
Ordenou-se enfim pelas têmporas de S. Mateus; e pouco tempo depois recebeu, ainda no
seminário, esta carta do Sr. padre Liset:
"Meu querido filho e novo colega.- Agora que está ordenado, entendo em minha
consciência que devo dar-lhe conta do estado dos seus negócios, pois quero cumprir até o fim o
encargo com que carregou os meus ombros débeis a nossa chorada marquesa, atribuindo-me a
honra de administrar o legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco
devam importar a uma alma votada ao sacerdócio, são sempre as boas contas que fazem os
bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da querida marquesa - para quem
deve erguer em sua alma uma gratidão eterna - está inteiramente exausto. Aproveito esta
ocasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o
estabeleci mento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: caiu sob o
império das paixões, e tendo-se ligado ilegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente
com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de hóspedes na Rua dos Calafates n? 53. Se toco
nestas impurezas, tão impróprias de que um tenro levita, como o meu querido filho, tenha delas
conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitável família. Sua irmã,
como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que
devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circunstâncias, que o meu querido filho
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esteja de posse deste fato. Do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o
mandarmos para a freguesia de Feirão, na Gralheira, vou falar com algumas pessoas
importantes que têm a extrema bondade de atender um pobre padre que só pede a Deus
misericórdia. Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da
virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se encontra a felicidade neste
nosso santo ministério quando sabemos compreender quantos são os bálsamos que derrama no
peito e quantos os refrigérios que dá - o serviço de Deus.' Adeus, meu querido filho e
novo colega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupilo da nossa chorada
marquesa, que decerto do Céu, onde a elevaram as suas virtudes, suplica à Virgem, que ela
tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupilo ". Liset.
"P.S. - O apelido do marido de sua irmã é Trigoso. " Liset.
Dois meses depois Amaro foi nomeado pároco de Feirão, na Gralheira, serra da Beira Alta.
Esteve ali desde Outubro até o fim das neves.
Feirão é uma paróquia pobre de pastores e naquela época quase desabitada. Amaro passou o
tempo muito ocioso, ruminando o seu tédio à lareira, ouvindo fora o Inverno bramir na serra. Pela
Primavera vagaram nos distritos de Santarém e de Leiria paróquias populosas, com boas
côngruas. Amaro escreveu logo à irmã contando a sua pobreza em Feirão; ela mandou- lhe, com
recomendações de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro partiu imediatamente. Os
ares lavados e vivos da serra tinham- lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito, simpático, com
uma boa cor na pele trigueira.
Logo que chegou a Lisboa foi à Rua dos Calafates no 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços
vermelhos numa cuia enorme, toda coberta de pó-de-arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria
piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro.
- Como estás bonito! Ora não há! Quem te viu? Ih, Jesus! Que mudança!
Admirava-lhe a batina, a coroa: e contando-lhe as suas desgraças, com exclamações sobre a
salvação da sua alma e sobre a carestia dos gêneros, foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que
dava para o saguão.
- Ficas aqui como um abade, disse-lhe ela. E baratinho!... Ai! ter- te de graça queria eu, mas...
Tenho sido muito infeliz, Joãozinho!... Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com Joãozinho na cabeça...
Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luís. Tinha ido para França. Lembrou-se
então da filha mais nova da senhora marquesa de Alegros, a Sra. D. Luísa, que estava casada com o conde
de Ribamar, conselheiro de Estado, com influência, regenerador fiel desde cinqüenta e um, duas vezes
ministro do reino.
E, por conselho da tia, Amaro, logo que meteu o seu requerimento, foi uma manhã a casa da Sra.
condessa de Ribamar, a Buenos Aires. Á porta um coupé esperava.
- A senhora condessa vai sair, disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado
à ombreira do pátio, de cigarro na boca.
Nesse momento, duma porta de batentes de baeta verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do
pátio lajeado, uma senhora saía, vestida de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabelos frisados
sobre a testa, lunetas de ouro num nariz comprido e agudo, e no queixo um sinalzinho de cabelos claros.
- A senhora condessa já me não conhece? disse Amaro com o chapéu na mão, adiantando-se
curvado. Sou o Amaro.
- O Amaro? - disse ela, como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem ele é! Ora não há! Está
um homem. Quem diria!
Amaro sorria-se.
- Eu podia lá esperar! continuou ela admirada. E está agora em Lisboa?
Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da paróquia...
- De maneira que vim requerer, senhora condessa.
Ela escutava-o com as mãos apoiadas numa alta sombrinha de seda clara, e Amaro sentia vir dela
um perfume de pó-de-arroz e uma frescura de cambraias.
- Pois deixe estar, disse ela, fique descansado. Meu marido há-de falar. Eu me encarrego disso.
Olhe, venha por cá. - E com o dedo sobre o canto da boca: - Espere, amanhã vou para Sintra. Domingo,
não. O melhor é daqui a quinze dias. Daqui a quinze dias pela manhã, sou certa. - E rindo com os seus
largos dentes frescos: - Parece que o estou a ver traduzir Chateaubriand com a mana Luísa! Como o
tempo passa!
- Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.
- Sim, bem. Está numa quinta em Santarém.
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Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, num aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes
de ouro, e saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.
Amaro começou então a esperar. Era em Julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos,
e durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Às vezes ia conversar
com a tia para a sala de jantar; as janelas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monótona sussurração
das moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia croché, com a luneta encavalada na ponta
do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama.
À noitinha saía, a dar duas voltas no Rossio. Abafava-se, no ar pesado e imóvel: a todos os
cantos se apregoava monotonamente água fresca! Pelos bancos, debaixo das árvores, vadios remendados
dormitavam; em redor da Praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as
claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos
passeios das ruas.
Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janela aberta ao calor da noite, estirado em cima da
cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento
lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido háde
falar! E via-se já pároco numa bonita vila, numa casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas,
tranqüilo e importante, recebendo bandejas de doce das devotas ricas.
Vivia então num estado de espirito muito repousado. As exaltações, que no seminário lhe
causava a continência, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora,
que ele gostava de ver ao domingo tocar à missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de
saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao Céu as orações que
manda o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente.
No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.
- Não está, disse-lhe um criado da cavalariça.
Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro subiu devagar,
pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho, fixado com varões de metal. Da alta clarabóia caia
uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar, sentado numa banqueta de marroquim escarlate, um
criado encostado à parede branca envernizada, com a cabeça pendente e o beiço caído, dormia. Fazia um
grande calor; aquele alto silêncio aristocrático aterrava Amaro; esteve um momento, com o seu guarda-sol
pendente do dedo mínimo, hesitando; tossiu devagarinho, para acordar o criado que lhe parecia terrível
com a sua bela suíça preta, o seu rico grilhão de ouro; e ia descer, quando ouviu por detrás dum reposteiro
um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e
entrou muito vermelho numa larga sala com estofos de damasco amarelo; uma grande luz entrava das
varandas abertas, e viam- se arvoredos de jardim. No meio da sala três homens de pé
conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou:
- Não sei se incomodo...
Um homem alto, de bigode grisalho e óculos de ouro, voltou-se surpreendido, com o charuto ao
canto da boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor conde.
- Sou o Amaro...
- Ah, disse o conde, o Sr. padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a bondade... Minha mulher
falou-me. Tem a bondade.
E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quase calvo, de calças brancas muito curtas:
- É a pessoa de quem lhe falei. - Voltou-se para Amaro: - É o senhor ministro.
Amaro curvou-se, servilmente.
- O Sr. padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi criado de pequeno em casa de minha sogra.
Nasceu lá, creio eu...
- Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro, que se conservava afastado, com o guarda-sol na
mão.
- Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora - já não há disso! - fê-lo padre.
Houve até um legado, creio eu... Enfim, aqui o temos pároco... Onde, Sr. padre Amaro?
- Feirão, excelentíssimo senhor.
- Feirão?... disse o ministro estranhando o nome.
- Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado.
Era um homem magro, entalado numa sobrecasaca azul, muito branco de pele, com soberbas
suíças dum negro de tinta, e um admirável cabelo lustroso de pomada, apartado até ao cachaço numa risca
perfeita.
- Enfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguesia pobre, sem distrações, com um
clima horrível...
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- Eu meti já requerimento, excelentíssimo senhor, arriscou Amaro timidamente.
- Bem, bem, afirmou o ministro. Há-de arranjar-se, - e mascava o seu charuto.
- É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos e ativos devem estar
nas paróquias difíceis, nas cidades... É claro! Mas não; olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, há
um velho, um gotoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé.
- É verdade, disse o ministro, mas essas colocações nas boas paróquias devem naturalmente ser
recompensas dos bons serviços. É necessário o estímulo...
- Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionais, serviços à Igreja, não
serviços aos governos.
O homem das soberbas suíças negras teve um gesto de objeção.
- Não acha? perguntou-lhe o conde.
- Respeito muito a opinião de vossa excelência, mas se me permite... Sim, digo eu, os párocos na
cidade são-nos dum grande serviço nas crises eleitorais. Dum grande serviço!
- Pois sim. Mas...
- Olhe vossa excelência, continuou ele, sôfrego da palavra. Olhe vossa excelência em Tomar. Por
que perdemos? Pela atitude dos párocos. Nada mais.
O conde acudiu:
- Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero não são agentes eleitorais.
- Perdão.., queria interromper o outro.
O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras pausadas, cheias da
autoridade dum vasto entendimento:
- A religião, disse ele, pode, deve mesmo auxiliar os governos no seu estabelecimento, operando,
por assim dizer, como freio...
- Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo películas mascadas de charuto.
- Mas descer às intrigas, continuou o conde devagar, aos imbróglios... Perdoe-me meu caro
amigo, mas não é dum cristão.
- Pois sou-o, senhor conde, exclamou o homem das suíças soberbas. Sou-o a valer! Mas também
sou liberal. E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais sólidas...
- Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero, e desacredita a política.
- Mas são ou não as maiorias um princípio sagrado? gritava rubro o das suíças, acentuando o
adjetivo.
- São um principio respeitável.
- Upa! upa, excelentíssimo senhor! Upa!
O padre Amaro escutava, imóvel.
- Minha mulher há-de querer vê-lo, disse-lhe então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que
levantou: - Entre. É o Sr. padre Amaro, Joana!
Era uma sala forrada de papel branco acetinado, com móveis estofados de casimira clara. Nos
vãos das janelas, entre as cortinas de pregas largas duma fazenda adamascada cor de leite, apanhadas
quase junto do chão por faixas de seda, arbustos delgados, sem flor, erguiam em vasos brancos a sua
folhagem fina. Uma meia-luz fresca dava a todas aquelas alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas
duma cadeira uma arara empoleirada, firme num só pé negro, coçava vagarosamente, com contrações
aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se logo para um canto do sofá, onde viu os
cabelinhos louros e frisados da senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de
ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante dela numa cadeira
baixa, com os cotovelos sobre os joelhos abertos, ocupava- se em balançar, como um pêndulo, um pincenez
de tartaruga. A condessa tinha no regaço uma cadelinha, e com a sua mão seca e fina cheia de
veias, acamava-lhe o pêlo branco como algodão.
- Como está, Sr. Amaro? - A cadela rosnou. - Quieta, Jóia. Sabe que já falei no seu negócio?
Quieta, Jóia... O ministro está ali.
- Sim, minha senhora, disse Amaro, de pé.
- Sente-se aqui, Sr. padre Amaro.
Amaro pousou-se à beira dum fauteuil, com o seu guarda-sol na mão, - e reparou então numa
senhora alta que estava de pé, junto do piano, falando com um rapaz louro.
- Que tem feito estes dias, Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua irmã?
- Está em Coimbra, casou.
- Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anéis.
Houve um silêncio. Amaro, de olhos baixos, passava, com um gesto embaraçado e errante, os
dedos pelos beiços.
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- O Sr. padre Liset está para fora? perguntou.
- Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa. - Está o mesmo sempre: muito
amável, muito doce. É a alma mais virtuosa!...
- Eu prefiro o padre Félix, disse o rapaz gordo, estirando as pemas.
- Não diga isso, primo! Jesus, brada aos Céus! Pois então, o padre Liset, tão respeitável!... E
depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma bondade... Vê-se que é um coração delicado... '
- Pois sim, mas o padre Félix...
- Ai, nem diga isso! Que o padre Félix é uma pessoa de muita virtude, decerto; mas o padre Liset
tem uma religião mais... - e com um gesto delicado procurava a palavra: - mais fina, mais distinta...
Enfim, vive com outra gente. - E sorrindo para Amaro: - Pois não acha?
Amaro não conhecia o padre Félix, não se recordava do padre Liset.
- Já é velho o Sr. padre Liset, observou ao acaso.
- Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que entusiasmo!... Ai, é
outra coisa! - E voltando-se para a senhora que estava junto do piano: - Pois não achas, Teresa?
- Já vou, respondeu Teresa, toda absorvida.
Amaro afirmou-se então nela. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte
estatura, uma linha de ombros e de seio magnífica; os cabelos pretos um pouco ondeados destacavam
sobre a palidez do rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de Maria Antonieta; o seu vestido preto,
de mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada de
rendas negras, o tom monótono das alvuras da sala; o colo, os braços estavam cobertos por uma gaze
preta, que fazia aparecer através da brancura da carne; e sentia-se nas suas formas a firmeza dos
mármores antigos, com o calor dum sangue rico.
Falava baixo, sorrindo, numa língua áspera que Amaro não compreendia, cerrando e abrindo o
seu leque preto - e o rapaz louro, bonito, escutava-a retorcendo a ponta de um bigode fino, com um
quadrado de vidro entalado no olho.
- Havia muita devoção na sua paróquia, Sr. Amaro? perguntava, no entanto, a condessa.
- Muita, muito boa gente.
- É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias, considerou ela com um tom piedoso. -
Queixou-se da obrigação de viver na cidade, nos cativeiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua
quinta de Carcavelos, rezar na pequena capela antiga, conversar com as boas almas da aldeia! - e a sua
voz tornara-se terna.
O rapaz rechonchudo ria-se:
- Ora, prima! dizia, ora, prima! - Não, ele, se o obrigassem a ouvir missa, numa capelinha de
aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!... Não compreendia, por exemplo, a religião sem música... Era lá
possível uma festa religiosa, sem uma boa voz de contralto?
- Sempre é mais bonito, disse Amaro.
- Está claro que é. É outra coisa! Tem cachet! Ó prima, lembra-se daquele tenor... como se
chamava ele? O Vidalti! Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglesinhos? O tantum
ergo?
- Eu preferia-o no Baile de Máscaras, disse a condessa.
- Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!
No entanto o rapaz louro viera apertar a mão à senhora condessa, falando-lhe baixo, muito
risonho; Amaro admirava a nobreza da sua estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe caíra uma
luva, e apanhou-lha servilmente. Quando ele saiu Teresa, depois de se ter aproximado vagarosamente da
janela e olhando para a rua - foi sentar-se numa causeuse com um abandono que punha em relevo a
magnífica escultura do seu corpo, e voltando-se preguiçosamente para o rapaz rechonchudo:
- Vamo-nos, João?
A condessa disse-lhe então:
- Sabes que o Sr. padre Amaro foi criado comigo em Benfica?
Amaro fez-se vermelho: sentia que Teresa pousava sobre ele os seus belos olhos dum negro
úmido como o cetim preto coberto de água.
- Está na província agora? perguntou ela, bocejando um pouco.
- Sim, minha senhora, vim há dias.
- Na aldeia? continuou ela, abrindo e cerrando vagarosamente o seu leque.
Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse, acariciando o cabo do guardasol:
- Na serra, minha senhora.
- Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Há sempre neve, diz que a igreja não tem telhado,
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são tudo pastores. Uma desgraça! Eu pedi ao ministro a ver se o mudávamos. Pede-lhe tu também...
- O quê? disse Teresa.
A condessa contou que Amaro requerera para uma paróquia melhor. Falou de sua mãe, da
amizade que ela tinha a Amaro...
- Morria-se por ele. Ora um nome que ela lhe dava... Não se lembra?
- Não sei, minha senhora.
- Frei Maleitas!... Tem graça! Como o Sr. Amaro era amarelito, sempre metido na capela...
Mas Teresa, dirigindo-se à condessa:
- Sabes com quem se parece este senhor?
A condessa afirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.
- Não se parece com aquele pianista do ano passado? continuou Teresa. Não me lembra agora o
nome...
- Bem sei, o Jalette, disse a condessa. - Bastante. No cabelo, não.
- Está visto, o outro não tinha coroa!
Amaro fez-se escarlate. Teresa ergueu-se arrastando a sua soberba cauda, sentou-se ao piano.
- Sabe música? perguntou, voltando-se para Amaro.
- A gente aprende no seminário, minha senhora.
Ela correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e tocou a frase do
Rigoleto, parecida com o Minuete de Mozart, que diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro
ato, da senhora de Crécy, - e cujo ritmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que findam, e de
braços que se desenlaçam em despedidas supremas.
Amaro estava enlevado. Aquela sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o
colo de Teresa que ele via sob a negra transparência da gaze, as suas tranças de deusa, os tranqüilos
arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a idéia duma existência superior, de romance, passada
sobre alcatifas preciosas, em coupés acolchoados, com árias de óperas, melancolias de bom gosto e
amores dum gozo raro. Enterrado na elasticidade da causeuse, sentindo a música chorar
aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo
que prova um creme fino, e, assustado, demora o seu prazer - pensando que vai voltar à dureza das côdeas
secas e à poeira dos caminhos.
No entanto Teresa, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga ária inglesa de Haydn, que
diz tão finamente as melancolias da separação:
The village seems dead and asleep
When Lubin is away!...
- Bravo! bravo! exclamou o ministro da Justiça, aparecendo à porta, batendo docemente as
palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
- Tenho um pedido a fazer-lhe, Sr. Correia, disse Teresa erguendo- se logo.
O ministro veio, com uma pressa galante:
- Que é, minha senhora? que é?
O conde e o sujeito de magníficas suíças tinham entrado discutindo ainda.
- A Joana e eu temos que lhe pedir, disse Teresa ao ministro.
- Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.
- Mas, minhas senhoras, disse o ministro, sentando-se confortavelmente, com as pernas muito
estiradas, a face satisfeita: de que se trata? É uma coisa grave? meu Deus! prometo, prometo
solenemente...
- Bem, disse Teresa, batendo-lhe com o leque no braço. Então qual é a melhor paróquia vaga?
- Ah! disse o ministro, compreendendo e olhando para Amaro, que vergou os ombros, corado.
O homem das suíças, que estava de pé fazendo saltar circunspectamente os berloques, adiantouse,
cheio de informações:
- Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital do distrito e sede do bispado.
- Leiria? disse Teresa. Bem sei, é onde há umas ruínas?
- Um Castelo, minha senhora, edificado por D. Dinis.
- Leiria é excelente!
- Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, sede do bispado, uma cidade... O Sr. padre Amaro
é um eclesiástico novo...
- Ora, Sr. Correia! exclamou Teresa, e o senhor não é novo?
O ministro sorriu, curvando-se.
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- Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava ternamente a cabeça da arara.
- Parece-me inútil, o pobre Correia está vencido! A prima Teresa chamou-lhe novo!
- Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja uma lisonja excepcional; eu não sou
também tão antigo...
- Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te que já conspiravas em 1820.
- Era meu pai, caluniador, era meu pai!
Todos riram.
- Sr. Correia, disse Teresa, está entendido. O Sr. padre Amaro vai para Leiria!
- Bem, bem, sucumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma tirania!
- Thank you, fez Teresa, estendendo-lhe a mão.
- Mas, minha senhora, estou a estranhá-la, disse o ministro, fixando-a.
- Estou contente hoje, disse ela. Olhou um momento para o chão, distraída, dando pequeninas
pancadas no vestido de seda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a doce ária
inglesa:
The village seems dead and asleep
When Lubin is away!...
Entretanto, o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.
- É negócio feito, disse-lhe ele. O Correia entende-se com o bispo. Daqui a uma semana está
nomeado. Pode ir descansado.
Amaro fez uma cortesia, e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto do piano:
- Senhor ministro, eu agradeço...
- À senhora condessa, à senhora condessa, disse o ministro sorrindo.
- Minha senhora, eu agradeço, veio ele dizer à condessa, todo curvado.
- Ai, agradeça a Teresa. Ela quer ganhar indulgências, parece.
- Lembre-me nas suas orações, Sr. padre Amaro, disse ela. E continuou, com a sua voz magoada,
dizendo ao piano - as tristezas da aldeia quando Lubin está ausente!
Amaro daí a uma semana soube o seu despacho. Mas não tomara a esquecer aquela manhã em
casa da Sra. condessa de Ribamar, - o ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, prometendo
o seu despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes... Cantava-lhe
sempre no cérebro aquela ária triste do Rigoleto: e perseguia-o a brancura dos braços de Teresa, sob a
gaze negra! Instintivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em torno do pescoço airoso do rapaz
louro: detestava-o então, e a língua bárbara que falava, e a terra herética de onde viera: e latejavam-lhe as
fontes à idéia de que um dia pode- ria confessar aquela mulher divina, e sentir o seu vestido de seda
preta roçar pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade do confessionário.
Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços da tia, partiu para Santa Apolônia, com um galego que
lhe levava o baú. A madrugada rompia. A cidade estava silenciosa, os candeeiros apagavam-se. Às vezes,
uma carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe intermináveis; saloios começavam
a chegar montados nos seus burros, com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas; numa
ou noutra rua uma voz aguda já apregoava os jornais; e os moços dos teatros corriam com o pote da
massa, pregando nas esquinas os cartazes.
Quando chegou a Santa Apolônia a claridade do sol alaranjava o ar por detrás dos montes da
Outra Banda; o rio estendia-se, imóvel, riscado de correntes de cor de aço sem lustre; e já alguma vela de
falua passava, vagarosa e branca.
IV
Ao outro dia, na cidade, falava-se da chegada do pároco novo, e todos sabiam já que tinha
trazido um baú de lata, que era magro e alto, e que chamava Padre-Mestre ao cônego Dias.
As amigas da S. Joaneira - as íntimas - a D. Maria da Assunção, as Gansosos, tinham ido logo
pela manhã a casa dela para se porem ao fato... Eram nove horas, Amaro saíra com o cônego. A S.
Joaneira, radiosa, importante, recebeu-as no alto da escada, de mangas arregaçadas, nos arranjos da
manhã; e imediatamente, com animação, contou a chegada do pároco, as suas boas maneiras, o que tinha
dito...
- Mas venham vocês cá abaixo, sempre quero que vejam.
19
Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o baú de lata, uma prateleira que lhe arranjara para os livros.
- Está muito bem, está muito bem, diziam as velhas andando pelo quarto, devagar, com respeito,
como numa igreja.
- Rico capote! - observou D. Joaquina Gansoso, apalpando o pano das largas bandas que
pendiam ao comprido do cabide. - É obra para um par de moedas!
- E a boa roupa branca! disse a S. Joaneira, erguendo a tampa do baú.
O grupo das velhas curvou-se com admiração.
- A mim o que me consola é que ele seja um rapaz novo, disse D. Maria da Assunção,
piedosamente.
- Também a mim, disse com autoridade a D. Joaquina Gansoso.
Estar a gente a confessar-se e a ver o pingo do rapé, como era com o Raposo, credo! até se perde
a devoção! E o bruto do José Miguéis! Não, lá isso Deus me mate com gente nova!
A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do pároco, - um crucifixo que estava ainda
embrulhado num jornal velho, o álbum de retratos, onde o primeiro cartão era uma fotografia do Papa
abençoando a cristandade. Todas se extasiaram.
- É o mais que se pode, diziam, é o mais que se pode!
Ao sair, beijando muito a S. Joaneira, felicitaram-na porque adquirira, hospedando o pároco,
uma autoridade quase eclesiástica.
- Vocês apareçam à noite, disse ela do alto da escada.
- Pudera!... gritou D. Maria da Assunção, já à porta da rua, traçando o seu mantelete. - Pudera!...
Para o vermos à vontade!
Ao meio-dia veio o Libaninho, o beato mais ativo de Leiria; e subindo a correr os degraus, já
gritava com a sua voz fina:
- Ó S. Joaneira!
- Sobe, Libaninho, sobe, disse ela, que costurava à janela.
- Então o senhor pároco veio, hem? perguntou o Libaninho, mostrando à porta da sala de jantar o
seu rosto gordinho cor de limão, a calva luzidia; e vindo para ela com o passinho miúdo, um gingar de
quadris:
- Então que tal, que tal? tem bom feitio?
A S. Joaneira recomeçou a glorificação de Amaro: a sua mocidade, o seu ar piedoso, a brancura
dos seus dentes...
- Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura devota. -. Mas não se podia
demorar, ia para a repartição! -. Adeus, filhinha, adeus! - E batia com a sua mão papuda no ombro da S.
Joaneira. - Estás cada vez mais gordinha! Olha que rezei ontem a Salve-Rainha que tu me pediste,
ingrata!
A criada tinha entrado.
- Adeus, Ruça! Estás magrinha: pega-te com a Senhora Mãe dos Homens. - E avistando Amélia
pela porta do quarto entreaberta: - Ai, que estás mesmo uma flor, Melinha! Quem se salvava na tua graça
bem eu sei!
E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho agudo, desceu a escada rapidamente, ganindo:
- Adeusinho, adeusinho, pequenas!
- Ó Libaninho, vens à noite?
- Ai, não posso, filha, não posso. - E a sua vozinha era quase chorosa. - Olha que amanhã é Santa
Bárbara: tem seis Padre-Nossos de direito!
···
Amaro fora visitar o chantre com o cônego Dias, e tinha-lhe entregado uma carta de
recomendação do Sr. conde de Ribamar.
- Conheci muito o Sr, conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta e seis, no Porto. Somos
amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso: há que anos isso vai!
E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, falou com satisfação do seu tempo; contou
anedotas da Junta, apreciou os homens de então, imitou-lhes a voz (era uma especialidade de sua
excelência), os tiques, as caturrices, - sobretudo Manuel Passos, que ele descrevia passeando na Praça
Nova, com o comprido casaco pardo e o chapéu de grandes abas, dizendo:
- Ânimo patriotas! o Xavier agüenta-se!
Os senhores eclesiásticos da câmara riram com gozo. Houve uma grande cordialidade. Amaro
saiu muito lisonjeado.
20
Depois jantou em casa do cônego Dias, e foram passear ambos pela estrada de Marrazes. Uma
luz doce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de
repouso, de meiga tranqüilidade; fumos esbranquiçados saíam dos casais, e sentiam-se os chocalhos
melancólicos dos gados que recolhem. Amaro parou junto da Ponte, e disse, olhando em redor a paisagem
suave:
- Pois senhores, parece-me que me hei-de dar bem aqui!
- Há-de-se dar regaladamente, afirmou o cônego, sorvendo o seu rapé.
Eram oito horas quando recolheram a casa da S. Joaneira.
As velhas amigas estavam já na sala de jantar. Ao pé do candeeiro de petróleo, Amélia
costurava,A Sra. D. Maria da Assunção vestira-se, como nos domingos, de seda preta: o seu chinó, dum
louro avermelhado, estava coberto com as rendas de um enfeite negro; as mãos descarnadas, calçadas de
mitenes, solenemente pousadas no regaço, reluziam de anéis; do broche sobre o pescoço até ao cinto, um
grosso grilhão de ouro caía com passadores lavrados. Conservava-se direita e cerimoniosa, com a cabeça
um pouco de lado, os óculos de ouro assentes sobre o nariz acavalado: tinha no queixo um grande sinal
cabeludo; e quando se falava de devoções ou de milagres dava um jeito ao pescoço, e abria um sorriso
mudo que descobria os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas. Era viúva
e rica, e sofria dum catarro crônico.
- Aqui tem o senhor pároco novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joaneira.
Ela ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, comovida.
- Estas são as senhoras Gansosos, há-de ter ouvido... disse a S. Joaneira ao pároco.
Amaro cumprimentou timidamente. Eram duas irmãs. Passavam por ter algum dinheiro, mas
costumavam receber hóspedes. A mais velha, a Sra. D. Joaquina Gansoso, era uma pessoa seca, com uma
testa enorme e larga, dois olhinhos vivos, o nariz arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no seu
xale, direita, com os braços cruzados, falava perpetuamente, numa voz dominante e aguda, cheia de
opiniões. Dizia mal dos homens e dava-se toda à Igreja.
A irmã, a Sra. D. Ana, era extremamente surda. Nunca falava, e com os dedos cruzados sobre o
regaço, os olhos baixos, fazia girar tranqüilamente os dois polegares. Nutrida, com o seu perpétuo vestido
preto de riscas amarelas, um rolo de arminho ao pescoço, dormitava toda a noite, e só acentuava a sua
presença de vez em quando por suspiros agudos; dizia- se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor do
correio. Todos a lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em recortar papéis para caixas de doce.
Estava também a Sra. D. Josefa, a irmã do cônego Dias. Tinha a alcunha de castanha pilada. Era
uma criaturinha mirrada, de linhas aduncas, pele engelhada e cor de cidra, voz sibilante; vivia num
perpétuo estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contrações nervosas de birra, toda saturada
de fel. Era temida. O maligno doutor Godinho chamava-lhe a estação central das intrigas de Leiria.
- Então passeou muito, senhor pároco? perguntou ela logo empertigando-se.
- Fomos quase até lá ao fim da estrada de Marrazes, disse o cônego, sentando-se pesadamente
por detrás da S. Joaneira.
- Não achou bonito, senhor pároco? acudiu a Sra. D. Joaquina Gansoso.
- Muito bonito.
Falaram das lindas paisagens de Leiria, das boas vistas: a Sra. D. Josefa gostava muito do
passeio ao pé do rio; até já ouvira dizer que nem em Lisboa havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso
preferia a igreja da Encarnação, no alto.
- Desfruta-se muito, dali.
Amélia disse sorrindo:
- Eu por mim gosto daquele bocado ao pé da Ponte, debaixo dos chorões. - E partindo com os
dentes o fio da costura: - É tão triste!
Amaro olhou para ela, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul muito justo ao seio
bonito; o pescoço branco e cheio saía dum colarinho voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o
esmalte dos dentes brilhava; e pareceu ao pároco que um buçozinho lhe punha aos cantos da boca uma
sombra sutil e doce.
Houve um pequeno silêncio, - o cônego Dias com o beiço descaído ia já cerrando as pálpebras.
- Que será feito do Sr. padre Brito? perguntou D. Joaquina Gansoso.
- Está talvez com a enxaqueca, pobre de Cristo! lembrou piedosamente a Sra. D. Maria da
Assunção.
Um rapaz que estava junto do aparador disse então:
- Eu vi-o hoje a cavalo, ia para os lados da Barrosa.
- Homem! disse logo, com azedume, a irmã do cônego, a Sra. D. Josefa Dias, é milagre ter o
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senhor reparado!
- Por quê, minha senhora? disse ele erguendo-se e chegando-se ao grupo das velhas.
Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pele branca, regular, um pouco fatigado,
destacava bem um bigode pequeno muito negro, caído aos cantos, que ele costumava mordicar com os
dentes.
- Ainda ele o pergunta! exclamou a Sra. D. Josefa Dias. O senhor, que nem lhe tira o chapéu!
- Eu?
- Disse-mo ele, afirmou ela com uma voz cortante. E acrescentou:
Ai, senhor pároco, bem pode chamar o Sr. João Eduardo para o bom caminho. - E teve um
risinho maligno.
- Mas eu parece-me que não ando no mau caminho, disse ele rindo, com as mãos nos bolsos. E a
cada momento os seus olhos se voltavam para Amélia.
- É uma graça! exclamou a Sra. D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o senhor disse hoje lá em
casa, de tarde, da Santa da Arregassa, não há-de ganhar o Céu!
- Ora essa! gritou a irmã do cônego, voltando-se bruscamente para João Eduardo. Então o que
tem o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que é uma impostora?
- Credo, Jesus! disse a Sra. D. Maria da Assunção, apertando as mãos e fitando João Eduardo,
com um terror piedoso. Pois ele havia de dizer isso? Cruzes!
- Não, o Sr. João Eduardo, afirmou gravemente o cônego, que espertara, desdobrando o seu
lenço vermelho - não era capaz de dizer uma dessas.
Amaro perguntou então:
- Quem é a Santa da Arregassa?
- Credo! Pois não tem ouvido falar, senhor pároco? exclamou numa admiração a Sra. D. Maria
da Assunção.
- Há-de ter ouvido, afirmava a Sra. D. Josefa Dias com autoridade. Diz que os jornais de Lisboa
vêm cheios disso!
- É, com efeito, uma coisa bem extraordinária, ponderou com um tom profundo o cônego.
A S. Joaneira interrompeu a meia, e tirando a luneta:
- Ai, não imagina, senhor pároco, é o milagre dos milagres!
- Se é! se é!, disseram.
Houve um recolhimento devoto.
- Mas então?... perguntou Amaro, todo curioso.
- Olhe, senhor pároco, começou a Sra. D. Joaquina Gansoso endireitando-se no xale, falando
com solenidade: a Santa é uma mulher que aqui há numa freguesia perto, que está há vinte anos na
cama...
- Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assunção, tocando- lhe com o leque no braço.
- Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre ouvi eu dizer vinte.
- Vinte e cinco, vinte e cinco, afirmou a S. Joaneira. E o cônego apoiou-a, oscilando gravemente
a cabeça.
- Está entrevadinha de todo, senhor pároco! rompeu a irmã do cônego, ávida de falar. Parece uma
alminha de Deus! Os bracinhos são isto! - E mostrava o dedo mínimo. - Para a gente a ouvir é
necessário pôr-lhe a orelha ao pé da boca!
- Pois se ela se sustenta da graça de Deus! disse lamentosamente a Sra. D. Maria da Assunção.
Coitadinha! que até a gente lembra-se...
Houve entre as velhas um silêncio comovido. João Eduardo, que por trás das velhas, de pé, com
as mãos nos bolsos, sorria mordicando o bigode, disse então:
- Olhe, senhor pároco, a coisa é o que os médicos dizem: é que aquilo é uma doença nervosa.
Aquela irreverência fez, entre as velhas devotas, um escândalo; a Sra. D. Maria da Assunção
persignou-se logo à "cautela".
- Pelo amor de Deus! gritou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor diga isso, diante de quem quiser,
menos de mim! É uma afronta!
- É que até pode cair um raio, dizia para os lados, baixo, a Sra. D. Maria da Assunção, muito
aterrada.
- Olhe, também lho digo, exclamou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor é um homem sem religião e
sem respeito pelas coisas santas. - E voltando- se para o lado de Amélia, muito azeda: - Olhe, filha minha
é que eu lhe não dava!
Amélia corou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho também, curvou-se sarcasticamente:
- Eu digo o que dizem os médicos. E de resto, acredite que não tenho pretensões a casar com
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pessoa da sua família! Nem mesmo consigo, Sra. D. Josefa!
O cônego deu uma risada muito pesada.
- Arreda! Cruzes! gritou ela, furiosa.
- Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.
- Tudo, senhor pároco, disse a Sra. D. Joaquina Gansoso: está sempre de cama, sabe rezas para
tudo; pessoa por quem ela peça tem a graça do Senhor; é a gente apegar-se com ela e cura-se de toda a
moléstia. E depois, quando comunga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar, com os olhos
erguidos para o Céu, que até chega a fazer terror.
Mas neste momento uma voz disse à porta da sala:
- Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!
Era um rapaz extremamente alto, amarelo, com as faces cavadas, uma grenha riçada, um bigode
a D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca, porque lhe faltavam quase todos os dentes de diante;
e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra
na mão.
- Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.
- Mal, respondeu ele com voz triste, sentando-se. Sempre as dores no peito, a tossezita.
- Então não se dava bem com o óleo de fígados de bacalhau?
- Qual! fez ele desconsoladamente.
- Uma viagem à Madeira, isso é que era, isso é que era! disse a Sra. D. Joaquina Gansoso com
autoridade.
Ele riu, com uma jovialidade súbita:
- Uma viagem à Madeira! Não está má! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um pobre
amanuense de administração com dezoito vinténs por dia, mulher e quatro filhos! Para a Madeira!
- E como vai ela, a Joanita?
- Coitadita, lá vai! Tem saúde, graças a Deus! Gorda, sempre com bom apetite. Os pequenos, os
dois mais velhos é que estão doentes; demais a mais agora a criada também caiu de cama! É o diacho!
Paciência! Paciência! - E encolhia os ombros.
Mas voltando-se para a S. Joaneira, dando-lhe uma palmada no joelho:
- E como vai a nossa Madre Abadessa?
Todos riram: e a Sra. D. Joaquina Gansoso informou o pároco que aquele rapaz, o Artur
Couceiro, era muito engraçado e tinha uma bela voz. Era a melhor da cidade para modinhas.
A Ruça tinha então entrado com o chá; a S. Joaneira, enchendo as chávenas de alto, dizia:
- Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é do bom! É da loja do Sousa...
E Artur oferecia açúcar com o seu antigo gracejo:
- Se está azedinho é carregar-lhe no sal!
As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente as torradas; sentia-se
o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos pingos da manteiga e das nódoas do chá, estendiam
prudentemente os lenços sobre o regaço.
- Vai um docinho, senhor pároco? disse Amélia, apresentando-lhe o prato. São da Encarnação,
muito fresquinhos.
- Obrigado.
- Aquele ali. É toucinho do Céu.
- Ah! se é do Céu.., disse ele todo risonho. E olhou para ela, tomando o bolo com a ponta dos
dedos.
O Sr. Artur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela alumiava o caderno de
música; e Amélia, logo que a Ruça levou a bandeja, acomodou-se, correu os dedos sobre o teclado
amarelo.
- Então hoje que há-de ser? perguntou Artur.
Os pedidos cruzaram-se:
- O guerrilheiro! O noivado do sepulcro.' O descrido.' o nunca mais!
O cônego Dias disse do seu canto pesadamente:
- Ó Couceiro, vá lá aquela do Tio Cosme, meu brejeiro!
As mulheres reprovaram:
- Credo! por quem é, senhor cônego! Que lembrança! E a Sra. D. Joaquina Gansoso resumiu:
- Nada: uma coisa de sentimento para o senhor pároco fazer idéia.
- Isso, isso! disseram; uma coisa de sentimento, ó Artur, uma coisa de sentimento!
Artur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente à face uma expressão dolorosa, ergueu a voz,
cantou lugubremente:
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Adeus, meu anjo! Eu vou partir sem ti!
Era uma canção dos tempos românticos de 51, o Adeus! Dizia uma suprema despedida, num
bosque, por uma tarde pálida de Outono; depois, o homem solitário e precito, que inspirara um amor
funesto, ia errar desgrenhado à beira do mar; havia uma sepultura esquecida num vale distante, brancas
virgens vinham chorar à claridade do luar!
- Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
Artur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervalos, durante o acompanhamento, sorria
em redor - e na sua boca cheia de sombra viam-se os restos de dentes podres. O padre Amaro, ao pé da
janela, fumando, contemplava Amélia, enlevado naquela melodia sentimental e mórbida: o seu perfil fino,
de encontro à luz, tinha uma linha luminosa; destacava harmoniosamente a curva do seu peito; e ele
seguia as suas pálpebras de grandes pestanas, que do teclado para a música se erguiam e se abaixavam
com um movimento doce. João Eduardo, junto dela, voltava- lhe as folhas da música.
Mas Artur, com a mão sobre o peito, a outra erguida no ar, num gesto desolado e veemente, soltou a
última estrofe:
E um dia, enfim, deste viver fatal,
Repousarei na escuridão da campa!
- Bravo! bravo! exclamaram.
E o cônego Dias comentou baixo ao pároco:
- Ah! para coisas de sentimento não há outro. - E bocejando enormemente: Pois, menino, tenho
tido toda a noite as lulas a conversar cá por dentro.
Mas chegara a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartões habituais; e a Sra. D. Josefa Dias,
com o seu olho de avara a luzir, chocalhava já vivamente o grosso saco dos números.
- Aqui tem um lugar, senhor pároco, disse Amélia.
Era junto dela. Ele hesitou; mas tinham aberto espaço, e veio sentar- se um pouco corado,
ajeitando timidamente a volta.
Fez-se logo um grande silêncio; e, com a voz dormente, o cônego começou a tirar os números. A
Sra. D. Ana Gansoso dormitava ao seu canto, ressonando ligeiramente.
Com o abajur as cabeças estavam na penumbra; e a luz crua, caindo sobre o xale escuro que
cobria a mesa, fazia destacar os cartões enegrecidos do uso, e as mãos secas das velhas, pousadas em
atitudes aduncas, remexendo as marcas de vidro. Sobre o piano aberto a vela derretia-se com uma chama
alta e direita.
O cônego rosnava os números com as pilhérias veneráveis da tradição: 1, cabeça de porco! - 3,
figura de entremês!
- Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.
- Temei - murmurava outra com gozo.
E a irmã do cônego, sôfrega:
- Chocalhe esses números, mano Plácido! Vá!
- E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o Artur Couceiro, com a cabeça
entre os punhos.
Enfim o cônego quinou. E Amélia olhando em redor pela sala:
- Então não joga, Sr. João Eduardo? disse ela. Onde está?
João Eduardo saiu da sombra da janela, por trás da cortina.
- Tome lá este cartão, ande, jogue.
- E receba as entradas, já que está de pé, disse a S. Joaneira. Seja o senhor recebedor!
João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam dez réis.
- Eu já dei, eu já dei! exclamavam todos, excitados.
Fora a irmã do cônego que não tocara no seu cobre acastelado. João Eduardo disse, curvando-se:
- Parece-me que a Sra. D. Josefa não entrou.
- Eu?! gritou ela, furiosa. Olha uma destas! Até fui a primeira! Credo! Duas moedas de cinco
réis, por sinal! Que tal está o homem!
- Ah! bem, disse ele então, fui eu que me esqueci! Cá ponho. - E rosnou: beata e ladra!
E a irmã do cônego dizia no entanto baixo à Sra. D. Maria da Assunção:
- Queria ver se escapava, o melro! Falta de temor a Deus!
- Só quem não está feliz é o senhor pároco, observaram.
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Amaro sorriu. Estava distraído, e fatigado; às vezes mesmo esquecia- se de marcar, e Amélia
dizia-lhe, tocando-lhe no cotovelo:
- Olhe que não marcou, senhor pároco.
Tinham já apostado dois ternos; ela ganhara; depois faltou a ambos para quinarem o número
trinta e seis.
Em roda repararam.
- Ora vamos a ver se quinam ambos, disse a Sra. D. Maria da Assunção, envolvendo-os no
mesmo olhar baboso.
Mas o trinta e seis não saía; havia outras quadras nos cartões alheios; Amélia receava que
quinasse a Sra. D. Joaquina Gansoso, que se mexia muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro
ria, involuntariamente interessado.
O cônego tirava os números com uma pachorra maliciosa.
- Vá! vá! Ande com isso, senhor cônego! diziam-lhe.
Amélia, debruçada, os olhos vivos, murmurou:
- Dava tudo para que saísse o trinta e seis!
- Sim? Aí o tem... Trinta e seis! disse o cônego.
- Quinamos! gritou ela, triunfante; e, tomando o cartão do pároco e o seu mostrava-os, para
conferirem, orgulhosa, muito corada.
- Ora Deus os abençoe, disse o cônego, jovial, entornando-lhes diante o pires cheio de moedas de
dez réis.
- Parece milagre! considerou a Sra. D. Maria da Assunção, piedosamente.
Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas começaram a agasalhar-se.
Amélia sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polca. João Eduardo aproximou-se dela, e baixando a
voz:
- Muitos parabéns por ter quinado com o senhor pároco. Que entusiasmo! - E como ela ia
responder: - Boa noite! disse ele secamente, embrulhando-se no seu xale-manta com despeito.
A Ruça alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam ganindo adeusinhos. O
Sr. Artur harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.
Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviário; mas distraia-se, lembravam-lhe as
figuras das velhas, os dentes podres de Artur, sobretudo o perfil de Amélia. Sentado à beira da cama, com
o Breviário aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas mãos pequenas com os dedos um pouco
trigueiros picados da agulha, o seu buçozinho gracioso...
Sentia a cabeça pesada do jantar do cônego e da monotonia do quino, com uma grande sede além
disso das lulas e do vinhito do Porto. Quis beber, mas não tinha água no quarto. Lembrou-se então que na
sala de jantar havia uma bilha de Extremoz com água fresca, muito boa, da nascente do Morenal. Calçou
as chinelas, tomou o castiçal, subiu devagarinho. Havia luz na sala, estava o reposteiro corrido; ergueu-o
e recuou com um ah! Vira num relance Amélia, em saia branca a desfazer o atacador do colete; estava
junto do candeeiro e as mangas curtas, o decote da camisa deixavam ver os seus braços brancos, o seio
delicioso. Ela deu um pequeno grito, correu para o quarto.
Amaro ficou imóvel, com um suor à raiz dos cabelos. Poderiam suspeitar uma ofensa! Palavras
indignadas iam sair decerto através do reposteiro do quarto, que ainda se balouçava agitado!
Mas a voz de Amélia, serena, perguntou de dentro:
- Que queria, senhor pároco?
- Vinha buscar água, balbuciou ele.
- Aquela Ruça! aquela desleixada! Desculpe, senhor pároco, desculpe. Olhe aí ao pé da mesa, a
bilha. Achou?
- Achei! achei!
Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe, a água escorria- lhe pelos dedos.
Deitou-se sem rezar. Alta noite Amélia sentiu por baixo passos nervosos pisarem o soalho: era
Amaro que, com o capote aos ombros e em chinelas, fumava, excitado, pelo quarto.
V
Ela, em cima, não dormia também. Sobre a cômoda, dentro de uma bacia, a lamparina extinguiase,
com um mau cheiro de morrão de azeite; brancuras de saias caídas no chão destacavam; e os olhos do
gato, que não sossegava, reluziam pela escuridão do quarto com uma claridade fosfórica e verde.
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Na casa vizinha, uma criança chorava sem cessar. Amélia sentia a mãe embalar-lhe o berço,
cantar-lhe baixo:
Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãe foi à fonte!
Era a pobre Catarina engomadeira, que o tenente Sousa deixara com um filho no berço, e grávida
de outro - para ir casar a Extremoz! Tão bonita era, tão loura - e mirrada agora, tão chupada!
Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãe foi à fonte!
Como ela conhecia aquela cantiga! Quando tinha sete anos sua mãe dizia-a, nas longas noites de
Inverno, ao irmãozinho que morrera!
Lembrava-se bem! moravam então noutra casa, ao pé da estrada de Lisboa; à janela do seu
quarto havia um limoeiro e a mãe punha, na sua ramagem luzidia, os cueiros do Joãozinho, a secarem ao
sol. Não conhecera o papá. Fora militar, morrera novo; e a mãe ainda suspirava ao falar da sua bela figura
com o uniforme de cavalaria. Aos oito anos ela foi para a mestra. Como se lembrava! A mestra era uma
velhita roliça e branca, que fora tacho das freiras de Santa Joana de Aveiro; com os seus óculos redondos,
junto à janela, empurrando a agulha, morria-se por contar histórias do convento: as perrices da escrivã,
sempre a escabichar os dentes furados; a madre rodeira, preguiçosa e pacata, com uma pronúncia
minhota; a mestra de cantochão, admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos Távoras; e a
legenda de uma freira que morrera de amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores,
soltando gemidos dolorosos e clamando: - Augusto! Augusto!
Amélia ouvia aquelas histórias, encantada. Gostava então tanto de festas de igreja e da
convivência dos santos, que desejava ser uma "freirinha, muito bonita, com um veuzinho muito branco".
A mamã era muito visitada por padres. O chantre Carvalhosa, um homem velho e robusto, que soprava de
asma ao subir a escada e tinha uma voz fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa. Amélia
chamava-lhe padrinho. Quando ela voltava da mestra, à tarde, encontrava-o sempre a palestrar com a
mãe, na sala, de batina desabotoada, deixando ver o longo colete de veludo preto com raminhos bordados
a amarelo. O senhor chantre perguntava-lhe pelas lições e fazia-a dizer a tabuada.
À noite havia reuniões: vinha o padre Valente; o cônego Cruz; e um velhito calvo, de perfil de
pássaro, com óculos azuis, que fora frade franciscano e a quem chamavam frei André. Vinham as amigas
da mãe, com as suas meias; e um capitão Couceiro, de caçadores, que tinha os dedos negros do cigarro e
trazia sempre a sua viola. Mas às nove horas mandavam-na deitar; pela frincha do quarto ela via a luz,
ouvia as vozes; depois fazia-se um silêncio, e o capitão, repenicando a guitarra, cantava o lundum da
Figueira.
Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipáticos: sobretudo o padre Valente,
tão gordo, tão suado, com umas mãos papudas e moles, de unhas pequenas! Gostava de a ter entre os
joelhos, torcer-lhe devagarinho a orelha, e ela sentia o seu hálito impregnado de cebola e de cigarro. O
seu amiguinho era o cônego Cruz, magro, com o cabelo todo branco, a volta sempre asseada, as fivelas
luzidias; entrava devagarinho, cumprimentando com a mão sobre o peito, e uma voz suave cheia de ss. Já
então sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em casa, por qualquer "bagatela", falavam-lhe sempre
dos castigos do Céu; de tal sorte que Deus aparecia-lhe como um ser que só sabe dar o sofrimento e a
morte, e que é necessário abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, animando os padres. Por isso,
se às vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitência no outro dia, porque temia que Deus
lhe mandasse sezões ou a fizesse cair na escada.
Mas o seu melhor tempo foi quando começou a tomar lições de música. A mãe tinha na sala de
jantar, ao canto, um velho piano, coberto com um pano verde, tão desafinado, que servia de aparador.
Amélia costumava cantarolar pela casa; e a sua voz fina e fresca agradava ao senhor chantre, e as amigas
da mãe diziam-lhe:
- Tu tens aí um piano, por que não mandas ensinar a rapariga? Sempre é uma prenda! olha que
lhe pode servir de muito!
O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da Sé de Évora, extremamente infeliz: a
filha única, muito linda, fugira-lhe com um alferes para Lisboa; e, passados dois anos, o Silvestre da
Praça, que ia muito à capital, vira-a descer a Rua do Norte, de garibaldi escarlate e alvaiade num olho,
com um marinheiro inglês. O velho caíra em grande melancolia e grande miséria; e por piedade tinhamlhe
dado um emprego no cartório da câmara eclesiástica. Era uma figura triste de romance picaresco.
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Muito magro, alto como um pinheiro, deixava crescer até os ombros os seus cabelos brancos e finos; os
olhos, cansados, lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia: e parecia muito
transido, no seu capote cor de vinho que só lhe chegava à cintura e que tinha uma gola de astracã.
Chamavam-lhe o Tio Cegonha, pela sua alta magreza e o seu ar solitário. Amélia um dia tinha-lhe
chamado Tio Cegonha; mas mordeu logo o beiço, toda envergonhada.
O velho pôs-se a sorrir:
- Ai, chame, minha rica menina, chame! Tio Cegonha?... ora, que tem? Cegonha sou eu, e bem
cegonha!
Era então no Inverno. As grandes chuvas com os sudoestes não cessavam; a áspera estação
oprimia os pobres. Viam-se naquele ano famílias esfomeadas indo à câmara pedir pão. O Tio Cegonha
vinha sempre ao meio-dia dar a lição; o seu guarda-chuva azul deixava um ribeiro na escada; tiritava; e
quando se sentava escondia, na sua vergonha de velho, as botas encharcadas com a sola aberta. Queixavase
sobretudo do frio das mãos, que o impedia de ferir com justeza o teclado, e não o deixava escrever
no cartório. '
- Prendem-se-me os dedos, dizia tristemente.
Mas quando a S. Joaneira lhe pagou o primeiro mês das lições, o velho apareceu muito contente,
com urnas grossas luvas de lã.
- Ah, Tio Cegonha, como vem quentinho! disse-lhe Amélia.
- Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora ando a juntar para umas meias de lã. Deus a
abençoe, minha menina, Deus a abençoe!
E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lágrimas. Amélia tomara-se a "sua rica amiguinha". Já lhe
fazia confidências: contava-lhe as suas necessidades, as saudades da filha, as suas glórias na Sé de Évora,
quando diante do senhor arcebispo, vistoso na sua sobrepeliz escarlate, acompanhava o Lausperene.
Amélia não se esqueceu das meias de lã do Tio Cegonha. Pediu ao chantre que lhe desse umas meias de
lã.
- Ora essa! para quê? para ti? disse ele com o seu riso grosso.
- Para mim, sim, senhor.
- Deixe falar, senhor chantre! disse a S. Joaneira. Olha a idéia!
- Não deixe falar, não! dê, sim?!
Lançou-lhe os braços ao pescoço; fez-lhe olhinhos doces.
- Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanças! há-de ser o diabo!... Pois sim, aí tens. - E
deu-lhe dois pintos para umas meias de lã.
No dia seguinte tinha-os ela embrulhados num papel, que dizia por fora em letras garrafais: Ao
meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discípula.
Uma manhã, depois, viu-o mais amarelo, mais chupado:
- Ó Tio Cegonha, disse de repente, quanto lhe dão lá no cartório?
O velho sorriu-se:
- Ora, minha rica menina, quanto me hão-de dar? uma bagatela.
Quatro vinténs por dia. Mas o Sr. Neto faz-me algum bem...
- E chegam-lhe quatro vinténs?
- Ora! como hão-de chegar?
Sentiram-se os passos da mãe; e Amélia, retomando gravemente a atitude de lição, começou a
solfejar alto, com um ar profundo.
E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou, que levou a mãe a dar de almoçar e de jantar ao
Tio Cegonha nos dias de lição. Assim se estabeleceu entre ela e o velho uma grande intimidade. E o pobre
Tio Cegonha, saindo do seu frio isolamento, acolhia-se àquela amizade inesperada, como a um conchego
tépido. Encontrava nela o elemento feminino que amam os velhos, com as carícias, as suavidades de voz,
as delicadezas de enfermeira; achava nela a única admiradora da sua música; e via-a sempre atenta às
histórias do seu tempo, às recordações da velha Sé de Évora que ele amava tanto, e que lhe fazia dizer,
quando se falava de procissões, ou de festas de igreja:
- Para isso Évora! em Évora é que é!
Amélia aplicava-se muito ao piano: era a coisa boa e delicada da sua vida; já tocava
contradanças e antigas árias de velhos compositores; a Sra. D. Maria da Assunção estranhava que o
mestre lhe não ensinasse o Trovador.
- Coisa mais linda! dizia.
Mas o Tio Cegonha só conhecia a música clássica, árias ingênuas e doces de Lully, motivos de
minuetes, motetes floridos e piedosos dos doces tempos freiráticos.
Uma manhã o Tio Cegonha encontrou Amélia muito amarela e triste. Desde a véspera queixava-
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se de "mal-estar". Era um dia nublado, muito frio. O velho queria ir-se embora.
- Não, não, Tio Cegonha, disse ela, toque alguma coisa para eu me entreter.
Ele tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma melodia simples, mas extremamente melancólica.
- Que lindo! que lindo! dizia Amélia, de pé junto ao piano.
E quando o velho deu as últimas notas:
- O que é? perguntou ela.
O Tio Cegonha contou-lhe que era o começo de uma Meditação feita por um frade seu amigo.
- Coitado, disse, teve bem o seu tormento!
Amélia quis logo saber a história; e sentando-se no mocho do piano, embrulhando-se no seu
xale:
- Diga, Tio Cegonha, diga!
Era um homem que tivera em novo uma grande paixão por uma freira; ela morrera no convento
daquele amor infeliz; e ele, de dor e de saudade, fizera-se frade franciscano...
- Parece que o estou a ver...
- Era bonito?
- Se era! Um rapaz na flor da vida, rico... Um dia veio ter comigo ao órgão: "Olha o que eu fiz",
disse-me ele. Era um papel de música. Abria em ré menor. Pôs-se a tocar, a tocar... Ai, minha rica
menina, que música! Mas não me lembra o resto!
E o velho, comovido, repetiu no piano as notas plangentes da Meditação em ré menor.
Amélia todo o dia pensou naquela história. De noite veio-lhe uma grande febre, com sonhos
espessos, em que dominava a figura do frade franciscano, na sombra do órgão da Sé de Évora. Via os
seus olhos profundos reluzirem numa face encovada: e, longe, a freira pálida, nos seus hábitos brancos,
encostada ás grades negras do mosteiro, sacudida pelos prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala
dos frades franciscanos caminhava para o coro: ele ia no fim de todos, curvado, com o capuz sobre
o rosto, arrastando as sandálias, enquanto um grande sino, no ar nublado, tocava o dobre dos finados.
Então o sonho mudava: era um vasto céu negro, onde duas almas enlaçadas e amantes, com hábitos de
convento e um ruído inefável de beijos insaciáveis, giravam, levadas por um vento místico; mas
desvaneciam-se como névoas, e na vasta escuridão ela via aparecer um grande coração em carne viva,
todo traspassado de espadas, e as gotas de sangue que caíam dele enchiam o céu duma chuva escarlate.
Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouveia tranqüilizou a S. Joaneira com uma simples palavra:
- Nada de sustos, minha rica senhora, são os quinze anos da rapariga. Hão-de-lhe vir amanhã as
vertigens e os enjôos... Depois acabou-se. Temo-la mulher.
A S. Joaneira compreendeu.
- Esta rapariga tem o sangue vivo e há-de ter as paixões fortes! acrescentou o velho prático,
sorrindo e sorvendo a sua pitada.
Por esse tempo o senhor chantre, uma manhã, depois do seu almoço de açorda, caiu de repente
morto com uma apoplexia. Que consternação inesperada, para a S. Joaneira! Durante dois dias,
esguedelhada, em saias brancas chorou, gemeu pelos quartos. D. Maria da Assunção, as
senhoras Gansosos vieram acalmar, amansar a sua dor: e a Sra. D. Josefa Dias resumiu as consolações de
todos, dizendo:
- Deixa, filha, que te não há-de faltar quem te ampare!
Era então no começo de Setembro; a Sra. D. Maria da Assunção, que tinha uma casa na praia da
Vieira, propôs levar a S. Joaneira e Amélia para a estação dos banhos, para ela espalhar, nos bons ares
saudáveis, em lugar diferente, aquela dor.
- É uma esmola que me fazes, dissera a S. Joaneira. Sempre me lembra que era ali que ele punha
o guarda-chuva... Ali que ele se sentava a ver-me costurar!
- Está bom, está bom, deixa-te disso. Come e bebe, toma os teus banhos, e o que lá vai lá vai.
Olha que ele tinha bem os seus sessenta.
- Ah, minha rica! a gente é pela amizade que lhes ganha.
Amélia tinha então quinze anos, mas era já alta e de bonitas formas. Foi uma alegria para ela a
estação na Vieira! Nunca vira o mar; e não se fartava de estar sentada na areia, fascinada pela vasta água
azul, muito mansa, cheia de sol; às vezes no horizonte passava um fumo delgado de paquete; a monótona
e gemente cadência da vaga adormentava-a; e em redor o areal faiscava, a perder de vista, sob o céu azulferrete.
Como se lembrava bem! Logo pela manhã estava a pé! Era a hora do banho: as barracas de lona
alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras, sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas,
olhavam o mar, palrando; os homens, de sapatos brancos estendidos em esteiras, chupavam o cigarro,
riscavam emblemas na areia; enquanto o poeta Carlos Alcoforado, muito fatal, muito olhado, passeava só,
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soturno, junto da vaga, seguido do seu Terra-Nova. Ela saía então da barraca com o seu vestido de flanela
azul, a toalha no braço, tiritando de susto e de frio: tinha- se persignado às escondidas e toda trêmula,
agarrada à mão do banheiro, escorregando na areia, entrava na água, rompendo a custo a maresia
esverdeada que fervia em redor. A onda vinha espumando, ela mergulhava, e ficava aos saltos, sufocada e
nervosa, cuspindo a água salgada. Mas, quando saía do mar, como vinha satisfeita! Arfava, com a toalha
pela cabeça, arrastando-se para a barraca, mal podendo com o peso do vestido encharcado, risonha, cheia
de reação; e em redor vozes amigas perguntavam:
- Então que tal, que tal? Mais fresquinha, hem?
Depois, de tarde, eram os passeios à beira-mar, a apanhar conchinhas; o recolher das redes, onde
a sardinha toda viva ferve aos milheiros, luzidia sobre a areia molhada; e que longas perspectivas de
ocasos ricamente dourados, sobre a vastidão do mar triste, que escurece e geme!
D. Maria da Assunção tinha sido visitada, logo ao chegar, por um rapaz, filho do Sr. Brito de
Alcobaça, seu parente. Chamava-se Agostinho, ia freqüentar o quinto ano de direito na Universidade. Era
um moço delgado, de bigode castanho, pêra, cabelo comprido deitado para trás, e luneta: recitava versos,
sabia tocar guitarra, contava anedotas de caloiros, fazia partidas, e era famoso na Vieira, entre os homens,
"por saber conversar com senhoras".
- O Agostinho, patife! diziam. É chalaça a esta, chalaça àquela. Lá para sociedade não há outro!
Logo desde os primeiros dias Amélia reparou que os olhos do Sr. Agostinho Brito se fitavam
constantemente nela, "p'ra namoro". Amélia corava muito, sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido; e
admirava-o, achava-o muito "dengueiro".
Um dia em casa da Sra. D. Maria da Assunção pediram a Agostinho para recitar.
- Oh, minhas senhoras, isto aqui não é forja de ferreiro! exclamou ele, jovial.
- Ora vá! não se faça rogado, disseram, insistindo.
- Bem, bem, por isso não nos havemos de zangar.
- A Judia, Brito, lembrou o recebedor de Alcobaça.
- Qual Judia! disse ele, há-de ser mas há-de ser a Morena! - E olhou para Amélia. - Foi uma
poesia que fiz ontem.
- Valeu, valeu!
- E cá o rapaz acompanha, disse um sargento do 6 de Caçadores, tomando logo a guitarra.
Fez-se um silêncio: o Sr. Agostinho deitou o cabelo para trás, fincou a luneta, apoiou as duas mãos às
costas duma cadeira, e fitando Amélia:
- À Morena de Leiria! disse.
Nasceste nos verdes campos
Onde Leiria é famosa,
Tens a frescura da rosa, .
E o teu nome sabe a mel...
- Perdão, exclamou o recebedor, a Sra. D. Juliana não está boa. Era a filha do escrivão de direito
de Alcobaça; tinha-se feito muito pálida, e, lentamente, desmaiava na cadeira, com os braços pendentes, o
queixo sobre o peito. Borrifaram-na de água, levaram-na para o quarto de Amélia; quando lhe
desapertaram o vestido e lhe deram vinagre a respirar, ergueu- se sobre o cotovelo, olhou em redor,
começaram a tremer-lhe os beiços e rompeu a chorar. Fora, os homens em grupo comentavam:
- Foi o calor, diziam.
- O calor que ela tinha sei eu, rosnou o sargento de caçadores. O Sr. Agostinho torcia o bigode,
contrariado. Algumas senhoras foram a casa acompanhar a Sra. D. Juliana. D. Maria da Assunção e a S.
Joaneira, atabafadas nos seus xales, iam também. Havia vento, um criado levava um lampião, e todos
caminhavam na areia, calados.
- Tudo isto é teu proveito, disse a Sra. D. Maria da Assunção baixo à S. Joaneira, demorando-se
um pouco atrás.
- Meu!?
- Teu. Pois tu não percebeste? A Juliana, em Alcobaça, era namoro do Agostinho. Mas o rapaz
aqui anda pelo beiço pela Amélia. A Juliana percebeu, viu-o recitar aqueles versos, olhar para ela, zás!
- Ora essa!... disse a S. Joaneira.
- Deixa lá, o Agostinho tem um par de mil cruzados que lhe deixam as tias. É um partidão!
Ao outro dia, à hora do banho, a S. Joaneira vestia-se na sua barraca, e Amélia, sentada na areia,
esperava, pasmada para o mar.
- Olá! sozinha? disse uma voz por detrás.
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Era Agostinho. Amélia, calada, começou a riscar a areia com a sombrinha. O Sr. Agostinho
suspirou, alisou outro pedaço de areia com o pé, escreveu - AMÉLIA. Ela, muito vermelha, quis apagar
com a mão.
- Então! disse ele. E debruçando-se, baixo: - É o nome da Morena, bem vê. O seu nome sabe a
mel!...
Ela sorriu:
- Ande, que fez ontem desmaiar aquela pobre Juliana - disse.
- Ora! importa-me a mim bem com ela! Estou farto daquele estafermo! Então que quer? Eu cá
sou assim. Tanto digo que me não importo com ela, como digo que há uma pessoa por quem dava tudo...
Eu sei...
- Quem é? É a Sra. D. Bernarda?
Era uma velha hedionda, viúva de um coronel.
- É, disse ele rindo. É justamente por quem eu ando apaixonado é pela D. Bernarda.
- Ah! o senhor anda apaixonado! disse ela devagar, com os olhos baixos, riscando a areia.
- Diga-me uma coisa, está a mangar comigo? exclamou Agostinho puxando por uma cadeirinha,
sentando-se junto dela.
Amélia pôs-se de pé.
- Não quer que eu me sente ao pé de si? perguntou ele ofendido.
- Eu é que estava cansada de estar sentada.
Calaram-se um momento.
- Já tomou banho? disse ela.
- Já.
- Estava frio hoje?
- Estava.
As palavras de Agostinho eram agora muito secas.
- Zangou-se? disse ela docemente, pondo-lhe de leve a mão no ombro. Agostinho ergueu os
olhos, e vendo o bonito rosto trigueiro, todo risonho, - exclamou com veemência:
- Estou mesmo doido por si!
- Chut!... disse ela.
A mãe de Amélia, levantando o pano da barraca, saía, muito abafada, de lenço amarrado na
cabeça.
- Mais fresquinha, hem? perguntou logo Agostinho, tirando o chapéu de palha.
- Estava por aqui?
- Vim dar uma vista de olhos. E agora toca ao almocinho, hem?
- Se é servido... disse a S. Joaneira.
Agostinho, muito galante, ofereceu o braço à mamã.
E desde então seguia sempre Amélia, de manhã no banho, de tarde à beira-mar; apanhava-lhe
conchas; e tinha-lhe feito outros versos - o Sonho. Uma estrofe era violenta:
Senti-te contra o meu peito
Tremer, palpitar, ceder...
Ela murmurava-os com grande comoção, de noite, suspirando, abraçando o travesseiro.
Outubro findava, as férias tinham acabado. Uma noite o alegre rancho da Sra. D. Maria da
Assunção e das amigas fora dar um passeio ao luar. À volta, porém, erguera-se vento, nuvens pesadas
empastaram o céu, caíram gotas de água. Estavam então junto a um pequeno pinheiral, e as senhoras, aos
gritinhos, quiseram abrigar-se. Agostinho, com Amélia pelo braço, rindo alto, foi penetrando longe dos
outros na espessura; e então, sob o monótono e gemente rumor das ramas, disse-lhe baixo, cerrando
os dentes:
- Estou doido por ti, filha!
- Creio lá nisso! murmurou ela.
Mas Agostinho, tomando subitamente um tom grave:
- Sabes? talvez eu tenha de me ir amanhã embora.
- Vai-se?
- Talvez; não sei ainda. Além de amanhã é a matrícula.
- Vai-se... suspirou Amélia.
Ele então tomou-lhe a mão, apertou-lha com furor:
- Escreve-me! disse.
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- E a mim, escreve-me? disse ela.
Agostinho agarrou-a pelos ombros e machucou-lhe a boca de beijos vorazes.
- Deixe-me! deixe-me! dizia ela sufocada.
De repente teve um gemido doce como um arrulho de ave, e abandonava-se - quando a voz
aguda de D. Joaquina Gansoso gritou:
- Há uma aberta. É andar! é andar!
E Amélia, desprendendo-se, atarantada, correu a agachar-se sob o guarda-chuva da mamã.
Ao outro dia, com efeito, o Sr. Agostinho partiu. Vieram as primeiras chuvas, e dentro em pouco
também Amélia, a mãe, a Sra. D. Maria da Assunção voltaram para Leiria.
Passou o Inverno.
E um dia, em casa da S. Joaneira, D. Maria da Assunção deu parte que o Agostinho Brito,
segundo lhe escreviam de Alcobaça, tinha o casamento justo com a menina do Vimeiro.
- Cáspite! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha nada menos que os seus trinta contos! Olha o
meco!
E diante de todos Amélia rompeu a chorar.
Amava Agostinho; e não podia esquecer aqueles beijos de noite no pinheiral cerrado. Pareceulhe
então que não tornaria a ter alegria! Ainda lembrada daquele moço da história do Tio Cegonha, que
por amor se escondera na solidão de um convento, começou a pensar em ser freira: deu-se a uma forte
devoção, manifestação exagerada das tendências que desde pequenina as convivências de padres tinham
lentamente criado na sua natureza sensível; lia todo o dia livros de rezas; encheu as paredes do quarto de
litografias coloridas de santos; passava longas horas na igreja, acumulando Salve-Rainhas à Senhora da
Encarnação. Ouvia todos os dias missa, quis comungar todas as semanas - e as amigas da mãe achavamna
"um modelo, de dar virtude a incrédulos" !
Foi por esse tempo que o cônego Dias e sua irmã, a Sra. D. Josefa Dias, começaram a freqüentar
a casa da S. Joaneira. Dentro em pouco o cônego tornou-se o "amigo da família". Depois do almoço era
certo com a sua cadelinha, como outrora o chantre com o seu guarda-chuva.
- Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem, dizia a S. Joaneira. Mas o senhor chantre não há
dia nenhum que me não lembre dele!
A irmã do cônego tinha então organizado com a S. Joaneira a Associação das Servas da Senhora
da Piedade. A Sra. D. Maria da Assunção, as Gansosos "filiaram-se"; e a casa da S. Joaneira tornou-se
um centro eclesiástico. Foi esse o momento melhor da vida da S. Joaneira; "a Sé, como dizia com tédio o
Carlos da botica, era agora na Rua da Misericórdia". Parte dos cônegos, o novo chantre, vinham todas as
sextas-feiras. Havia imagens de santos na sala de jantar e na cozinha. As criadas, por escrúpulo, eram
examinadas em doutrina antes de serem aceitas. Ali muito tempo fizeram-se as reputações: se se dizia de
um homem: não é temente a Deus, havia o dever de o desacreditar santamente. As nomeações de sineiros,
coveiros, serventes de sacristia arranjavam-se ali por intrigas sutis e palavras piedosas. Tinham tomado
um certo vestuário entre o preto e o roxo; toda a casa cheirava a cera e a incenso; e a S. Joaneira,
mesmo, monopolizara o comércio das hóstias.
Assim passaram anos. Pouco a pouco, porém, o grupo devoto dispersou-se: a ligação do cônego
Dias e da S. Joaneira, muito comentada, afastou os padres do cabido; o novo chantre morrera de
apoplexia também - como era de tradição naquela diocese, fatal aos chantres; e já não eram divertidos os
quinos das sextas-feiras. Amélia mudara muito; crescera: fizera-se uma bela moça de vinte e dois anos, de
olhar aveludado, beiços muito frescos - e achava a sua paixão pelo Agostinho uma "tontice de criança". A
sua devoção subsistia, mas alterada: o que amava agora na religião e na igreja era o aparato, a festa - as
belas missas cantadas ao órgão, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o altar-mor na
glória das flores cheirosas, o roçar das correntes dos incensadores de prata, os uníssonos que rompem
briosamente no coro das aleluias. Tomava a Sé como a sua Ópera: Deus era o seu luxo. Nos domingos
de missa gostava de se vestir, de se perfumar com água-de-colônia, de se ir aninhar sobre o tapete do
altar-mor, sorrindo ao padre Brito ou ao cônego Saldanha. Mas em certos dias, como dizia a mãe,
"murchava"; voltavam então os abatimentos de outrora, que a amarelavam, lhe punham duas rugas velhas
ao canto dos lábios: tinha nessas ocasiões horas duma vaga saudade parva e mórbida, em que sò a
consolava cantar pela casa o Santíssimo ou as notas lúgubres do toque da Agonia. Com a alegria voltavalhe
o rosto do culto alegre - e lamentava então que a Sé fosse uma ampla estrutura de pedra dum estilo
frio e jesuítico: quereria uma igreja pequenina, muito dourada, tapetada, forrada de papel, iluminada a
gás; e padres bonitos oficiando a um altar ornado como uma étagère.
Fizera vinte e três anos quando conheceu João Eduardo no dia da procissão de Corpus-Christi,
em casa do tabelião Nunes Ferral, onde ele era escrevente. Amélia, a mãe, a Sra. D. Josefa Dias tinham
ido ver a procissão da bela varanda do tabelião, guarnecida de colchas de damasco amarelo. João Eduardo
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estava lá, modesto, sério, todo vestido de preto. Havia muito que Amélia o conhecia; mas naquela tarde,
reparando na brancura da sua pele e na gravidade com que ajoelhava, pareceu-lhe "muito bom rapaz".
À noite, depois do chá, o gordalhufo Nunes, de colete branco, foi pela sala exclamando,
entusiasmado, com a sua voz de grilo: - É tirar pares, é tirar pares! - enquanto a filha mais velha ao piano
tocava com brio estridente uma mazurca francesa. João Eduardo aproximou-se de Amélia:
- Ai, eu não danço! - disse ela logo com ar seco.
João Eduardo não dançou também; foi encostar-se a uma ombreira com a mão na abertura do
colete, os olhos fitos em Amélia. Ela percebia, desviava o rosto, mas estava contente; e quando João
Eduardo, vendo uma cadeira vazia, veio sentar-se ao pé dela, Amélia fez-lhe logo lugar acomodando os
folhos de seda, agradada. O escrevente, embaraçado, torcia o bigode com a mão trêmula. Por fim Amélia
voltando-se para ele:
- Então o senhor não dança também?
- E a Sra. D. Amélia? disse ele baixo.
Ela inclinou-se para trás, e batendo nas pregas do vestido:
- Ai! eu estou velha para estes divertimentos, sou uma pessoa séria.
- Nunca se ri? perguntou ele, pondo na voz uma intenção fina.
- Às vezes rio quando há de quê, disse ela olhando-o de lado.
- De mim, por exemplo.
- De si!? Ora essa! Está a caçoar comigo? Por que me hei-de eu rir do senhor? Boa!... então o
senhor que tem que faça rir? - e agitava o seu leque de seda preta.
Ele calou-se, procurando as idéias, as delicadezas.
- Então sério, sério, não dança?
- Já lhe disse que não. Ai, que é tão perguntador!
- É porque me interesso por si.
- Ora, deixe lá! disse ela fazendo um indolente gesto de negativa.
- Palavra!
Mas a Sra. D. Josefa Dias, que os vigiava, aproximou-se, de testa muito franzida, e João Eduardo
levantou-se, intimidado.
À saída, quando Amélia no corredor punha os seus agasalhos, João Eduardo veio dizer-lhe, de
chapéu na mão:
- Cubra-se bem, não apanhe frio!
- Então continua a interessar-se por mim? - disse ela apertando em redor do pescoço as pontas da
sua manta de lã.
- O mais possível, creia.
Duas semanas depois veio a Leiria uma companhia ambulante de zarzuela. Falava-se muito da
contralto, a Gamacho. A Sra. D. Maria da Assunção tinha um camarote, levou a S. Joaneira e Amélia -
que duas noites antes estivera costurando, com uma pressa comovida, um vestido de cassa todo florido de
laços de seda azul. João Eduardo na platéia - enquanto a Gamacho, empastada de pó-de-arroz sob a sua
mantilha valenciana, vibrando com uma graça decrépita o leque de lantejoulas, garganteava malaguenhas
agudas - não se fartou de contemplar, de desejar Amélia. À saída veio cumprimentá-la, oferecer-lhe o
braço até a Rua da Misericórdia; a S. Joaneira, a Sra. D. Maria da Assunção seguiam atrás com o tabelião
Nunes.
- Então gostou da Gamacho, Sr. João Eduardo?
- A falar-lhe a verdade nem sequer reparei nela.
- Então que fez?
- Olhei para si, respondeu ele resolutamente.
Ela parou imediatamente, disse com a voz um pouco alterada:
- Onde vem a mamã?
- Deixe lá a mamã!
E João Eduardo, então, falando-lhe junto do rosto, disse-lhe "a sua grande paixão". Tomou-lhe a
mão, repetia todo perturbado:
- Gosto tanto de si! Gosto tanto de si!
Amélia estava nervosa da música, do teatro; a noite quente de Verão, com a sua vasta cintilação
de estrelas tomava-a toda lânguida. Abandonou a mão, suspirou baixinho.
- Gosta de mim, não é verdade? perguntou ele.
- Sim, respondeu ela, e apertou os dedos de João Eduardo com paixão.
Mas, como ela pensou, "fora decerto um fogacho" - porque, dias depois, quando conheceu mais
João Eduardo, quando pôde falar livremente com ele, reconheceu que ''não tinha nenhuma inclinação pelo
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rapaz''. Estimava-o, achava-o simpático, bom moço; poderia ser um bom marido; mas sentia dentro em si
o coração adormecido.
O escrevente porém começou a ir à Rua da Misericórdia quase todas as noites. A S. Joaneira
estimava-o pelo seu "propósito" e pela sua honradez. Mas Amélia ia-se mostrando "fria": esperava-o à
janela pela manhã quando ele passava para o cartório, fazia-lhe olhos doces à noite, - mas só para o não
descontentar, para ter na sua existência desocupada um interessezinho amoroso.
João Eduardo um dia falou à mãe em casamento:
- Como a Amélia quiser, eu por mim... disse a S. Joaneira.
E Amélia, consultada, respondeu ambiguamente:
- Mais tarde, por ora não me parece, veremos.
Enfim acordou-se tacitamente em esperar, até que ele obtivesse o lugar de amanuense do governo civil,
rasgadamente prometido pelo doutor Godinho - o temido doutor Godinho!
Assim vivera Amélia até a chegada de Amaro: e, durante a noite, estas recordações vinham-lhe
por fragmentos, como pedaços de nuvens que o vento vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde,
acordou já o sol ia alto: e espreguiçava-se, quando ouviu dizer a Ruça na sala de jantar:
- É o senhor pároco que vai sair com o senhor cônego; vão à Sé.
Amélia saltou da cama, correu à janela em camisa, ergueu uma pontinha da cortina de cassa,
olhou. A manhã resplandecia: e o padre Amaro pelo meio da rua conversando com o cônego, assoava-se
ao seu lenço branco, muito airoso na sua batina de pano fino.
VI
Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em comodidades, Amaro sentiu-se feliz. A
S. Joaneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o
"quarto do senhor pároco andava que nem um brinco"! Amélia tinha com ele uma familiaridade picante
de parenta bonita: "tinham calhado um com o outro", como dissera, encantada, D. Maria da Assunção. Os
dias iam assim passando para Amaro, fáceis, com boa mesa, colchões macios e a convivência meiga de
mulheres. A estação ia tão linda que até as tílias floresceram no jardim do Paço: "quase milagre!", dissese:
o senhor chantre, contemplando-as todas as manhãs da janela do seu quarto, em robe-dechambre,
citava versos das Éclogas. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrela, dos
desconsolos do seminário e do áspero Inverno na Gralheira - aquela vida em Leiria era para Amaro como
uma casa seca e abrigada onde o alegre lume estala e a sopa cheirosa fumega, depois duma noite
de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.
Ia cedo dizer a missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas de casimira, meias
de lãs por baixo das botas de alto cano vermelho. As manhãs estavam frias: e àquela hora só algumas
devotas, com o mantéu escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé dum altar envernizado de branco.
Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no lajedo, enquanto o sacristão,
pachorrento, contava "as novidades do dia".
Depois, com o cálice na mão, de olhos baixos, passava à igreja; e tendo dobrado o joelho
rapidamente diante do Santíssimo Sacramento, subia devagar ao altar onde duas velas de cera esmoreciam
com uma claridade pálida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:
- Introibo ad altare Dei.
- Ad Deum qui laetificat juventutem meam, resmungava, num latim silabado, o sacristão.
Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma devoção enternecida.
"Estava agora habituado", dizia. E como não ceava, e àquela hora em jejum, com a frescura cortante do
ar, já sentia apetite, engrolava depressa, monotonamente, as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos.
Por trás o sacristão, com os braços cruzados, passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem
rapada, olhando de revés para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que ele
"trazia de olho" desde a Páscoa. Largas réstias de sol caiam das janelas laterais. Um vago aroma de
junquilhos secos adocicava o ar.
Amaro, depois de recitar rapidamente o ofertório, limpava o cálice com o purificador; o
sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar as galhetas, apresentava-as, curvado - e Amaro sentia o
cheiro do óleo rançoso que lhe reluzia no cabelo. Naquela parte da missa, por um antigo hábito de
emoção mística, Amaro tinha um recolhimento sentido: com os braços abertos, voltava-se para a igreja,
clamava, com largueza, a exortação universal á oração - Orate, fratres! E as velhas encostadas aos
pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa, apertavam mais as mãos contra o peito, de onde
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pendiam grandes rosários negros. Então o sacristão ia ajoelhar-se por trás dele, sustentando ligeiramente
com uma das mãos a capa, erguendo na outra a sineta. Amaro consagrava o vinho, levantava a hóstia -
Hoc est enim corpus meum! - elevando alto os braços para o Cristo cheio de chagas roxas sobre a sua cruz
de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos batiam concavamente nos peitos; e no silêncio
sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo lajeado da Sé, à volta do mercado.
- Ite, missa est! dizia Amaro enfim.
- Deo gratias! respondia o sacristão respirando alto, com o alívio da obrigação finda.
E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus dar a bênção, era já
pensando na alegria do almoço, na clara sala de jantar da S. Joaneira e nas boas torradas. Àquela hora já
Amélia o esperava com o cabelo caído sobre o penteador, tendo na pele fresca um bom cheiro de sabão de
amêndoas.
···
Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar, onde a S. Joaneira e Amélia
costuravam. "Estava aborrecido embaixo, vinha um bocado para o cavaco", dizia. A S. Joaneira, numa
cadeira pequena, ao pé da janela, com o gato aninhado na roda do vestido de merino, cosia de luneta na
ponta do nariz. Amélia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado; a cabeça inclinada
sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, nítida, um pouco afogada na abundância do cabelo; os
seus grandes brincos de ouro, em forma de pingos de cera, oscilavam, faziam tremer e crescer sobre a
finura do pescoço uma pequenina sombra; as olheiras leves cor de bistre esbatiam-se delicadamente sobre
a pele de um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu peito cheio respirava devagar. Às
vezes, cravando a agulha na fazenda, espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada. Então Amare
gracejava:
- Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!
Ela ria; conversavam. A S. Joaneira sabia as coisas interessantes do dia: o major despedira a
criada; ou havia quem oferecesse dez moedas pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a Ruça
vinha ao armário buscar um prato ou uma colher; então falava-se do preço dos gêneros, do que havia para
o jantar. A S. Joaneira tirava as lunetas, traçava a perna, e balouçando o pé calçado numa chinela de
ourelo, punha-se a dizer os pratos.
- Hoje temos grão-de-bico. Não sei se o senhor pároco gostará, foi para variar...
Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria afinidade de gostos com
Amélia.
Depois, animando-se, bulia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrara uma carta; perguntou-lhe
pelo derriço; ela respondeu, picando vivamente o pesponto:
- Ai! a mim ninguém me quer, senhor pároco...
- Não é tanto assim, acudiu ele. Mas suspendeu-se, muito vermelho, afetando tossir.
Amélia ás vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo, pediu-lhe para sustentar nas mãos uma
meadinha de retrós que ela ia dobar.
- Deixe falar, senhor pároco! exclamou a S. Joaneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando
confiança!...
Mas Amaro prontificou-se, rindo, todo contente: - ele estava ali para o que quisessem, até para
dobadoura! Era mandarem, era mandarem!... E as duas mulheres riam, dum riso cálido, enlevadas
naquelas maneiras do senhor pároco, "que até tocavam o coração" ! Às vezes Amélia pousava a costura e
tomava o gato no colo; Amaro chegava-se, corria a mão pela espinha do maltês que se arredondava,
fazendo um ronrom de gozo.
- Gostas? dizia ela ao gato, um pouco corada, com os olhos muito ternos.
E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
- Bichaninho gato! bichaninho gato!
Depois a S. Joaneira erguia-se para dar o remédio à idiota ou ir palrar à cozinha. Eles ficavam
sós; não falavam, mas os seus olhos tinham um longo diálogo mudo, que os ia penetrando da mesma
languidez dormente. Então Amélia cantarolava baixo o Adeus ou o Descrente: Amaro acendia o seu
cigarro, e escutava, bamboleando a perna.
- É tão bonito isso! dizia.
Amélia cantava mais acentuadamente, cosendo depressa; e a espaços, erguendo o busto, mirava
o alinhavado ou o pesponto, passando-lhe por cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.
Amaro achava aquelas unhas admiráveis, porque tudo que era ela ou vinha dela lhe parecia
perfeito: gostava da cor dos seus vestidos, do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabelos, e
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olhava até com ternura para as saias brancas que ela punha a secar à janela do seu quarto, enfiadas numa
cana. Nunca estivera assim na intimidade duma mulher. Quando percebia a porta do quarto dela
entreaberta, ia resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas dum paraíso: um saiote
pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram como revelações da sua nudez, que
lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. E não se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito
engomadas que batiam as ombreiras das portas estreitas. Ao pé dela, muito fraco, muito langoroso, não
lhe lembrava que era padre; o Sacerdócio, Deus, a Sé, o Pecado ficavam embaixo, longe, via-os muito
esbatidos do alto do seu enlevo, como de um monte se vêem as casas desaparecer no nevoeiro dos vales; e
só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a
orelhinha. Às vezes revoltava-se contra estes desfalecimentos, batia o pé:
- Que diabo, é necessário ter juízo! É necessário ser homem!
Descia, ia folhear o seu Breviário; mas a voz de Amélia falava em cima, o tique-tique das suas
botinas batia o soalho... Adeus! a devoção caia como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções
fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cérebro, frementes, arrulhando,
roçando-se umas pelas outras como um bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo
subjugado, sofria. E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não a ver, estar longe de
Leiria, numa aldeia solitária, entre gente pacifica, com uma criada velha cheia de provérbios e de
economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e os galos cacarejam ao sol! Mas Amélia,
de cima, chamava-o - e o encanto recomeçava, mais penetrante.
A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S. Joaneira
trinchava, enquanto Amaro conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão e
enfileirando-os sobre a toalha. A Ruça, cada dia mais ética, servia mal, sempre a tossir; Amélia às
vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, atencioso.
- Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor pároco! dizia ela. E punha- lhe a mão no ombro, e os seus
olhos encontravam-se.
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estômago, sentia-se regalado, gozava
muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas;
às vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amélia debaixo da mesa; ou,
fazendo um ar sentido, dizia "que muito lhe pesava não ter uma irmãzinha assim" !
Amélia gostava de ensopar o miolo do pão no molho do guisado: a mãe dizia-lhe sempre:
- Embirro que faças isso diante do senhor pároco.
E ele então rindo:
- Pois olhe, também eu gosto. Simpatia! magnetismo!
E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o crepúsculo crescia, a Ruça
trazia o candeeiro. O brilho dos copos e das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava à S.
Joaneira mamã; Amélia sorria, de olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. Daí
a pouco vinha o café; e o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca, e
quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.
Àquela hora aparecia sempre o cônego Dias; sentiam-no subir pesadamente, dizendo da escada:
- Licença para dois!
Era ele e a cadela, a Trigueira.
- Ora Nosso Senhor vos dê muito boas-noites! dizia assomando à porta.
- Vai a gotinha de café, senhor cônego? perguntava logo a S. Joaneira.
Ele sentava-se, exalando um profundo uff! Vá lá a gotinha do café! E batendo no ombro do
pároco, olhando para a S. Joaneira:
- Então, como vai cá o seu menino?
Riam; vinham as histórias do dia. O cônego costumava trazer no bolso o Diário Popular; Amélia
interessava-se pelo romance, a S. Joaneira pelas correspondências amorosas nos anúncios.
- Ora vejam que pouca-vergonha!... dizia ela, deliciando-se.
Amaro então falava de Lisboa, de escândalos que lhe contara a tia: dos fidalgos que conhecera
"em casa do Sr, conde de Ribamar". Amélia, enlevada, escutava-o com os cotovelos sobre a mesa, roendo
vagarosamente a ponta do palito.
Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à cabeceira da cama: e a pobre
velha, com uma medonha touca de rendas negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como
uma maçã reineta, fazendo debaixo da roupa uma saliência quase imperceptível, fixava em todos, com
susto, os seus olhinhos côncavos e chorosos.
- É o senhor pároco, tia Gertrudes! gritava-lhe Amélia ao ouvido. Vem ver como está.
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A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:
- Ah! é o menino!
- É o menino, é, diziam rindo.
E a velha ficava a murmurar, espantada:
- É o menino, é o menino!
- Pobre de Cristo! dizia Amaro. Pobre de Cristo! Deus lhe dê uma boa morte!
E voltavam para a sala de jantar onde o cônego Dias, todo enterrado na velha poltrona de chita
verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:
- Ora vá um bocadinho de música, pequena!
Amélia ia sentar-se ao piano.
- Ó filha, toca o Adeus! recomendava a S. Joaneira começando a sua meia.
E Amélia, ferindo o teclado:
Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado...
A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo
enleado num sentimentalismo agradável.
Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha- se então a ler os Cânticos a
Jesus, tradução do francês publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma obrazinha beata,
escrita com um lirismo equívoco, quase torpe - que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é invocado,
reclamado com as sofreguidões balbuciantes de uma concupiscência alucinada: "Oh! vem, amado do meu
coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasame!
queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me! " E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora
obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas inflamadas onde as palavras
gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de
monólogos frenéticos de onde se exala um bafo de cio místico, vêm então imbecilidades de sacristia,
notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto! Um bispo aprovou
aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloqüências
do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e dá-se às confessadas; é a
cantárida canônica!
Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos sonoros, túmidos de desejo; e no
silêncio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos, encostava
a cabeça às costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vê-la em colete diante do toucador
desfazendo as tranças; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria
os dois seios muito brancos.
Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.
Começara então a recomendar-lhe a leitura dos Cânticos a Jesus.
- Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse ele, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto
da costura.
Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as olheiras até o meio da face. Queixou-se
de insônia, de palpitações.
- E então, gostou dos Cânticos?
- Muito. Orações lindas! respondeu.
Durante todo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste - e sem razão, às vezes, o
rosto abrasava-se-lhe de sangue.
···
Os piores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando João Eduardo vinha
passar as noites em família. Até às nove horas o pároco não saía do quarto; e quando subia para o chá
desesperava-se de ver o escrevente embrulhado no seu xale-manta, sentado junto de Amélia.
- Ai o que estes dois têm para aí palrado, senhor pároco! dizia a S. Joaneira.
Amaro tinha um sorriso lívido, partindo devagar a sua torrada, com os olhos fitos na chávena.
Amélia na presença de João Eduardo, agora, não tinha com o pároco a mesma familiaridade
alegre, mal levantava os olhos da costura; o escrevente, calado, chupava o cigarro; e havia grandes
silêncios em que se sentia o vento uivar, encanado na rua.
- Olha quem andar agora nas águas no mar! dizia a S. Joaneira, fazendo devagar a sua meia.
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- Safa! acrescentava João Eduardo.
As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro; detestava-o pela sua pouca devoção,
pelo seu bonito bigode preto. E diante dele sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.
- Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joaneira.
- Estou tão cansada! respondia Amélia apoiando-se nas costas da cadeira, com um suspirozinho
de fadiga.A S. Joaneira, então, que não gostava de "ver gente mona", propunha uma bisca de três; e o
padre Amaro, tomando o seu candeeiro de latão, descia para o quarto, muito infeliz.
Nessas noites quase detestava Amélia; achava-a casmurra. A intimidade do escrevente na casa
parecia-lhe escandalosa: decidiu mesmo falar á S. Joaneira, dizer-lhe "que aquele namoro de portas
adentro não podia ser agradável a Deus". Depois, mais razoável, resolvia esquecê-la, pensava em sair da
casa, da paróquia. Representava-se então Amélia com a sua coroa de flores de laranjeira, e João Eduardo,
muito vermelho, de casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus lençóis
de renda... E todas as provas, as certezas do amor dela pelo "idiota do escrevente" cravavam-se-lhe no
peito como punhais...
- Pois que casem, e que os leve o diabo!...
Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como para impedir que lhe penetrasse no
quarto o rumor da sua voz ou o frufru das suas saias. Mas daí a pouco, como todas as noites, escutava
com o coração aos saltos, imóvel e ansioso, os ruídos que ela fazia em cima ao despir-se, palrando ainda
com a mãe.
Um dia Amaro jantara em casa da Sra. D. Maria da Assunção; fora depois passear pela estrada
de Marrazes, e à volta, ao fim da tarde, encontrou, ao entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o
capacho, no patamar, estavam os chinelos de ourelo da Ruça.
- Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi à fonte e esqueceu-se de fechar a porta.
Lembrou-se que Amélia tinha ido passar a tarde com a Sra. D. Joaquina Gansoso, numa fazenda
ao pé da Piedade, e que a S. Joaneira falara em ir à irmã do cônego. Fechou devagar a cancela, subiu à
cozinha a acender o seu candeeiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da manhã, trazia ainda
galochas de borracha; os seus passos não faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu
no quarto da S. Joaneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surpreendido, afastou
sutilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou. - Oh Deus de Misericórdia! a S.
Joaneira, em saia branca, atacava o colete; e, sentado à beira da cama, em mangas de camisa, o cônego
Dias resfolegava grosso!
Amaro desceu, colado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e foi ao acaso para os
lados da Sé. O céu enevoara-se, leves gotas de chuva caíam.
- E esta! E esta! dizia ele assombrado.
Nunca suspeitara um tal escândalo! A S. Joaneira, a pachorrenta S. Joaneira! O cônego, seu
mestre de Moral! E era um velho, sem os ímpetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a
idade, a nutrição, as dignidades eclesiásticas! Que faria então um homem novo e forte, que sente uma
vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava no
seminário, o que lhe dizia o velho padre Sequeira, cinqüenta anos padre da Gralheira: - "Todos são
do mesmo barro!" Todos são do mesmo barro, - sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os
seminários, dirigem as consciências envoltos em Deus como numa absolvição permanente, e têm no
entanto, numa viela, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das atitudes devotas e da
austeridade do ofício, fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!
Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquela, a S. Joaneira e a filha, que viviam
assim sustentadas pela lubricidade tardia de um velho cônego? A S. Joaneira fora decerto bonita, bemfeita,
desejável - outrora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos declives da idade, àqueles
amores senis e mal pagos? As duas mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hóspedes,
viviam da concubinagem. Amélia ia sozinha à igreja, às compras, à fazenda; e com aqueles olhos tão
negros, talvez já tivesse tido um amante! - Resumia, filiava certas recordações: um dia que ela lhe estivera
mostrando na janela da cozinha um vaso de rainúnculos, tinham ficado sós, e ela, muito corada, puseralhe
a mão sobre o ombro e os seus olhos reluziam e pediam; outra ocasião ela roçara-lhe o peito pelo
braço! A noite caíra, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só
idéia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cônego era o amante da mãe!
Imaginava jà a boa vida escandalosa e regalada; enquanto em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu
cônego cheio de dificuldades asmáticas - Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias
brancas, com um xale sobre os ombros nus... Com que frenesi a esperaria! E já não sentia por ela o
mesmo amor sentimental, quase doloroso: agora a idéia muito magana dos dois padres e as duas
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concubinas, de panelinha, dava àquele homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos
pulinhos pela rua. - Que pechincha de casa!
A chuva caía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar. Subiu.
- lh, como vem frio! disse-lhe Amélia sentindo, ao apertar-lhe a mão, a umidade da névoa.
Sentada à mesa, costurava com um xale-manta pelos ombros: João Eduardo, ao pé, jogava a
bisca com a S. Joaneira.
Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe de repente, sem saber
por quê, o duro choque duma realidade antipática: e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dançar
uma sarabanda na imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam - vendo ali Amélia ao pé do noivo,
curvada sobre uma costura honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candeeiro de família!
E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens
verdes, o armário cheio de louça luzidia da Vista Alegre, o simpático e bojudo pote de água, o velho
piano mal firme nos seus três pés torneados; o paliteiro tão querido de todos - um Cupido rechonchudo
com um guarda-chuva aberto eriçado de palitos, e aquela tranqüila bisca jogada com os dichotes
clássicos. Tudo tão decente!
Afirmava-se então nas grossas roscas do pescoço da S. Joaneira, como para descobrir nelas as
marcas das beijocas do cônego: ah! tu, não há dúvida, és "uma barregã de clérigo". Mas Amélia! com
aquelas longas pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da mãe; ou,
experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurança dum amor legal! - E Amaro,
da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do
seu passado.
- Cansadinho, senhor pároco, hem? disse a S. Joaneira. E para João Eduardo: - Trunfo, faz favor,
seu cabeça no ar!
O escrevente, namorado, distraía-se.
- É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joaneira a cada momento.
Depois ele esquecia-se de comprar cartas.
- Ah menino, menino! dizia ela com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas orelhas!
Amélia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto com botões de vidro,
que lhe disfarçava a forma do seio.
E Amaro irritava-se daqueles olhos fixos na costura, daquele casaco amplo escondendo a beleza
que mais apetecia nela! E nada a esperar. Nada dela lhe pertenceria, nem a luz daquelas pupilas, nem a
brancura daqueles peitos! Queria casar - e guardava tudo para o outro, o idiota, que sorria baboso,
jogando paus! Odiou-o então, dum ódio complicado de inveja ao seu bigode negro e ao seu direito de
amar...
- Está incomodado, senhor pároco? perguntou Amélia, vendo-o mexer-se bruscamente na
cadeira.
- Não, disse ele secamente.
- Ah! fez ela, com um leve suspiro, picando rapidamente o pesponto.
O escrevente, baralhando as cartas, começara a falar de uma casa que queria alugar; a conversa
caiu sobre arranjos domésticos.
- Traz-me luz! gritou Amaro à Ruça.
Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôs a vela sobre a cômoda; o espelho estava defronte, e a
sua imagem apareceu-lhe; sentiu-se feio, ridículo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma coleira, e
por trás a coroa hedionda. Comparou-se instintivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabelo
todo, a sua liberdade! Para que hei-de eu estar a ralar- me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe
o seu nome, uma casa, a maternidade; ele só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os terrores do
pecado! Ela simpatizava talvez com ele, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar;
nada mais natural! Via-se pobre, bonita, só: cobiçava uma situação legitima e duradoura, o respeito das
vizinhas, a consideração dos lojistas, todos os proveitos da honra!
Odiou-a então, e o seu vestido afogado e a sua honestidade! A estúpida, que não percebia que ao
pé dela, sob uma negra batina, uma paixão devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciência!
Desejou que ela fosse como a mãe, - ou pior, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia impudente,
traçando a perna e fitando os homens, uma fêmea fácil como uma porta aberta...
- Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! - pensou, recaindo em si um
pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar
prostitutas! Bonito dogma!
Abafava. Abriu a janela. O céu estava tenebroso; a chuva cessara; o piar das corujas na
Misericórdia cortava só o silêncio.
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Enterneceu-se, então, com aquela escuridão, aquela mudez de vila adormecida. E sentiu subir
outra vez, das profundidades do seu ser, o amor que sentira ao princípio por ela, muito puro, dum
sentimentalismo devoto: via a sua linda cabeça, duma beleza transfigurada e luminosa, destacar da
negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ela num desfalecimento de adoração, como no culto a
Maria e na Saudação Angélica; pediu-lhe perdão ansiosamente de a ter ofendido; disse-lhe alto: És
uma santa, perdoa! - Foi um momento muito doce, de renunciamento carnal...
E, espantado quase daquelas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôsse
a pensar com saudade - que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amorável, delicado,
dengueiro, sempre de joelhos, todo de adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a
puxar-lhe as barbas! À idéia daquelas felicidades inacessíveis, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas.
Amaldiçoou, num desespero, "a pega da marquesa que o fizera padre", e o bispo que o confirmara!
- Perderam-me! perderam-me! dizia, um pouco desvairado.
Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor das saias de Amélia. Correu a
espreitar pela fechadura, cravando os dentes no beiço, de ciúme. A cancela bateu, Amélia subiu
cantarolando baixo.
- Mas a sensação do amor místico que o penetrara um momento, olhando a noite, passara; e
deitou-se, com um desejo furioso dela e dos seus beijos.
VII
Dias depois o padre Amaro e o cônego Dias tinham ido jantar com o abade da Cortegassa. - Era
um velho jovial, muito caridoso, que vivia há trinta anos naquela freguesia e passava por ser o melhor
cozinheiro da diocese. Todo o clero das vizinhanças conhecia a sua famosa cabidela de caça. O abade
fazia anos, havia outros convidados - o padre Natário e o padre Brito: o padre Natário era uma criaturinha
biliosa, seca, com dois olhos encovados, muito malignos, a pele picada das bexigas e
extremamente irritável. Chamavam-lhe o Furão. Era esperto e questionador; tinha fama de ser grande
latinista, e ter uma lógica de ferro; e dizia-se dele: é uma língua de víbora! Vivia com duas sobrinhas
órfãs, declarava-se extremoso por elas, gabava-lhes sempre a virtude, e costumava chamar-lhes as
duas rosas do seu canteiro. O padre Brito era o padre mais estúpido e mais forte da diocese; tinha o
aspecto, os modos, a forte vida de um robusto beirão que maneja bem o cajado, emborca um almude de
vinho, pega alegremente à rabiça do arado, serve de trolha nos arranjos de um alpendre, e nas sestas
quentes de Junho atira brutalmente as raparigas para cima das medas de milho. O senhor chantre, sempre
correto nas suas comparações mitológicas, chamava-lhe - o leão de Nemeia.
A sua cabeça era enorme, de cabelo lanígero que lhe descia até as . sobrancelhas: a pele curtida
tinha um tom azulado, do esforço da navalha de barba; e, nas suas risadas bestiais, mostrava dentinhos
muito miúdos e muito brancos do uso da broa.
Quando iam sentar-se à mesa chegou o Libaninho todo azafamado, gingando muito, com a calva
suada, exclamando logo em tons agudos:
- Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais um bocadinho. Passei pela igreja de Nossa
Senhora da Ermida, estava o padre Nunes a dizer uma missa de intenção. Ai, filhos! papei-a logo, venho
mesmo consoladinho!
A Gertrudes, a velha e possante ama do abade, entrou então com a vasta terrina do caldo de
galinha: e o Libaninho, saltitando em redor dela, começou os seus gracejos:
- Ai, Gertrudinhas, quem tu fazias feliz, bem eu sei!
A velha aldeã ria, com o seu espesso riso bondoso, que lhe sacudia a massa do seio.
- Olha que arranjo me aparece agora pela tarde!...
- Ai, filha! as mulheres querem-se como as pêras, maduras e de sete cotovelos. Então é que é
chupá-las! Os padres gargalharam; e, alegremente, acomodaram-se à mesa.
O jantar fora todo cozinhado pelo abade: logo à sopa as exclamações começaram:
- Sim, senhor, famoso! Disto nem no Céu! Bela coisa!
O excelente abade estava escarlate de satisfação. Era, como dizia o senhor chantre, "um divino
artista" ! Lera todos os Cozinheiros completos, sabia inúmeras receitas; era inventivo - e, como ele
afirmava dando marteladinhas no crânio, "tinha-lhe saído muito petisco daquela cachimônia" ! Vivia tão
absorvido pela sua "arte" que lhe acontecia, nos sermões de domingo, dar aos fiéis ajoelhados para
receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho.
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E ali vivia feliz, com a sua velha Gertrudes, de muito bom paladar também, com o seu quintal de ricos
legumes, sentindo uma só ambição na vida - ter um dia a jantar o bispo!
- Oh senhor pároco! dizia ele a Amaro, por quem é! mais um bocadinho de cabidela, faça favor!
Essas codeazinhas de pão ensopadas no molho! Isso! isso! Que tal, hem? - E com um aspecto modesto: -
Não é lá por dizer, mas a cabidela hoje saiu-me boa!
Estava com efeito, como disse o cônego Dias, de tentar Santo Antão no deserto! Todos tinham
tirado as capas, e, só com as batinas, as voltas alargadas, comiam devagar, falando pouco. Como no dia
seguinte era a festa da Senhora da Alegria, os sinos na capela, ao lado, repicavam; e o bom sol do meiodia
dava tons muito alegres à louça, às bojudas canecas azuis com vinho da Bairrada, aos pires de
pimentões escarlates, às frescas malgas de azeitonas pretas - enquanto o bom abade, de olho
arregalado, mordendo o beiço, ia cortando com cuidado nacos brancos do peito do capão recheado.
As janelas abriam para o quintal. Viam-se dois largos pés de camélias vermelhas crescendo junto
ao peitoril, e para além das copas das macieiras um pedaço muito vivo de céu azul-ferrete. Uma nora
chiava ao longe, lavadeiras batiam a roupa.
Sobre a cômoda, entre in-folios, na sua peanha, um Cristo perfilava tristemente contra a parede o
seu corpo amarelo, coberto de chagas escarlates: e, aos lados, simpáticos santos sob redomas de vidro,
lembravam legendas mais doces de religião amável: o bom gigante S. Cristóvão atravessando o rio com o
divino pequerrucho que sorri, e faz saltar o mundo sobre a sua mãozinha como uma péla; o doce pastor S.
Joãozinho coberto com uma pele de ovelha, e guardando os seus rebanhos, não com um cajado, mas com
uma cruz; o bom porteiro S. Pedro, tendo na sua mão de barro as duas santas chaves que servem nas
fechaduras do Céu! Nas paredes, em litografias de coloridos cruéis, o patriarca S. José apoiava-se ao
seu cajado onde florescem lírios brancos; o cavalo empinado do bravo S. Jorge pisava o ventre dum
dragão surpreendido; e o bom Santo Antônio, à beira dum regato, sorria, falando a um tubarão. O tlintlim
dos copos, o ruído das facas animava a velha sala, de teto de carvalho defumado, duma alegria desusada.
E Libaninho devorava, dizendo pilhérias.
- Gertrudinhas, flor do caniço, passa-me as bages. Não me olhes assim, magana, que me fazes
revolver os intestinos!
- O diabo é o homem! dizia a velha. Olha para o que lhe deu! Falasse-me aqui há trinta anos, seu
perdido!
- Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem me digas isso que sinto coisas pela espinha
acima!
Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito
desabotoara a batina, deixando ver a sua grossa camisola de lã da Covilhã, onde a marca da fábrica, feita
de linha azul, era uma cruz sobre o coração.
Um pobre então viera à porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e enquanto Gertrudes lhe
metia no alforje metade duma broa, os padres falaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as
freguesias.
- Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da
asa!
- Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou duramente o padre Natário. - Em muitas
fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a
choramingar Padre-Nossos pelas portas. - Súcia de mariolas, resumiu.
- Deixe lá, padre Natário, deixe lá! disse o abade. Olhe que há pobreza deveras. Por aqui há
famílias, homem, mulher e cinco filhos, que dormem no chão como porcos e não comem senão ervas.
- Então que diabo querias tu que eles comessem? exclamou o cônego Dias lambendo os dedos
depois de ter esburgado a asa do capão. Querias que comessem peru? Cada um como quem é!
O bom abade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estômago, e disse com afeto:
- A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
- Ai filhos! acudiu o Libaninho num tom choroso, se houvesse só pobrezinhos isto era o reininho
dos Céus! O padre Amaro considerou com gravidade:
- É bom que haja quem tenha cabedais para legados pios, edificações de capelas...
- A propriedade devia estar na mão da Igreja, interrompeu Natário com autoridade.
O cônego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
- Para o esplendor do culto e propagação da fé.
- Mas a grande causa da miséria, dizia Natário com uma voz pedante, era a grande imoralidade.
- Ah! lá isso não falemos! exclamou o abade com desgosto. Neste momento há só aqui na
freguesia mais de doze raparigas solteiras grávidas! Pois senhores, se as chamo, se as repreendo, põem-se
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a fungar de riso!
- Lá nos meus sítios, disse o padre Brito, quando foi pela apanha da azeitona, como há falta de
braços, vieram as maltas trabalhar. Pois agora o verás! Que desaforo! - Contou a história das maltas,
trabalhadores errantes, homens e mulheres, que andam oferecendo os braços pelas fazendas, vivem na
promiscuidade e morrem na miséria. - Era necessário andar sempre de cajado em cima deles!
- Ai! disse o Libaninho para os lados apertando as mãos na cabeça. Ai, o pecado que vai pelo
mundo! Até se me estão a eriçar os cabelos!
Mas a freguesia de Santa Catarina era a pior! As mulheres casadas tinham perdido todo o
escrúpulo.
- Piores que cabras, dizia o padre Natário alargando a fivela do colete.
E o padre Brito falou dum caso na freguesia de Amor: raparigas de dezesseis e dezoito anos que
costumavam reunir-se num palheiro - o palheiro do Silvério - e passavam lá a noite com um bando de
marmanjos!
Então o padre Natário, que já tinha os olhos luzidios, a língua solta, disse repoltreando-se na
cadeira e espaçando as palavras:
- Eu não sei o que se passa lá na tua freguesia, Brito; mas se há alguma coisa, o exemplo vem de
alto... A mim têm-me dito que tu e a mulher do regedor...
- É mentira! exclamou o Brito, fazendo-se todo escarlate.
- Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, repreendendo-o com bondade.
- É mentira! berrou ele.
- E aqui para nós, meus ricos, disse o cônego Dias baixando a voz, com o olhinho aceso numa
malícia confidencial, sempre lhes digo que é uma mulher de mão-cheia!
- É mentira! clamou o Brito. E falando de um jato: - Quem anda a espalhar isso é o morgado da
Cumiada, porque o regedor não votou com ele na eleição... Mas tão certo como eu estar aqui, quebro-lhe
os ossos! - Tinha os olhos injetados, brandia o punho: - Quebro-lhe os ossos!
- O caso não é para tanto, homem, considerou Natário.
- Quebro-lhe os ossos! Não lhe deixo um inteiro!
- Ai, sossega, leãozinho! disse o Libaninho com ternura. Não te percas, filhinho!
Mas recordando a influência do morgado da Cumiada, que era então oposição e que levava
duzentos votos à uma, os padres falaram de eleições e dos seus episódios. Todos ali, a não ser o padre
Amaro, sabiam, como disse Natário, "cozinhar um deputadozinho". Vieram anedotas; cada um celebrou
as suas façanhas.
O padre Natário na última eleição tinha arranjado oitenta votos!
- Cáspite! disseram.
- Imaginem vocês como? Com um milagre!
- Com um milagre? repetiram espantados.
- Sim, senhores.
Tinha-se entendido com um missionário, e na véspera da eleição receberam-se na freguesia
cartas vindas do Céu e assinadas pela Virgem Maria, pedindo, com promessas de salvação e ameaças do
Inferno, votos para o candidato do governo. De chupeta, hem?
- De mão-cheia! disseram todos.
Só Amaro parecia surpreendido.
- Homem! disse o abade com ingenuidade, disso é que eu cá precisava. Eu então tenho de andar
aí a estafar-me de porta em porta. - E sorrindo bondosamente: - Com o que se faz ainda alguma coisita é
com o relaxe da côngrua!
- E com a confissão, disse o padre Natário. A coisa então vai pelas mulheres, mas vai segura! Da
confissão tira-se grande partido.
O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:
- Mas enfim a confissão é um ato muito sério, e servir, assim para eleições...
O padre Natário, que tinha duas rosetas escarlates na face e gestos excitados, soltou uma palavra
imprudente:
- Pois o senhor toma a confissão a sério?
Houve uma grande surpresa.
- Se tomo a confissão a sério? gritou o padre Amaro recuando a cadeira, com os olhos
arregalados.
- Ora essa! exclamaram. Oh, Natário! Oh, menino!
O padre Natário exaltado queria explicar, atenuar:
- Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu
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não sou pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que um meio de persuasão, de saber o que se passa, de
dirigir o rebanho para aqui ou para ali... E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é -
a absolvição é uma arma!
- Uma arma! exclamaram.
O abade protestava, dizendo:
- Oh, Natário! oh, filho! isso não!
O Libaninho tinha-se benzido; e, dizia, "tinha já um tal terror que até lhe tremiam as pernas" !
Natário irritou-se:
- Então talvez me queiram dizer, gritou, que qualquer de nós, pelo fato de ser padre, porque o
bispo lhe impôs três vezes as mãos e porque lhe disse o accipe, tem missão direta de Deus, - é Deus
mesmo para absolver? !
- Decerto! exclamaram, decerto!
E o cônego Dias disse meneando uma garfada de bages:
- Quorum remiseris peccata, remittuntur eis. É a fórmula. A fórmula é tudo, menino...
- A confissão é a essência mesma do sacerdócio, soltou o padre Amaro com gestos escolares,
fulminando Natário. Leia Santo Inácio! Leia S. Tomás!
- Anda-me com ele! gritava o Libaninho pulando na cadeira, apoiando Amaro. - Anda-me com
ele, amigo pároco! Salta-me no cachaço do ímpio!
- Oh, senhores! berrou Natário furioso com a contradição, o que eu quero é que me respondam a
isto. E voltando-se para Amaro: - O senhor, por exemplo, que acaba de almoçar, que comeu o seu pão
torrado, tomou o seu café, fumou o seu cigarro, e que depois se vai sentar no confessionário, às vezes
preocupado com negócios de família ou com faltas de dinheiro, ou com dores de cabeça, ou com dores de
barriga, imagina o senhor que está ali como um Deus para absolver?
O argumento surpreendeu.
O cônego Dias, pousando o talher, ergueu os braços, e com uma solenidade cômica exclamou:
- Hereticus est! É herege!
- Hereticus est! também eu digo, rosnou o padre Amaro.
Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa do arroz-doce.
- Não falemos nessas coisas, não falemos nessas coisas, disse logo prudentemente o abade.
Vamos ao arrozinho. Gertrudes, dá cá a garrafinha do Porto!
Natário, debruçado sobre a mesa, ainda arremessava argumentos a Amaro:
- Absolver é exercer a graça. A graça só é atributo de Deus: em nenhum autor encontro que a
graça seja transmissível. Logo...
- Ponho duas objeções... gritou Amaro, com o dedo em riste, em atitude de polêmica.
- Oh filhos! oh filhos, acudiu o bom abade aflito. Deixem a sabatina, que até nem lhes sabe o
arrozinho!
Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo os copos devagar, com as precauções
clássicas:
- Mil oitocentos e quinze! dizia. Disto não se bebe todos os dias.
Para o saborear, depois de o fazer reluzir à luz na transparência dos copos, repoltreavam-se nas
velhas cadeiras de couro; começaram as saúdes! A primeira foi ao abade, que murmurava: - Muita
honra... muita honra... Tinha os olhos chorosos de satisfação.
- A Sua Santidade Pio IX! gritou então o Libaninho brandindo o cálice. Ao mártir!
Todos beberam comovidos. Libaninho entoou em voz de falsete o hino de Pio IX: o abade,
prudente, fê-lo calar por causa do hortelão que no quintal aparava o buxo.
A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natário tornara-se terno, falava das suas sobrinhas, "as
suas duas rosas", e citava Virgílio, molhando as castanhas em vinho. Amaro, todo deitado para trás na
cadeira, as mãos nos bolsos, olhava maquinalmente as árvores do jardim, pensando vagamente em
Amélia, nas suas formas; suspirou mesmo com um desejo dela - enquanto o padre Brito, rubro, queria
convencer os republicanos a marmeleiro.
- Viva o marmeleiro do padre Brito! gritou entusiasmado o Libaninho.
Mas Natário começara a discutir com o cônego história eclesiástica: e, muito questionador,
voltou aos seus argumentos vagos sobre a doutrina da Graça: afirmava que um assassino, um parricida
poderia ser canonizado - se se tivesse revelado o estado de Graça! Divagava, com frases de escola em que
se lhe pegava a língua. Citou santos que tinham sido escandalosos; outros que pela sua profissão deviam
ter conhecido, praticado, amado o vício. Exclamou com as mãos na cinta:
- Santo Inácio foi militar!
- Militar? gritou o Libaninho. - E erguendo-se, correndo a Natário, lançando-lhe um braço ao
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pescoço com uma ternura pueril e avinhada: - Militar? E que era ele? Que era ele, o meu devoto Santo
Inácio?
Natário repeliu-o:
- Deixe-me, homem! Era sargento de caçadores.
Houve uma enorme risada.
O Libaninho ficara extático.
- Sargento de caçadores! dizia erguendo as mãos num ímpeto beato. Meu rico Santo Inácio!
Bendito e louvado seja ele por toda a eternidade!
E então o abade propôs que fossem tomar café para debaixo da parreira.
Eram três horas. Ao erguer-se todos cambaleavam um pouco, arrotando formidavelmente, com
risadas espessas; só Amaro tinha a cabeça lúcida, as pernas firmes - e sentia-se muito terno.
- Pois agora, colegas, disse o abade sorvendo o último gole de café, o que está a calhar é um
passeio à fazenda.
- Para esmoer, rosnou o cônego erguendo-se com dificuldade. vamos lá à fazenda do abade!
Foram pelo atalho da Barroca, um caminho estreito de carros. O dia estava muito azul, dum sol
tépido. A vereda seguia entre valados eriçados de silvas, para além as terras lisas estendiam-se cobertas
de restolho; a espaços as oliveiras destacavam, com grande nitidez, na sua folhagem fina; para o horizonte
arredondavam-se colinas cobertas da rama verde-negra dos pinheiros; havia um grande silêncio; só às
vezes, ao longe, num caminho, um carro chiava. E naquela serenidade da paisagem e da luz, os padres
iam caminhando devagar, tropeçando um pouco, de olho aceso, estômago enfartado, chacoteando e
achando a vida boa.
O cônego Dias e o abade, de braço dado, caturravam. O Brito, ao lado de Amaro, jurava que
havia de beber o sangue ao morgado da Cumeada.
- Prudência, colega Brito, prudência, dizia Amaro chupando o cigarro.
E o Brito, com passadas de carretão, rosnava.
- Hei-de comer-lhe os fígados.
O Libaninho atrás, só, cantarolava em falsete:
- Passarinho trigueiro,
Salta cá fora...
Adiante de todos ia o padre Natário: levava a capa no braço, arrastando pelo chão; a batinha
desabotoada por trás deixava ver o forro imundo do colete; e as suas pernas escanifradas, com as meias
pretas de lã cheias de passagens, faziam bordos que o atiravam contra o silvado.
E no entanto Brito, com grandes bafos de vinho, roncava:
- Eu só me contentava em agarrar num cajado e correr tudo! tudo! - e gesticulava com um gesto
imenso que abrangia o mundo!
- Tem as asas quebradas,
Não pode agora...
Gania atrás o Libaninho.
Mas pararam de repente: Natário adiante gritava com voz furiosa:
- Seu burro, você não vê? Sua besta!
Era à volta do atalho. Tropeçara com um velho que conduzia uma ovelha; ia caindo; e ameaçavao
com o punho fechado numa raiva avinhada.
- Queira vossa senhoria perdoar, dizia humildemente o homem.
- Sua besta! berrava Natário com os olhos chamejantes. Que o racho!
O homem balbuciava, tinha tirado o chapéu; viam-se os seus cabelos brancos; parecia ser um
antigo criado da lavoura envelhecido no trabalho; era talvez avô - e curvado, vermelho de vergonha,
encolhia-se com as sebes para deixar passar no estreito caminho de carros os senhores padres joviais e
excitados da vinhaça!
Amaro não os quis acompanhar até à fazenda. Ao fim da aldeia, no cruzeiro, tomou pelo
caminho de Sobros, voltou para Leiria.
- Olhe que é uma légua à cidade, dizia o abade. Eu mando-lhe aparelhar a égua, colega.
- Qual história, abade, a perninha é rija! - e, traçando alegremente a capa, partiu cantarolando o
Adeus...
Ao pé da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se, ao comprido dum muro de quinta coberto de
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musgos e eriçada no alto de luzidios fundos de garrafas. Quando Amaro chegou próximo ao portão de
carros, baixo e pintado de vermelho, encontrou no meio do caminho, parada, uma grande vaca malhada;
Amaro divertido espicaçou-a com o guarda-chuva; a vaca trotou balouçando a papeira - e Amaro ao
voltar-se viu Amélia, ao portão, que saudava, dizendo toda risonha:
- Então está-me a espantar o gado, senhor pároco?
- É a menina! Que milagre é este?
Ela fez-se um pouco vermelha:
- Vim à quinta com a D. Maria da Assunção. Vim dar uma vista de olhos à fazenda.
Ao pé de Amélia uma rapariga acamava couves numa canastra.
- Então esta é que é a quinta da D. Maria?
E Amaro deu um passo para dentro do portão.
Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma sombra doce, estendia-se até à casa que se
entrevia no fundo, branquejando ao sol.
- É. A nossa fazenda fica do outro lado, mas entra-se também por aqui. Vá, Joana, avia-te!
A rapariga pôs a canastra à cabeça, deu as boas-tardes, meteu pelo caminho de Sobros, batendo
muito os quadris.
- Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa propriedade, considerava o pároco.
- Venha ver a nossa fazenda! disse Amélia. É uma migalhinha de terra, mais para fazer uma
idéia. Vai-se por aqui mesmo... Olhe, vamos ter lá baixo com a D. Maria, quer?
- Valeu. Vamos lá à D. Maria, disse Amaro.
Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O chão estava cheio de folhas secas, e, entre os
troncos espaçados, moutas de hortênsias pendiam abatidas, amareladas dos chuveiros; ao fundo a casa
baixa, velha, de um andar só, assentava pesadamente. Ao longo da parede grandes abóboras amadureciam
ao sol, e no telhado, todo negro do Inverno, esvoaçavam pombos. Por trás o laranjal formava uma massa
de folhagens verde- escuras; uma nora chiava monotonamente.
Um rapazinho passou com um balde de lavagem.
- Para onde foi a senhora, João? perguntou Amélia.
- Foi pro olival, disse o rapaz com a sua vozinha arrastada. O olival era longe, no fundo da
quinta: havia ainda grandes lamas, não se podia ir lá sem tamancos.
- Vai-se a gente sujar toda, disse Amélia. Deixar lá a D. Maria, hem? Vamos nós ver a quinta...
Por aqui, senhor pároco...
Estavam defronte dum velho muro onde cresciam clematites. Amélia abriu uma porta verde; e
por três degraus de pedra desconjuntados desceram a uma rua toldada por uma larga parreira. Junto do
muro cresciam rosas de todo o ano; do outro lado, por entre os pilares de pedra que sustentavam a latada e
os pés torcidos das cepas, via-se, batido de luz, com tons amarelados, um grande campo de erva; os tetos
baixos do curral coberto de colmo destacavam ao longe em escuro, e desse lado um fumozinho leve e
branco perdia-se no ar muito azul.
Amélia a cada momento parava, explicava a quinta. - Ali ia semear- se cevada; além havia de ver
o cebolinho, estava muito bonito...
- Ah! a D. Maria da Assunção traz isto muito bem tratado!
Amaro ouvia-a falar, com a cabeça baixa, olhando-a de lado; a sua voz naquele silêncio dos
campos parecia-lhe mais rica, mais doce; o grande ar dava-lhe uma cor mais picante às faces; o seu olhar
rebrilhava. Para saltar umas lamas tinha apanhado o vestido; e a brancura da meia, que ele entreviu,
perturbou-o como um começo da sua nudez.
Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao comprido dum regueiro. Amélia riu muito do
pároco, que tinha medo dos sapos. Ele então exagerou os seus sustos. Ó menina Amélia, haveria víboras?
Ele roçava-se por ela, afastando-se das ervas altas.
- Vê aquele valado? Pois para o lado de lá é a nossa fazenda. Entra- se pela cancela, vê? Mas
veja lá se está cansado! Que o senhor parece-me que não é grande caminhador... Ai, um sapo!
Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o ombro. Ela empurrou-o docemente, e com um riso cálido:
- Seu medroso! seu medroso!
Estava toda contente, toda viva. Falava na sua fazenda com uma vaidadezinha, satisfeita de
entender da lavoura, de ser proprietária. - A cancela está fechada, parece - disse Amaro.
- Está, fez ela. - Apanhou as saias, deu uma carreirinha. Estava fechada! Que pena! E abalava,
impaciente, as grades estreitas, entre as duas fortes ombreiras de madeira encravadas na espessura do
silvado.
- Foi o caseiro que levou a chave!
Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando muito tempo a voz: - Antônio! Antônio!
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Ninguém respondeu.
- Anda lá para o fundo da quinta! disse ela. Que seca! Se o senhor pároco quisesse, aqui adiante
pode-se passar. Há uma abertura no valado, chamam-lhe o salto da cabra. Pode a gente saltar para o outro
lado.
E caminhando rente ao silvado, chapinhando a lama, toda alegre:
- Quando eu era pequena nunca passava pela cancela! Saltava sempre por ali. E cada trambolhão,
quando o chão estava resvaladiço com a chuva! Era um vivo demônio, aqui onde me vê! Ninguém há-de
dizer, senhor pároco, hem? Ai! vou-me a fazer velha! - E voltando-se para ele, com um risinho onde luzia
o esmalte dos dentes:
- Não é verdade? Estou-me a fazer velha, hem?
Ele sorria. Custava-lhe falar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois do vinho do abade, amoleciao:
e a figura dela, os seus ombros, os seus encontros davam-lhe um desejo contínuo e intenso.
- Aqui está o salto da cabra, disse Amélia parando.
Era uma abertura estreita no valado: a terra do outro lado, mais baixa, estava toda lamacenta.
Via-se dali a fazenda da S. Joaneira: o campo plano estendia-se até um olival, com a erva fina muito
estrelada de pequenos malmequeres brancos; uma vaca preta, de grandes malhas, pastava; e para além
viam-se tetos aguçados dos casais, onde voavam revoadas de pardais.
- E agora? perguntou Amaro.
- Agora saltar, disse ela rindo.
- Cá vai! exclamou ele.
Traçou a capa, saltou: mas escorregou nas ervas úmidas, - e imediatamente Amélia, debruçandose,
rindo muito, com grandes acenos de mãos:
- E agora adeus, senhor pároco, que eu vou ter com a D. Maria. Aí fica preso na fazenda. Para
cima não pode o senhor pular, pela cancela não pode o senhor passar! É o senhor pároco que está preso...
- Ó menina Amélia! ó menina Amélia!
Ela cantarolava-lhe, escarnecendo:
Fico sozinha à varanda,
Que o meu bem está na prisão!
Aquelas maneirinhas excitavam o padre - e com os braços erguidos, a voz cálida:
- Salte, salte!
Ela então fez voz de mimo:
- Ai, tenho medinho! tenho medinho...
- Salte, menina!
- Lá vai! gritou ela bruscamente.
Saltou, foi cair-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou, firmou-se - e sentindo entre
os braços o corpo dela, apertou-a brutalmente e beijou-a com furor no pescoço
Amélia desprendeu-se, ficou diante dele, sufocada, com a face em brasa, compondo na cabeça e
em roda do pescoço, com as mãos trêmulas, as pregas da manta de lã. Amaro disse-lhe:
- Ameliazinha!
Mas ela de repente apanhou os vestidos, correu ao comprido do valado. Amaro, com grandes
passadas, seguiu-a atarantado. Quando chegou à cancela, Amélia falava ao caseiro, que aparecia com a
chave.
Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois a rua coberta com a parreira. Amélia adiante
palrava com o caseiro; e atrás Amaro, de cabeça baixa, seguia muito murcho. Ao pé da casa Amélia
parou, fazendo-se vermelha, compondo sempre a manta em redor do pescoço:
- Ó Antônio, disse, ensine o portão ao senhor pároco. Muito boas tardes, senhor pároco.
E através das terras úmidas correu para o fundo da quinta, para os lados do olival.
A Sra. D. Maria da Assunção ainda lá estava, sentada numa pedra, tagarelando com o tio
Patrício; um bando de mulheres, com grandes varas, batiam em redor a ramagem das oliveiras.
- Que é isso, tonta? De onde vens tu a correr, rapariga? Credo! que doida!
- Vim a correr, disse ela toda vermelha, sufocada.
Sentou-se ao pé da velha; e ficou imóvel, com as mãos caídas no regaço, respirando fortemente,
os beiços entreabertos, os olhos fixos numa abstração. Todo o seu ser se abismava numa só sensação:
- Gosta de mim! Gosta de mim!
···
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Estava há muito namorada do padre Amaro - e às vezes, só, no seu quarto, desesperava-se por
imaginar que ele não percebia nos seus olhos a confissão do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas o
ouvia pela manhã pedir de baixo o almoço, sentia uma alegria penetrar todo o seu ser sem razão, punha-se
a cantarolar com uma volubilidade de pássaro. Depois via-o um pouco triste. Por quê? Não conhecia o seu
passado; e lembrada do frade de Évora, pensou que ele se fizera padre por um desgosto de amor.
Idealizou-o então: supunha-lhe uma natureza muito terna, parecia- lhe que da sua pessoa airosa e pálida se
desprendia uma fascinação. Desejou tê-lo por confessor: como seria estar ajoelhada aos pés dele, no
confessionário, vendo de perto os seus olhos negros, sentindo a sua voz suave falar do Paraíso! Gostava
muito da frescura da sua boca; fazia-se pálida à idéia de o poder abraçar na sua longa batina preta!
Quando Amaro saía, ia ao quarto dele, beijava a travesseirinha, guardava os cabelos curtos que tinham
ficado nos dentes do pente. As faces abrasavam-se-lhe quando o ouvia tocar a campainha.
Se Amaro jantava fora com o cônego Dias, estava todo o dia impertinente, ralhava com a Ruça,
às vezes mesmo dizia mal dele, "que era casmurro, que era tão novo que nem inspirava respeito". Quando
ele falava de alguma nova confessada, amuava, com ciúme pueril. A sua antiga devoção renascia, cheia
de um fervor sentimental: sentia um vago amor físico pela Igreja; desejaria abraçar, com pequeninos
beijos demorados, o altar, o órgão, o missal, os santos, o Céu, porque não os distinguia bem de Amaro, e
pareciam-lhe dependências da sua pessoa. Lia o seu livro de missa pensando nele como no seu Deus
particular. E Amaro não sabia, quando passeava agitado pelo quarto, que ela em cima o escutava,
regulando as palpitações do seu coração pelas passadas dele, abraçando o travesseiro, toda desfalecida de
desejos, dando beijos no ar, onde se lhe representavam os lábios do pàroco!
···
A tarde caía quando D. Maria e Amélia voltaram para a cidade. Amélia adiante, calada,
chibatava a sua burrinha, enquanto D. Maria da Assunção vinha palrando com o moço da quinta, que
segurava a arreata. Ao passarem junto à Sé tocou a Ave-Maria. E Amélia, rezando, não podia destacar os
olhos das cantarias da igreja tão grandiosamente erguidas, decerto para que ele ali celebrasse!
Lembravam-lhe então domingos em que o vira, ao repicar dos sinos, dar a bênção dos degraus do altarmor:
e todos se curvavam, mesmo as senhoras do morgado Carreiro, mesmo a Sra. baronesa da Via-Clara
e a mulher do governador civil, tão orgulhosa com o seu nariz de cavalete! Dobravam-se sob os seus
dedos erguidos, e achavam decerto também bonitos os seus olhos negros! E era ele que a tinha apertado
nos braços, ao pé do valado! Sentia ainda no pescoço a pressão cálida dos seus beiços: uma paixão
flamejou como uma chama por todo o seu ser: largou a arreata do burrinho, apertou as mãos contra o
peito, e cerrando os olhos, lançando toda a sua alma numa devoção:
- Oh, Nossa Senhora das Dores, minha madrinha, faz que ele goste de mim!
No adro lajeado cônegos passeavam, conversando. A botica defronte já tinha luz, os bocais
reluziam; e por detrás da balança a figura do farmacêutico Carlos, com o seu boné bordado a miçanga,
movia-se majestosamente.
VIII
O padre Amaro voltara para casa aterrado.
- E agora? e agora? dizia ele, encostado ao canto da janela, sentindo o coração encolhido.
Devia sair imediatamente da casa da S. Joaneira! Não podia continuar ali, na mesma
familiaridade, depois de ter tido "aquele atrevimento com a pequena".
Que ela não ficara muito indignada -. apenas atordoada; contivera-a talvez o respeito
eclesiástico, a delicadeza para com o hóspede, a atenção para com o amigo do cônego. Mas podia contar à
mãe, ao escrevente... Que escândalo! E via o senhor chantre, traçando a perna e fitando-o, - que era a sua
atitude de repreensão - dizer-lhe com pompa: - "São esses desregramentos que desonram o sacerdócio.
Não se comportaria de outro modo um Sátiro no monte Olimpo!" - Poderiam desterrá-lo outra vez para
alguma freguesia da serra!... Que diria a Sra. condessa de Ribamar?
E depois, se persistisse em vê-la na intimidade, ter constantemente presentes aqueles olhos
negros, o sorriso cálido que lhe fazia uma covinha no queixo, a curva daquele peito - a sua paixão,
crescendo surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, torná-lo-ia doido, "podia fazer alguma
asneira"!
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Decidiu-se então a ir falar ao cônego Dias: a sua natureza fraca necessitava sempre receber
forças duma razão, duma experiência alheia: costumava consultar ordinariamente o cônego que, pelo
hábito da disciplina eclesiástica, ele julgava mais inteligente por ser seu superior na hierarquia; e não
perdera, desde o seminário, a sua dependência de discípulo. Depois, se quisesse arranjar uma casa e uma
criada para ir viver só, necessitava o auxílio do cônego, que conhecia Leiria como se a tivesse edificado.
Encontrou-o na sala de jantar. O candeeiro de azeite esmorecia com um morrão avermelhado. Os
tições da braseira, cobertos duma pulverização de cinza, revermelhavam vagamente. E o cônego, sentado
numa cadeira de braços, com o capote pelos ombros, os pés embrulhados num cobertor, amodorrado no
calor do lume, com o Breviário sobre os joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a Trigueira estirada
dormitava como ele.
Aos passos de Amaro o cônego abriu muito devagar os olhos, rosnou:
- Ia adormecendo, hem!
- É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que preguiça é essa?
- Ah! é você? disse o cônego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de casa do abade, tomei
uma gota de chá, veio o quebranto... Então que é feito?
- Vim por aqui.
- Pois o abade deu-nos um rico jantar. A cabidela estava de mão- cheia! Eu carreguei-me um
bocado, disse o cônego rufando com os dedos na capa do Breviário.
Amaro, sentado ao pé dele, remexia devagar o brasido:
- Sabe você, padre-mestre? disse ele de repente. Ia acrescentar: - Aconteceu-me um caso! - Mas
reteve-se, murmurou: - Estou hoje esquisito; tenho andado ultimamente fora dos eixos...
- Você, com efeito, anda amarelo, disse o cônego, considerando-o. Purgue-se, homem!
Amaro esteve um momento calado, a olhar o lume.
- Sabe? estou com idéia de mudar de casa.
O cônego ergueu a cabeça, arregalou os olhinhos sonolentos:
- Mudar de casa! Ora essa! por quê?
O padre Amaro chegou a cadeira para ele, e falando baixo:
- Você percebe... Tenho estado a pensar, é assim esquisito estar em casa de duas mulheres, com
uma rapariga...
- Ora, histórias! Que me vem você contar? Você é hóspede... Deixe- se disso, homem! É como
quem está na hospedaria.
- Não, não, padre-mestre, eu cá me entendo...
E suspirou; desejava que o cônego o interrogasse, facilitasse as confidências.
- Então só hoje é que pensa nisso, Amaro?!
- É verdade, tenho estado a pensar hoje nisto. Tenho as minhas razões. - Ia a dizer: - Fiz uma
tolice, - mas acanhou-se.
O cônego olhou para ele um momento:
- Homem! seja franco!
- Sou.
- Você acha aquilo caro?
- Não! disse o outro com uma negação impaciente.
- Bem, então é outra coisa...
- É. Você que quer? - E num tom magano, com que julgou agradar ao cônego: - A gente também
gosta do que é bom...
- Bem, bem, disse o cônego rindo, percebo. Você, como eu sou amigo da casa, quer-me dizer por
bons modos que tem nojo de tudo aquilo!
- Tolice! disse Amaro, erguendo-se, irritado de tanta obtusidade.
- Oh, homem! exclamou o cônego abrindo os braços. Você quer sair da casa? Por alguma é! Ora
a mim parece-me que melhor...
- É verdade, é verdade, dizia Amaro que dava agora grandes passadas pela sala. Mas estou com
esta ferrada! Veja você se me arranja uma casita barata com alguma mobília... Você entende melhor
dessas coisas...
O cônego ficou calado, muito enterrado na poltrona, coçando devagar o queixo.
- Uma casita barata, rosnou por fim. Eu verei, eu verei... talvez.
- Você compreende, acudiu vivamente Amaro, chegando-se ao cônego. A casa da S. Joaneira...
Mas a porta rangeu, D. Josefa Dias entrou: e depois de conversarem sobre o jantar do abade, o
catarro da pobre D. Maria da Assunção, a doença de fígado que ia minando o engraçado cônego Sanches -
Amaro saiu, quase contente agora de se não "ter desabotoado com o padre-mestre".
47
O cônego ficou ainda ao pé do lume, ruminando. Aquela resolução de Amaro de deixar a casa da
S. Joaneira era bem-vinda: quando ele o trouxera de hóspede para a Rua da Misericórdia, combinara com
a S. Joaneira diminuir-lhe a mesada que havia anos lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas arrependeu-se
logo: a S. Joaneira, se não tinha hóspede, dormia só no primeiro andar: o cônego podia então saborear
livremente os carinhos da sua velhota;- e Amélia na sua alcova, em cima, era alheia a este
"conchegozinho". Quando veio o padre Amaro, a S. Joaneira cedeu-lhe o quarto, e dormia numa cama de
ferro ao pé da filha: e o cônego então reconheceu, como ele disse, desconsolado - "que aquele arranjo
tinha estragado tudo". Para gozar as doçuras da sesta com a sua S. Joaneira, era necessário que Amélia
jantasse fora, que a Ruça estivesse na fonte, outras combinações importunas: e ele, cônego do cabido, na
egoísta velhice, quando precisava ter recato com a sua saúde, via-se obrigado a esperar, a espreitar, a ter
nos seus prazeres regulares e higiênicos as dificuldades dum colegial que ama a senhora professora. Ora
se Amaro saísse, a S. Joaneira descia ao seu quarto, no primeiro andar; vinham as antigas
comodidades, as tranqüilas sestas. É verdade que tinha de dar a antiga mesada... Daria a mesada!
- Que diabo! ao menos está um homem à sua vontade, resumiu ele.
- Que está para aí o mano a falar só? perguntou a Sra. D. Josefa, despertando do quebranto em
que ia caindo, ao pé do lume.
- Estava cá a ma1ucar como hei-de castigar a carne na quaresma - disse o cônego com um riso
grosso.
···
A essa hora a Ruça chamava o padre Amaro para o chá: e ele subia devagar, com o coração
pequenino, receando encontrar a S. Joaneira muito carrancuda, já informada do insulto. Achou só Amélia
- que tendo-lhe sentido os passos na escada tomara rapidamente a costura, e, com a cabeça muito baixa,
dava grandes agulhadas, vermelha como o lenço que abainhava para o cônego.
- Muito boa noite, menina Amélia.
- Muito boa noite, senhor pároco.
Amélia costumava sempre ter um olá! ou um ora viva! muito amável; aquela secura aterrou-o;
disse-lhe logo muito perturbado:
- Menina Amélia, eu peço-lhe que me perdoe... Foi um atrevimento... Eu nem soube o que fiz...
Mas acredite... Estou resolvido a sair daqui. Até já pedi ao Sr, cônego Dias que me arranjasse casa...
Falava com o rosto baixo - e não via Amélia erguer os olhos para ele, surpreendida e toda
desconsolada.
Neste momento a S. Joaneira entrou, e logo da porta, abrindo os braços:
- Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o Sr. padre Natário: grande jantar! Conte lá, conte lá!
Amaro teve de dizer os pratos, as pilhérias do Libaninho, a discussão teológica; depois falaram
da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a dizer à S. Joaneira que ia deixar a casa, - o que era,
coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostões por dial
Na manhã seguinte o cônego foi a casa de Amaro, pela manhã, antes de ir ao coro. O pároco fazia a barba
à janela:
- O1á, padre-mestre! Que há de novo?
- Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manhã... Há uma casita lá para os meus
lados, que é um achado. Era do major Nunes, que vai mudado para o 5.
Aquela precipitação desagradou a Amaro: perguntou, dando desconsoladamente o fio à navalha:
- Tem mobília?
- Tem mobília, tem louças, tem roupas, tem tudo.
- Então...
- Então é entrar e começar a gozar. E aqui para nós, Amaro, você tem razão. Estive a pensar no
caso... É melhor para você viver só. De modo que vista-se, e vamos ver a casita.
Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
A casa era na Rua das Sousas, de um andar, muito velha, com a madeira carunchosa: a mobília,
como disse o cônego, "podia passar a veteranos"; algumas litografias desbotadas pendiam lugubremente
de grandes pregos negros; e o imundo major Nunes deixara os vidros quebrados, os soalhos todos
escarrados, as paredes riscadas de fósforos, e até sobre um poial da janela duas peúgas quase negras.
Amaro aceitou a casa. E nessa mesma manhã o cônego ajustou-lhe uma criada, a Sra. Maria Vicência,
pessoa muito devota, alta e magra como um pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como
considerou o cônego Dias) era a própria irmã da famosa Dionísia!
A Dionísia fora outrora a Dama das Camélias, a Ninon de Lenclos, a Manon de Leiria: gozara a
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honra de ser concubina de dois governadores civis e do terrível morgado da Sertejeira; e as paixões
frenéticas que inspirara tinham sido para quase todas as mães de família de Leiria causa de lágrimas e de
fanicos. Agora engomava para fora, encarregava-se de empenhar objetos, entendia muito de partos,
protegia "o rico adulteriozinho" segundo a singular expressão do velho D. Luís da Barrosa, cognominado
o infame, fornecia lavradeirinhas aos senhores empregados públicos, sabia toda a história amorosa do
distrito. E via-se sempre na rua a Dionísia com o seu xale de xadrez traçado, o pesado seio tremendo
dentro dum chambre sujo, o passinho discreto e os antigos sorrisos - mas a que faltavam já os dois dentes
de diante. O cônego logo nessa tarde deu parte à S. Joaneira da resolução de Amaro. Foi um grande espanto
para a excelente senhora! Queixou-se, com amargura, da ingratidão do senhor pároco.
O cônego tossiu grosso e disse:
- Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo por quê: é que este arranjo do quarto
em cima, etc., está-me a arrasar a saúde.
Deu outras razões de prudência higiênica, e acrescentou passando-lhe com bondade os dedos
pelo pescoço:
- E o que é perder a conveniência, não se aflija a senhora! Eu darei para a panela como dantes; e
como a colheita foi boa porei mais meia moeda para os arrebiques da pequena. Ora venha de lá uma
beijoca, Augustinha, sua brejeira! E ouça, como-lhe cá as sopas.
Amaro no entanto embaixo ia emalando a sua roupa. Mas a cada momento parava, dava um ai
triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama fofa, a mesa com a sua toalha branca, a larga cadeira
forrada de chita onde ele lia o Breviário, ouvindo, por cima, cantarolar Amélia.
- Nunca mais! pensava. Nunca mais!
Adeus as boas manhãs passadas ao pé dela, vendo-a costurar! Adeus as alegres sobremesas, que
se prolongavam à luz do candeeiro! Adeus os chás, ao pé da braseira, quando o vento uivava fora e
cantavam as frias goteiras! Tudo tinha acabado!
A S. Joaneira e o cônego apareceram então à porta do quarto. O cônego resplandecia; e a S.
Joaneira disse, muito magoada:
- Já sei, já sei, seu ingrato!
- É verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os ombros tristemente. Mas há razões... Eu
sinto...
- Olhe, senhor pároco, disse a S. Joaneira, não se ofenda com o que lhe vou dizer, mas eu já lhe
queria como filho... e levou o lenço aos olhos.
- Tolices, exclamou o cônego. Pois então ele não pode vir aqui em amizade, passar as noites para
o cavaco, tomar o seu café?... O homem não vai para o Brasil, senhora!
- Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era tê-lo de portas adentro!
Enfim, ela bem sabia que a gente na sua casa está muito melhor... Fez-lhe então grandes
recomendações sobre a lavadeira, que mandasse buscar o que quisesse, louças, lençóis...
- E veja lá, não lhe esqueça alguma coisa, senhor pároco!
- Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado.
E continuando a arrumar a sua roupa, o pároco desesperava-se agora contra a resolução que
tomara. A pequena evidentemente não tinha aberto bico! Para que sairia então daquela casa tão barata, tão
confortável, tão amiga? E odiava o cônego pelo seu zelo tão precipitado.
O jantar foi triste. Amélia, decerto para explicar a sua palidez, queixava-se de dores na cabeça.
Ao café o cônego quis a sua "dose de música"; e Amélia, ou maquinalmente ou com intenção, disse a
canção querida:
Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado!
Soa a hora, o momento fadado.
É forçoso deixar-te e partir!
Então, àquela chorosa melodia repassada das tristezas da separação, Amaro sentiu-se tão
perturbado que teve de se erguer bruscamente, ir encostar o rosto à vidraça, esconder as duas lágrimas que
irreprimivelmente lhe saltavam das pálpebras. Os dedos de Amélia embrulhavam-se também no teclado;
até a mesma S. Joaneira disse:
- Oh! filha, toca outra coisa, credo!
Mas o cônego, erguendo-se pesadamente:
- Pois senhores, vão sendo horas. Vamos lá, Amaro. Eu vou consigo até a Rua das Sousas...
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Amaro então quis dizer adeus à idiota; mas depois de um forte acesso de tosse, a velha dormia,
muito fraca.
- Deixá-la sossegada, disse Amaro. E apertando a mão á S. Joaneira: - Muito obrigado por tudo,
minha senhora, acredite...
Calou-se, com um soluço na garganta.
A S. Joaneira tinha levado aos olhos a ponta do seu avental branco.
- Oh, senhora! disse o cônego rindo-se, já há bocado lhe disse, o homem não vai para as Índias!
- A gente é pela amizade que lhes ganha, choramingou a S. Joaneira.
Amaro tentou gracejar. Amélia, muito branca, mordia o beicinho.
Enfim Amaro desceu: e o João Ruço, que na sua chegada a Leiria lhe trouxera o baú para a Rua
da Misericórdia, muito bêbedo, cantarolando o Bendito, - levava-lho agora para a Rua das Sousas, bêbedo
também, mas trauteando o Rei-chegou.
···
Quando Amaro, nessa noite, se viu só naquela casa tristonha, sentiu uma melancolia tão
pungente e um tédio tão negro da vida, que, com a sua natureza lassa, teve vontade de se encolher a um
canto e ficar ali a morrer!
Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro, pequena, com um
colchão duro e uma coberta vermelha; o espelho com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia
lavatório, a bacia e o jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janela; tudo ali
cheirava a mofo; e fora, na rua negra, caia sem cessar a chuva triste. Que existência! E seria sempre
assim!...
Desesperou-se então contra Amélia: acusou-a, com o punho fechado, das comodidades que
perdera, da falta de mobília, da despesa que ia ter, da solidão que o regelava! Se fosse mulher de coração
devia ter vindo ao seu quarto, dizer-lhe: Sr. padre Amaro, para que sai de casa? Eu não estou zangada! -
Porque enfim quem irritara o seu desejo? Ela, com as suas maneirinhas temas, os seus olhinhos
adocicados! Mas não, deixara-o ema. lar a roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga, indo tocar
com estrondo a valsa do Beijo!
Jurou então não voltar a casa da S. Joaneira. E, a grandes passadas pelo quarto, pensava - no que
havia de fazer para humilhar Amélia. Q quê? Desprezá-la como uma cadela! Ganhar influência na
sociedade devota de Leiria, ser muito do senhor chantre: afastar da Rua da Misericórdia o cônego e as
Gansosos; intrigar com as senhoras da boa roda para que se afastassem dela, com secura, no altar-mor, à
missa do domingo; dar a entender que a mãe era uma prostituta... Enterrá-la! cobri-la de lama! E na Sé, ao
sair da missa, regalar-se de a ver passar encolhida no seu mantelete preto, escorraçada de todos, enquanto
ele, à porta, de propósito, conversaria com a mulher do governador civil e seria galante com a baronesa de
Via-Clara!... Depois pregaria um grande sermão, na quaresma, e ela ouviria dizer, na arcada, nas lojas:
"Grande homem, o padre Amaro!". Tornar-se-ia ambicioso, intrigaria, e, protegido pela Sra. condessa de
Ribamar, subiria nas dignidades eclesiásticas: o que pensaria ela quando o visse um dia bispo de Leiria,
pálido e interessante na sua mitra toda dourada, passando, seguido dos incensadores, ao longo da nave da
Sé, entre um povo ajoelhado e penitente, sob os roucos cantos do órgão? E ela o que seria então? Uma
magra criatura murcha, embrulhada num xale barato! E o Sr. João Eduardo, o escolhido de agora, o
esposo? Seria um pobre amanuense mal pago, com uma quinzena roçada, os dedos queimados do cigarro,
curvado sobre o seu papel almaço, imperceptível na terra, adulando alto e invejando baixo! E ele, bispo,
na vasta escadaria hierárquica que sobe até ao Céu, estaria já muito para cima dos homens, na zona de
luz que faz a face de Deus-Padre! - E seria par do reino, e os padres da sua diocese tremeriam de o ver
franzir a testa!
Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.
Que faria ela àquela hora? pensava. Costurava decerto, na sala de jantar: estava o escrevente:
jogavam a bisca, riam - ela roçava-lhe talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa. Recordou o seu pé, o
bocadinho da meia que vira quando ela saltava as lamas na quinta, e essa curiosidade inflamada subia
pela curva da perna até ao seio, percorrendo belezas que suspeitava... O que ele gostava daquela maldita!
E era impossível obtê-la! E todo o homem feio e estúpido podia ir à Rua da Misericórdia, pedi-la à mãe,
vir à Sé dizer-lhe: "Senhor pároco, case-me com esta mulher", e beijar, sob a proteção da Igreja e do
Estado, aqueles braços e aquele peito! Ele não. Era padre! Fora aquela infernal pega da marquesa de
Alegros!...
Abominava então todo o mundo secular - por lhe ter perdido para sempre os privilégios: e como
o sacerdócio o excluía da participação nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação, na
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idéia da superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens. Aquele miserável escrevente podia casar e
possuir a rapariga - mas que era ele em comparação dum pároco a quem Deus conferia o poder supremo
de distribuir o Céu e o Inferno?... - E repastava-se deste sentimento, enchendo o espírito de orgulhos
sacerdotais. Mas vinha-lhe bem depressa a desconsoladora idéia que esse domínio só era válido na região
abstrata das almas; nunca o poderia manifestar, por atos triunfantes, em plena sociedade. Era um Deus
dentro da Sé - mas apenas saia para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso
reduzira toda a ação sacerdotal a uma mesquinha influência sobre almas de beatas... E era isto que
lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder eclesiástico, limitado ao espiritual,
sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a autoridade dos tempos
em que a Igreja era a nação e o pároco dono temporal do rebanho. Que lhe importava, no seu caso,
o direito místico de abrir ou fechar as portas do Céu? O que ele queria era o velho direito de abrir ou
fechar a porta das masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amélias tremessem da sombra da sua
batina... Desejaria ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das vantagens que dá a denúncia e dos terrores
que inspira o carrasco, e ali naquela vila, sob a jurisdição da sua Sé, fazer estremecer, à idéia de castigos
torturantes, aqueles que aspirassem a realizar felicidades - que lhe eram a ele interditas; e pensando em
João Eduardo e em Amélia; lamentava não poder acender as fogueiras da Inquisição! - Assim aquele
inofensivo moço tinha durante horas, sob a excitação colérica duma paixão contrariada, ambições
grandiosas de tirania católica: - porque todo o padre, o mais boçal, tem um momento em que é penetrado
pelo espirito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento místico ou nas suas ambições de dominação
universal: todo o subdiácono se julga uma hora capaz de ser santo ou de ser papa: não há seminarista que
não tenha, durante um instante, aspirado com ternura à caverna no deserto em que S. Jerônimo, olhando o
céu estrelado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graça, como um abundante rio de leite: e o abade
pançudo que à tardinha, à varanda, palita o dente furado saboreando o seu café com um ar paterno, traz
dentro em si os indistintos restos dum Torquemada.
IX
A vida de Amaro tornou-se monótona. Março ia muito molhado, muito frio; e depois do serviço
na Sé, Amaro entrava em casa, tirava as botas enlameadas, ficava em chinelas a aborrecer-se. Às três
horas jantava; e nunca levantava a tampa rachada da terrina sem se lembrar, com uma saudade pungente,
do jantarinho na Rua da Misericórdia, quando Amélia, com o seu colar muito branco, lhe passava a sopa
de grãos-de-bico, sorrindo, toda carinhosa. Ao lado a Vicência servia, tesa e enorme, com o seu corpo de
soldado vestido de saias, sempre constipada; e de vez em quando, desviando a cabeça, assoava-se ao
avental com ruído. Era muito suja: as facas tinham o cabo úmido da água gordurosa das lavagens. Amaro,
desgostoso e indiferente, não se queixava; comia mal, à pressa; mandava vir o café, e ficava horas
esquecidas sentado à mesa, quebrando a cinza do cigarro na borda do prato, perdido num tédio mudo,
sentindo os pés e os joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas da sala desabrigada.
Às vezes o coadjutor, que nunca o visitara na Rua da Misericórdia, aparecia ao fim do jantar: sentava-se
arredado da mesa, e ficava calado com o seu guarda-chuva entre os joelhos. Depois, julgando agradar
ao pároco, repetia, invariavelmente:
- Vossa senhoria aqui está melhor, sempre é estar em sua casa.
- Está claro, rosnava Amaro.
Ao princípio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S. Joaneira, provocando,
animando o coadjutor (que era de Leiria) a contar os escândalos da Rua da Misericórdia. O coadjutor, por
servilismo, tinha sorrisos mudos, repassados de perfídia.
- Ali há podres, hem? dizia o pároco.
O outro encolhia os ombros, com as mãos muito espalmadas ao pé das orelhas, numa expressão
de malícia; mas não pronunciava um som, receando que as suas palavras, repetidas, escandalizassem o
senhor cônego. Ficavam então soturnos, trocando, a espaços, frases moles; um batizado que havia; o que
dissera o cônego Campos; um frontal do altar que era necessário limpar. Aquela conversa enfastiava
Amaro: sentia-se muito pouco padre, muito distante da panelinha eclesiástica: não o interessavam as
intriguinhas do cabido, as parcialidades tão comentadas do senhor chantre, os roubos da Misericórdia, as
turras da câmara eclesiástica com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado, nas
palestras eclesiásticas em que tão femininamente se deleitam os padres, e que têm a puerilidade duma
caturrice e a tortuosidade duma conspiração.
- O vento está sul? perguntava ele enfim, bocejando.
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- Sempre! respondia o coadjutor.
Acendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guarda-chuva, e saía com um olhar de revés à
Vicência.
Era aquela a pior hora, a da noite, quando ficava só. Procurava ler, mas os livros enfastiavam-no;
desabituado da leitura não compreendia "o sentido". Ia olhar à vidraça: a noite estava tenebrosa, o lajedo
reluzia vagamente. Quando acabaria aquela vida? Acendia o cigarro, e do lavatório para a janela
recomeçava os seus passeios, com as mãos atrás das costas. Deitava-se sem rezar às vezes; e não tinha
escrúpulos: julgava que ter renunciado a Amélia era já uma penitência, não necessitava cansar-se a ler
orações no livro; celebrara o "seu sacrifício" - sentia-se vagamente quite com o Céu!
E continuava a viver só: o cônego nunca vinha à Rua das Sousas, "porque, dizia, era casa que só
o entrar nela até se lhe agoniava o estômago". E Amaro, cada dia mais amuado, não voltara a casa da S.
Joaneira. Escandalizara-se muito que ela não lhe tivesse mandado pedir para ir às partidas da sexta-feira;
atribuíra "a desfeita" à hostilidade de Amélia; e, mesmo para a não ver, trocara com o padre Silveira a
missa do meio-dia onde ela costumava ir, e dizia a das nove horas, furioso com aquele novo sacrifício!
···
Todas as noites Amélia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitação tão forte no coração
que ficava como sufocada um momento. Depois os botins de João Eduardo rangiam na escada, ou ela
conhecia os passos fofos das galochas das Gansosos: apoiava-se então às costas da cadeira, cerrando os
olhos, como na fadiga duma desesperança repetida. Esperava o padre Amaro; e às vezes, pelas dez horas,
quando já não era possível que ele viesse, a sua melancolia era tão pungente que se lhe intumescia a
garganta de soluços, tinha de pousar a costura, dizer:
- Vou-me deitar, estou com umas dores de cabeça que não paro!
Atirava-se para a cama de bruços, murmurava numa agonia:
- Oh Senhora das Dores, minha madrinha! Por que não vem ele, por que não vem ele?
Nos primeiros dias, apenas ele se fora embora, toda a casa lhe pareceu desabitada e lúgubre!
Quando vira no quarto dele os cabides sem a sua roupa, a cômoda sem os seus livros, rompeu a chorar.
Foi beijar a travesseirinha onde ele dormia, apertou ao peito com delírio a última toalha a que ele limpara
as mãos! Tinha constantemente o seu rosto presente, ele entrara sempre nos seus sonhos. E com a
separação o seu amor ardia mais forte e mais alto, como uma fogueira que se isola.
Uma tarde, que fora visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao chegar à Ponte gente
parada, embasbacada com gozo para uma rapariga de cuia à banda e garibaldi escarlate, que, de punho no
ar, já rouca, praguejava contra um soldado: o rapazola, um beirão de cara redonda e lorpa coberta de
penugem loura, virava-lhe as costas, encolhendo os ombros, as mãos muito enterradas nos bolsos,
rosnando:
- Não lhe fez mal, não lhe fez mal...
O Sr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parara a olhar, descontente daquela "falta de ordem
pública".
- Algum barulho? perguntou-lhe Amélia.
- O1á, menina Amélia! Não, uma brincadeira do soldado. Atirou- lhe um rato morto à cara, e a
mulher está a fazer aquele espalhafato. Bêbedas!
Mas a rapariga de garibaldi vermelho voltara-se - e Amélia aterrada reconheceu a Joaninha
Gomes, sua amiga da mestra, que fora amante do padre Abílio! O padre fora suspenso, deixara-a; ela
partira para Pombal, depois para o Porto; de miséria em miséria voltara a Leiria, e aí vivia nalguma viela
ao pé do quartel, entisicando, gasta por todo um regimento! - Que exemplo, Santo Deus, que exemplo!...
E também ela gostava dum padre! Também ela, como outrora a Joaninha, chorava sobre a sua
costura quando o Sr, padre Amaro não vinha! Onde a levava aquela paixão! À sorte da Joaninha! A ser a
amiga do pároco! E via-se já apontada a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada por ele, com
um filho nas entranhas, sem um pedaço de pão!... E, como uma rajada de vento que limpa num momento
um céu enevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de Joaninha varreu-lhe do espírito as névoas
amorosas e mórbidas, em que ela se ia perdendo. Decidiu aproveitar a separação, esquecer Amaro;
lembrou-se mesmo de apressar o seu casamento com João Eduardo, para se refugiar num dever
dominante; durante alguns dias forçou-se a interessar-se por ele; começou mesmo a bordar-lhe umas
chinelas...
Mas pouco a pouco a idéia má que, atacada, se encolhera e se fingira morta, - principiou
lentamente a desenroscar-se, a subir, a invadi-la! De dia, de noite, costurando e rezando, a idéia do padre
Amaro, os seus olhos, a sua voz apareciam-lhe, tentações teimosas! com um encanto crescente. Que faria
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ele? por que não vinha? gostava de outra? Tinha ciúmes indefinidos, mas mordentes, que a queimavam. E
aquela paixão ia-a envolvendo como uma atmosfera de onde não podia sair, que a seguia se ela fugia, e
que a fazia viver! As suas resoluções honestas ressequiam-se, morriam como débeis florinhas naquele
fogo que a percorria. Se às vezes a lembrança de Joaninha ainda voltava, repelia-a com irritação; e acolhia
alvoroçadamente todas as razões insensatas que lhe vinham de amar o padre Amaro! Tinha agora só uma
idéia - atirar-lhe os braços ao pescoço e beijá-lo, oh! beijá-lo!... Depois, se fosse necessário, morrer!
Começou então a impacientar-se com o amor de João Eduardo. Achava-o "palerma".
- Que maçada! pensava quando lhe sentia os passos na escada, à noite.
Não o suportava com os seus olhos voltados sempre para ela, a sua quinzena preta, as suas
monótonas conversas sobre o governo civil.
E idealizava Amaro! As suas noites eram sacudidas de sonhos lúbricos; de dia vivia numa
inquietação de ciúmes, com melancolias lúgubres, que a tornavam, como dizia a mãe, "uma mona, que até
enraivece"!
O gênio azedava-se-lhe.
- Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a mãe.
- Não me sinto boa. Estou para ter alguma!
Andava, com efeito, amarela, perdera o apetite. E enfim uma manhã ficou de cama com febre. A
mãe, assustada, chamou o doutor Gouveia. O velho prático, depois de ver Amélia, veio à sala de jantar
sorvendo com satisfação a sua pitada.
- Então, senhor doutor? disse a S. Joaneira.
- Case-me esta rapariga, S. Joaneira, case-me esta rapariga. Tenho- lho dito tantas vezes,
criatura!
- Mas, senhor doutor...
- Mas case-a por uma vez, S. Joaneira, case-a por uma vez! repetia ele pelas escadas, arrastando
um pouco a perna direita que um reumatismo teimoso encolhia.
Amélia enfim melhorou - com grande alegria de João Eduardo, que enquanto ela estivera doente
vivera numa aflição, lamentando não poder ser seu enfermeiro, e derramando às vezes no cartório uma
lágrima triste sobre os papéis selados do severo Nunes Ferral.
···
No domingo seguinte, à missa das nove horas na Sé, Amaro, ao subir para o altar, entre as
devotas que se arredavam, viu de relance Amélia ao pé da mãe, com o seu vestido de seda preta de largos
folhos. Cerrou um momento os olhos; e mal podia sustentar o cálix com as mãos trêmulas.
Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o missal, se persignou e
se voltou para a igreja dizendo Dominus vobiscum - a mulher do Carlos da botica disse baixo a Amélia
"que o senhor pároco estava tão amarelo, que devia ter alguma dor". Amélia não respondeu, curvada
sobre o livro com todo o sangue nas faces. E durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a face
banhada num êxtase baboso, gozou a sua presença, as suas mãos magras erguendo a hóstia, a sua cabeça
bem-feita curvando-se na adoração ritual; uma doçura corria- lhe na pele quando a voz dele, apressada,
dizia mais alto algum latim; e quando Amaro, tendo a mão esquerda no peito e a direita estendida,
disse para a igreja o Benedicat vos, ela, com os olhos muito abertos, arremessou toda a sua alma para o
altar, como se ele fosse o próprio Deus a cuja bênção as cabeças se curvavam ao comprido da Sé, até ao
fundo, onde os homens do campo com os seus varapaus pasmavam para os dourados do sacrário.
À saída da missa começara a chover; e Amélia e a mãe, á porta com outras senhoras, esperavam
uma "aberta".
- Olá! por aqui? disse de repente Amaro, chegando-se, muito branco.
- Estamos à espera que passe a chuva, senhor pároco, disse a S. Joaneira voltando-se. E
imediatamente, muito repreensiva: - E por que não tem aparecido, senhor pároco? Realmente! Que lhe
fizemos nós? Credo, até dá que falar...
- Muito ocupado, muito ocupado... balbuciou o pároco.
- Mas um bocadinho à noite. Olhe, pode crer, tem-me causado desgosto... E todos têm reparado.
Não, lá isso, senhor pároco, tem sido ingratidão!
Amaro disse, corando:
- Pois acabou-se. Hoje à noite lá apareço, e estão as pazes feitas...
Amélia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbação olhava para todos os pontos o céu
carregado, como assustada do temporal.
Amaro então ofereceu-lhe o seu guarda-chuva. E enquanto a S. Joaneira o abria, apanhando com
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cuidado o vestido de seda, Amélia disse ao pároco:
- Até à noite, sim? - e mais baixo, olhando em redor, com medo: - Oh, vá! Tenho estado tão
triste! tenho estado como doida! Vá, peço- lhe eu!
Amaro, voltando para casa, continha-se para não correr pelas ruas de batina. Entrou no quarto,
sentou-se aos pés da cama, e ali ficou saturado de felicidade, como um pardal muito farto num raio de sol
muito quente: recordava o rosto de Amélia, a redondeza dos seus ombros, a beleza dos encontros, as
palavras que lhe dissera: - Tenho estado como doida! A certeza de que "a rapariga gostava dele" entroulhe
então na alma com a violência de uma rajada, e ficou a sussurrar por todos os recantos do seu ser com
um murmúrio melodioso de felicidades agitadas. E passeava pelo quarto com passadas de côvado,
estendendo os braços, desejando a posse imediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia
defronte ao espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o
sustentasse a ele! Mal pôde jantar. Com que impaciência desejava a noite! A tarde clareava; a cada
momento tirava o seu ''cebolão'' de prata, indo olhar à janela, com irritação, a claridade do dia que se
arrastava devagar no horizonte. Engraxou ele mesmo os seus sapatos, lustrou o cabelo de banha. E antes
de sair rezou cuidadosamente o seu Breviário - porque, em presença daquele amor adquirido, viera-lhe
um susto supersticioso que Deus ou os santos escandalizados o viessem perturbar; e não queria, com
desleixos de devoção, dar-lhes razão de queixa.
Ao entrar na rua de Amélia o coração bateu-lhe tão forte que teve de parar, sufocado; pareceulhe
melodioso o piar das corujas na velha Misericórdia, que há tantas semanas não ouvia.
Que admiração quando ela apareceu na sala de jantar!
- Ditosos olhos que o vêem! Pensávamos que tinha morrido! Grande milagre!
Estavam a Sra. D. Maria da Assunção, e as Gansosos. Arredaram as cadeiras com entusiasmo
para lhe dar lugar, admirá-lo.
- Então que tem feito, que tem feito? E olhe que está mais magro!
O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O Sr. Artur Couceiro improvisoulhe
um fadinho à viola:
Ora já cá temos o senhor pároco
Nos chás da S. Joaneira.
Isto já parece outra coisa,
Volta a bela cavaqueira!
Houve palmas. E a S. Joaneira, toda banhada de riso.
- Ai, tem sido uma ingratidão dele!
- Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o cônego. Uma casmurrice, digo eu!
Amélia não falava, com as faces abrasadas, os olhos úmidos pasmados para o padre Amaro - a
quem tinham dado a poltrona do cônego, e que se repoltreava nela, túmido de gozo, fazendo rir as
senhoras pelas pilhérias com que contava os desleixos da Vicência.
João Eduardo, isolado a um canto, ia folheando o velho álbum.
···
Assim recomeçou a intimidade de Amaro na Rua da Misericórdia. Jantava cedo, depois lia o seu
Breviário; e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhava-se no seu capote e dava volta pela Praça
passando rente da botica, onde os freqüentadores caturravam, com as mãos moles apoiadas ao cabo dos
guarda-chuvas. Mal avistava a janela da sala de jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam; mas ao
toque agudo da campainha sentia às vezes um susto indefinido de achar a mãe já desconfiada ou Amélia
mais fria!... Mesmo por superstição entrava sempre com o pé direito.
Encontrava já as Gansosos, a D. Josefa Dias; e o cônego, que jantava agora muito com a S.
Joaneira e que àquela hora, estirado na poltrona, findava a sua soneca, dizia-lhe bocejando:
- Ora viva o menino bonito!
Amaro ia sentar-se ao pé de Amélia, que costurava à mesa; o olhar penetrante que se trocavam
era todos os dias como o mútuo juramento mudo que o seu amor crescera desde a véspera; e às vezes
mesmo, debaixo da mesa, roçavam os joelhos com furor. Começava então a cavaqueira. Eram sempre os
mesmos interessezinhos, as questões que iam na Misericórdia, o que dissera o senhor chantre, o cônego
Campos que despedira a criada, o que se rosnava da mulher do Novais...
- Mais amor do próximo! resmungava o cônego mexendo-se na poltrona. E com um arroto curto
tornava a cerrar as pálpebras.
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Então as botas de João Eduardo rangiam na escada, e Amélia imediatamente abria a mesinha
para a partida de manilha: os parceiros eram a Gansoso, D. Josefa, o pároco; e como Amaro jogava mal,
Amélia, que era mestra, sentava-se por detrás dele para o "guiar". Logo às primeiras vasas havia
altercações. Então Amaro voltava o rosto para Amélia, tão perto que confundiam os seus hálitos.
- Esta? perguntava, indicando a carta com olho lânguido.
- Não! não! espere, deixe ver, dizia ela, vermelha.
O seu braço roçava o ombro do pároco: Amaro sentia o cheiro da água-de-colônia que ela usava
com exagero.
Defronte, ao pé de Joaquina Gansoso, João Eduardo, mordicando o bigode, contemplava-a com
paixão; Amélia, para se desembaraçar daqueles dois olhos langorosos fitos nela, tinha-lhe dito, por fim
"que até era indecente, diante do pároco que era de cerimônia, estar assim a cocá-la toda a noite".
Às vezes mesmo dizia-lhe, rindo:
- Ó Sr. João Eduardo, vá conversar com a mamã, se não temo-la aqui temo-la a dormir.
E João Eduardo ia sentar-se ao pé da S. Joaneira, que, de lunetas na ponta do nariz, fazia
sonolentamente a sua meia.
Depois do chá Amélia sentava-se ao piano. Causava então entusiasmo em Leiria uma velha
canção mexicana, a Chiquita. Amaro achava-a de apetite; e sorria de gozo, com os seus dentes muito
brancos, apenas Amélia começava com muita languidez tropical:
Quando sali de la Habana,
Valga-me Dios ! ...
Mas Amaro amava sobretudo a outra estrofe, quando Amélia, com os dedos frouxos no teclado,
o busto deitado para trás, rolando os olhos ternos, em movimentos doces de cabeça, dizia, toda
voluptuosa, silabando o espanhol:
Si à tua ventana llega
Una paloma,
Trata-la com cariño
Que es mi persona.
E como a achava graciosa, crioula, quando ela gorjeava:
Ay chiquita que si,
Ay chiquita que no-o-o-o!
Mas as velhas reclamavam-no para continuar a manilha, e ele ia sentar-se, cantarolando as
últimas notas, com o cigarro ao canto da boca, os olhos úmidos de felicidade.
Às sextas-feiras era a grande partida. A Sra. D. Maria da Assunção aparecia sempre com o seu
belo vestido de seda preta: e como era rica e tinha parentela fidalga, davam-lhe com deferência o melhor
lugar ao pé da mesa - que ela ia ocupar, meneando pretensiosamente os quadris, com ruge-ruges de seda.
Antes do chá, a S. Joaneira levava-a sempre ao seu quarto, onde guardava para ela uma garrafa de
jeropiga velha: e ali as duas amigas tagarelavam muito tempo, sentadas em cadeirinhas baixas. Depois
Artur Couceiro, cada dia mais chupado e mais tísico, cantava o fado novo que compusera, chamado o
Fado da Confissão; eram quadras feitas para regalar aquela piedosa reunião de saias e de batinas:
Na capelinha do amor,
No fundo da sacristia,
Ao senhor padre Cupido
Confessei-me noutro dia...
Vinha depois a confissão de pecadinhos doces, um ato de contrição de amor, uma penitência
terna:
Seis beijinhos de manhã,
De tarde um abraço só...
E pra acalmar doces chamas
Jejuar a pão-de-ló.
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Aquela composição galante e devota fora muito apreciada na sociedade eclesiástica de Leiria. O
senhor chantre pedira uma cópia, e perguntara, referindo-se ao poeta:
- Quem é o hábil Anacreonte?
E informado que era o escrevente da administração, falou dele com tanto apreço à esposa do
senhor governador civil, que Artur obteve a gratificação de oito mil-réis, que havia anos implorava.
Àquelas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua última pilhéria era furtar beijos à Sra. D. Maria da
Assunção; a velha escandalizava-se muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revés um olhar
guloso. Depois o Libaninho desaparecia um momento, e entrava com uma saia de Amélia vestida, uma
touca da S. Joaneira, fingindo uma chama lúbrica por João Eduardo - que, entre as risadas agudas das
velhas, recuava, muito escarlate. Brito e Natário vinham às vezes: formava-se então um grande quino.
Amaro e Amélia ficavam sempre juntos; e toda a noite, com os joelhos colados, ambos vermelhos,
permaneciam vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.
Amaro saía sempre de casa da S. Joaneira mais apaixonado por Amélia. Ia pela rua devagar,
ruminando com gozo a sensação deliciosa que lhe dava aquele amor - uns certos olhares dela, o arfar
desejoso do seu peito, os contatos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se depressa, porque
gostava de pensar nela, às escuras, atabafado nos cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma,
as provas sucessivas que ela lhe dera do seu amor, como quem vai aspirando uma e outra flor, até que
ficava como embriagado de orgulho: era a rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o a ele, a ele padre,
o eterno excluído dos sonhos femininos, o ser melancólico e neutro que ronda como um ser suspeito à
beira do sentimento! À sua paixão misturava-se então um reconhecimento por ela; e com as pálpebras
cerradas murmurava:
- Tão boa, coitadinha, tão boa!
···
Mas na sua paixão havia ás vezes grandes impaciências. Quando tinha estado, durante três horas
da noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade que se exalava de todos os seus
movimentos, - ficava tão carregado de desejos que necessitava conter-se "para não fazer um disparate ali
mesmo na sala, ao pé da mãe". Mas depois, em casa, só torcia os braços de desespero: queria-a ali de
repente, oferecendo-se ao seu desejo; fazia então combinações - escrever-lhe-ia, arranjariam uma casinha
discreta para se amarem, planeariam um passeio a alguma quinta! Mas todos aqueles meios lhe pareciam
incompletos e perigosos, ao recordar o olho finório da irmã do cônego, as Gansosos tão mexeriqueiras! E
diante daquelas dificuldades que se erguiam como as muralhas sucessivas duma cidadela, voltavam as
antigas lamentações: não ser livre! não poder entrar claramente naquela casa, pedi-la à mãe, possuí-la sem
pecado, comodamente! Por que o tinham feito padre? Fora "a velha pega" da marquesa de Alegros!
Ele não abdicava voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-no impelido para o sacerdócio como
um boi para o curral!
Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas acusações mais longe, contra o Celibato e
a Igreja: por que proibia ela aos seus sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural,
que até têm os animais? Quem imagina que desde que um velho bispo diz - serás casto - a um homem
novo e forte, o seu sangue vai subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina - accedo - dita a tremer
pelo seminarista assustado, será o bastante para conter para sempre a rebelião formidável do corpo? E
quem inventou isto? Um concílio de bispos decrépitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das
suas escolas, mirrados como pergaminhos, inúteis como eunucos! Que sabiam eles da Natureza e das suas
tentações? Que viessem ali duas, três horas para o pé da Ameliazinha, e veriam, sob a sua capa de
santidade, começar a revoltar-se-lhe o desejo! Tudo se ilude e se evita, menos o amor! E se ele é fatal, por
que impediram então que o padre o sinta, o realize com pureza e com dignidade? É melhor talvez que o
vá procurar pelas vielas obscenas! - Porque a carne é fraca!
A carne! Punha-se então a pensar nos três inimigos da alma - MUNDO, DIABO e CARNE. E
apareciam à sua imaginação em três figuras vivas: uma mulher muito formosa; uma figura negra de olho
de brasa e pé de cabra; e o mundo, coisa vaga e maravilhosa (riquezas, cavalos, palacetes) - de que lhe
parecia uma personificação suficiente o Sr, conde de Ribamar! Mas que mal tinham eles feito à sua alma?
O diabo nunca o vira; a mulher formosa amava-o e era a única consolação da sua existência; e do mundo,
do senhor conde, só recebera proteção, benevolência, tocantes apertos de mão... E como poderia ele evitar
as influências da Carne e do Mundo? A não ser que fugisse, como os santos de outrora, para os areais do
deserto e para a companhia das feras! Mas não lhe diziam os seus mestres no seminário que ele pertencia
a uma Igreja militante? O ascetismo era culpado, sendo a deserção dum serviço santo. - Não compreendia,
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não compreendia!
Procurava então justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A Bíblia está cheia de
núpcias! Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao
encontro, com a cabeça coberta de faixas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro branco; os
levitas batem em discos de prata, gritam o nome de Deus; abrem-se as portas de ferro da cidade para
deixar passar a caravana que leva os bem esposados; e as arcas de sândalo onde vão os tesouros do
dote rangem, amarradas com cordas de púrpura, sobre o dorso dos camelos! Os mártires no circo casamse
num beijo, sob o bafo dos leões, às aclamações da plebe! Jesus mesmo não vivera sempre na sua
santidade inumana; era frio e abstrato nas ruas de Jerusalém, nos mercados do bairro de Davi; mas lá
tinha o seu lugar de ternura e de abandono em Betânia, sob os sicômoros do Jardim de Lázaro; ali,
enquanto os magros nazarenos seus amigos bebem o leite e conspiram à parte, ele olha defronte os tetos
dourados do templo, os soldados romanos que jogam o disco ao pé da Porta de Ouro, os pares amorosos
que passam sob os arvoredos de Getsêmani - e pousa a mão sobre os cabelos louros de Marta, que ama e
fia a seus pés!
O seu amor era pois uma infração canônica, não um pecado da alma: podia desagradar ao senhor
chantre, não a Deus; seria legitimo num sacerdócio de regra mais humana. Lembrava-se de se fazer
protestante: mas onde, como? Parecia-lhe mais extraordinariamente impossível que transportar a velha Sé
para cima do monte do Castelo.
Encolhia então os ombros, escarnecendo toda aquela vaga argumentação interior. "Filosofia e
palhada!" Estava doido pela rapariga, - era o positivo. Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe
a alma... E o senhor bispo se não fosse velho faria o mesmo, e o papa faria o mesmo!
Eram às vezes três horas da manhã, e ainda passeava no quarto, falando só.
···
Quantas vezes João Eduardo, passando alta noite pela Rua das Sousas, tinha visto na janela do
pároco uma luz amortecida! Porque ultimamente João Eduardo, como todos que têm um desgosto
amoroso, tomara o hábito triste de andar até tarde pelas ruas.
O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebera a simpatia de Amélia pelo pároco. Mas
conhecendo a sua educação e os hábitos devotos da casa, atribuía aquelas atenções quase humildes com
Amaro ao respeito beato pela sua batina de padre, pelos seus privilégios de confessor.
Instintivamente porém começou a detestar Amaro. Sempre fora inimigo de padres! Achava-os
um "perigo para a civilização e para a liberdade"; supunha-os intrigantes, com hábitos de luxúria, e
conspirando sempre para restabelecer "as trevas da Meia-Idade"; odiava a confissão que julgava uma
arma terrível contra a paz do lar; e tinha uma religião vaga - hostil ao culto, às rezas, aos jejuns, cheia de
admiração pelo Jesus poético, revolucionário, amigo dos pobres, e "pelo sublime espirito de Deus
que enche todo o Universo"! Só desde que amava Amélia é que ouvia missa, para agradar à S. Joaneira.
E desejaria sobretudo apressar o casamento, para tirar Amélia daquela sociedade de beatas e
padres, receando ter mais tarde uma mulher que tremesse do Inferno, passasse horas a rezar estações na
Sé, e se confessasse aos padres "que arrancam às confessadas os segredos de alcova"!
Quando Amaro voltara a freqüentar a Rua da Misericórdia, ficou contrariado. "Cá temos outra
vez o marmanjo!", pensou. Mas que desgosto, quando reparou que Amélia tratava agora o pároco com
uma familiaridade mais terna, que a presença dele lhe dava visivelmente uma animação singular, "e que
havia uma espécie de namoro"! Como ela se fazia vermelha, mal ele entrava! Como o escutava, com uma
admiração babosa! Como arranjava sempre a ficar ao pé dele nas partidas de quino!
Uma manhã, mais inquieto, veio à Rua da Misericórdia, - e enquanto a S. Joaneira tagarelava na
cozinha, disse bruscamente a Amélia:
- Menina Amélia, sabe? Está-me a dar um grande desgosto com essas maneiras com que trata o
Sr. padre Amaro.
Ela ergueu os olhos espantados:
- Que maneiras? Ora essa! Então como quer que o trate? É um amigo da casa, esteve aqui de
hóspede...
- Pois sim, pois sim...
- Ah! mas sossegue. Se isso o quezila, verá. Não me torno a chegar para ao pé do homem.
João Eduardo, tranqüilizado, raciocinou que "não havia nada". Aqueles modos eram excessos de
beatério. Entusiasmo pela padraria!
Amélia decidiu então disfarçar o que lhe ia no coração: sempre considerara o escrevente um
pouco tapado - e se ele percebera, que fariam as Gansosos tão finas, e a irmã do cônego que era curtida
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em malícia! Por isso mal sentia Amaro na escada, daí por diante, tomava uma atitude distraída, muito
artificial; mas, ai! apenas ele lhe falava com a sua voz suave ou voltava para ela aqueles olhos negros que
lhe faziam correr estremeções nos nervos, - como uma ligeira camada de neve que se derrete a um
sol muito forte, a sua atitude fria desaparecia, e toda a sua pessoa era uma expressão contínua de paixão.
Às vezes, absorvida no seu enlevo, esquecia que João Eduardo estava ali; e ficava toda surpreendida
quando ouvia a um canto da sala a sua voz melancólica.
Ela sentia de resto que as amigas da mãe envolviam a sua "inclinação" pelo pároco numa
aprovação muda e afável. Ele era, como dizia o cônego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos olhares
das velhas exalava-se uma admiração por ele que fazia ao desenvolvimento da paixão de Amélia uma
atmosfera favorável. D. Maria da Assunção dizia-lhe às vezes ao ouvido:
- Olha para ele! É de inspirar fervor. É a honra do clero. Não há outro!...
E todas elas achavam em João Eduardo "um presta para nada"! Amélia então já não disfarçava a
sua indiferença por ele: as chinelas que lhe andava a bordar tinham há muito desaparecido do cesto do
trabalho, e já não vinha à janela vê-lo passar para o cartório.
A certeza agora tinha-se estabelecido na alma de João Eduardo - na alma, que como ele dizia, lhe
andava mais negra que a noite.
- A rapariga gosta do padre, tinha ele concluído. E à dor da sua felicidade destruída juntava-se a
aflição pela honra dela ameaçada.
Uma tarde, tendo-a visto sair da Sé, esperou-a adiante da botica, e muito decidido:
- Eu quero-lhe falar, menina Amélia... Isto não pode continuar assim... Eu não posso... A menina
traz namoro com o pároco!
Ela mordeu o beiço, toda branca:
- O senhor está a insultar-me! - e queria seguir, toda indignada.
Ele reteve-a pela manga do casabeque: '
- Ouça, menina Amélia. Eu não a quero insultar, mas é que não sabe. Tenho andado, que até se
me parte o coração. - E perdeu a voz, de comovido.
- Não tem razão... Não tem razão, balbuciava ela.
- Jure-me então que não há nada com o padre!
- Pela minha salvação!... Não há nada!... Mas também lhe digo, se tornar a falar em tal, ou a
insultar-me, conto tudo à mamã, e o senhor escusa de nos voltar a casa.
- Oh menina Amélia...
- Não podemos continuar aqui a falar... Está ali já a D. Micaela a cocar.
Era uma velha, que levantara a cortina de cassa numa janela baixa, e espreita-la com olhinhos
reluzentes e gulosos, a face toda ressequida encostada sofregamente á vidraça. Separaram-se então, - e a
velha desconsolada deixou cair a cortina.
Amélia nessa noite - enquanto as senhoras discutiam com algazarra os missionários que então
pregavam na Barrosa - disse baixo a Amaro, picando vivamente a costura:
- Precisamos ter cautela... Não olhe tanto para mim nem esteja tão chegado... Já houve quem
reparasse. Amaro recuou logo a cadeira para junto de D. Maria da Assunção; e, apesar da recomendação de
Amélia, os seus olhos não se despregavam dela, numa interrogação muda e ansiosa, já assustado que as
desconfianças da mãe ou a malícia das velhas "andassem armando escândalo". Depois do chá, no rumor
das cadeiras que se acomodavam ao quino, perguntou-lhe rapidamente:
- Quem reparou?
- Ninguém. Eu é que tenho medo. É preciso disfarçar.
Desde então cessaram as olhadelas doces, os lugares chegadinhos à mesa, os segredos; e sentiam
um gozo picante em afetar maneiras frias, tendo a certeza vaidosa da paixão que os inflamava. Era para
Amélia delicioso - enquanto o padre Amaro afastado tagarelava com as senhoras - adorar a sua presença,
a sua voz, as suas graças, com os olhos castamente aplicados às chinelas de João Eduardo que muito
astutamente recomeçara a bordar.
Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o pároco instalado ali todas
as noites, com a face próspera, a pema traçada, gozando a veneração das velhas. "A Ameliazinha, sim,
agora portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...": mas ele sabia que o pároco a desejava, a "cocava"; e
apesar do juramento dela pela sua salvação, da certeza que não havia nada - temia que ela fosse
lentamente penetrada por aquela admiração caturra das velhas, para quem o senhor pároco era um anjo:
só se contentaria em arrancar Amélia (já empregado no governo civil) àquela casa beata: mas essa
felicidade tardava a chegar - e saía todas as noites da Rua da Misericórdia mais apaixonado, com a vida
estragada de ciúmes, odiando os padres, sem coragem para desistir. Era então que se punha a andar pelas
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ruas até tarde; às vezes voltava ainda ver as janelas fechadas da casa dela; ia depois à alameda ao pé do
rio, mas o frio ramaIhar das árvores sobre a água negra entristecia-o mais; vinha então ao bilhar, olhava
um momento os parceiros carambolando, o marcador, muito esguedelhado, que bocejava encostado ao
reste. Um cheiro de mau petróleo sufocava. Saía; e dirigia-se, devagar, à redação da Voz do Distrito.
X
O redator da Voz do Distrito, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente. Chamavam-lhe
geralmente o Raquítico, por ter uma forte corcunda no ombro, e uma figurinha enfezada de ético. Era
extremamente sujo; e a sua carita de fêmea, amarelada, de olhos depravados, revelava vícios antigos,
muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar:
''Se você não fosse um raquítico, quebrava-lhe os ossos" - que, vendo na sua corcunda uma proteção
suficiente, ganhara um descaro sereno. Era de Lisboa, o que o tomava mais suspeito aos burgueses sérios:
atribuía-se a sua voz rouca e acre "a faltar-lhe as campainhas": e os seus dedos queimados terminavam em
unhas muito compridas - porque tocava guitarra.
A Voz do Distrito fora criada por alguns homens, a quem chamavam em Leiria o grupo da Maia,
particularmente hostis ao senhor governador civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato do
grupo, tinha encontrado em Agostinho, como ele dizia, o homem que se precisa: o que o grupo precisava
era um patife com ortografia, sem escrúpulos, que redigisse em linguagem sonora os insultos, as calúnias,
as alusões que eles traziam informemente à redação, em apontamentos. Agostinho era um estilista de
vilezas. Davam-lhe quinze mil-réis por mês e casa de habitação na redação - um terceiro andar
desmantelado numa viela ao pé da Praça.
Agostinho fazia o artigo de fundo, as locais, a Correspondência de Lisboa; e o bacharel
Prudêncio escrevia o folhetim literário sob o título de Palestras Leirienses: era um moço muito honrado, a
quem o Sr. Agostinho era repulsivo; mas tinha uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se
todos os sábados fraternalmente á mesma banca, a rever as provas da sua prosa - prosa tão florida de
imagens, que se murmurava na cidade, ao lê-la: "Que opulência! Que opulência, Jesus!"
João Eduardo reconhecia também que o Agostinho era "um trastezito"; não se atreveria a passear
com ele de dia nas ruas; mas gostava de ir para a redação, alta noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho
falar de Lisboa, do tempo que lá vivera empregado na redação de dois jornais, no teatro da Rua dos
Condes, numa casa de penhores, e em outras instituições. Estas visitas eram segredo!
Àquela hora da noite a sala da tipografia no primeiro andar estava fechada (o jornal tirava-se aos
sábados); e João Eduardo encontrava em cima Agostinho abancado com uma velha jaqueta de peles cujos
colchetes de prata tinham sido empenhados - ruminando, curvado, à luz dum medonho candeeiro de
petróleo, sobre longas tiras de papel: estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor tinha o aspecto
duma caverna. João Eduardo estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar a um canto a velha
guitarra de Agostinho, repenicava o fado corrido. O jornalista, no entanto, com a testa apoiada a um
punho, produzia laboriosamente: "a coisa não lhe saía catita": e como nem o fadinho o inspirava, erguiase,
ia a um armário engolir um copinho de genebra que gargarejava nas fauces estanhadas, espreguiçavase
escancaradamente, acendia o cigarro, e aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:
Ora foi o fado tirano
Que me levou à má vida,
E a guitarra: dir-lim, dim, dim, dir-lim, dim, dom.
Na vida do negro fado
Ai! que me traz assim perdida...
Isto trazia-lhe sempre as recordações de Lisboa, porque terminava por dizer, com ódio:
- Que pocilga de terra, esta!
Não se podia consolar de viver em Leiria, de não poder beber o seu quartilho na taberna do tio
João, à Mouraria, com a Ana Alfaiata ou com o Bigodinho - ouvindo o João das Biscas de cigarro ao
canto da boca, o olho choroso meio fechado pelo fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a morte
da Sofia!
Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a João Eduardo os seus artigos,
muito alto. E João interessava-se - porque essas "produções", sendo ultimamente sempre "desandas ao
clero", correspondiam às suas preocupações.
Era por esse tempo que, em virtude da famosa questão da Misericórdia, o doutor Godinho se
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tomara muito hostil ao cabido e à padraria. Sempre detestara padres; tinha uma má doença de fígado, e
como a Igreja o fazia pensar no cemitério, odiava a sotaina, porque lhe parecia uma ameaça da mortalha.
E Agostinho que tinha um profundo depósito de fel a derramar, instigado pelo doutor Godinho, exagerava
as suas verrinas: mas, com o seu fraco literário, cobria o vitupério de tão espessas camadas de
retórica que, como dizia o cônego Dias, "aquilo era ladrar, não era morder!"
Uma dessas noites João Eduardo encontrou Agostinho todo entusiasmado com um artigo que
compusera de tarde, e que lhe "saíra cheio de piadas à Vítor Hugo!"
- Tu verás! Coisa de sensação!
Como sempre, era uma declamação contra o clero e o elogio do doutor Godinho. Depois de
celebrar as virtudes do doutor, "esse tão respeitável chefe de família" e a sua eloquência no tribunal que
"arrancara tantos desventurados ao cutelo da lei", o artigo, tomando um tom roncante, apostrofava
Cristo: - "Quem te diria a ti (bradava Agostinho), ó imortal Crucificado! quem te diria, quando do alto do
Gólgota expiravas exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, à tua sombra, seria expulso
dum estabelecimento de caridade o doutor Godinho, - a alma mais pura, o talento mais robusto..." - E as
virtudes do doutor Godinho voltavam, em passo de procissão, solenes e sublimadas, arrastando caudas de
adjetivos nobres.
Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho, Agostinho dirigia-se
diretamente a Roma: - "É no século XIX que vindes atirar à face de 1,eiria liberal os ditames do
Syllabus? Pois bem. Quereis a guerra? Tê-la-eis!"
- Hem, João?! dizia. Está forte! Está filosófico!
E retomando a leitura: - "Quereis a guerra? Tê-la-eis! Levantaremos bem alto o nosso estandarte, que não
é o da demagogia, compreendei-o bem! e arvorando-o, com braço firme, no mais alto baluarte das
liberdades públicas, gritaremos à face de Leiria, à face da Europa: Filhos do século XIX! às armas! Às
armas, pelo progresso!"
- Hem? Está de os enterrar!
João Eduardo, que ficara um momento calado, disse então, levantando as suas expressões em
harmonia com a prosa sonora do Agostinho:
- O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos do obscurantismo!
Uma frase tão literária surpreendeu o jornalista: fitou João Eduardo, disse:
- Por que não escreves tu alguma coisa, também?
O escrevente respondeu, sorrindo:
- E eu, Agostinho, eu é que te escrevia uma desanda aos padres... E eu tocava-lhes os podres. Eu
é que os conheço!...
Agostinho instou logo com ele para que escrevesse a desanda.
- Vem a calhar, menino!
O doutor Godinho ainda na véspera lhe recomendara: - "Em tudo que cheirar a padre, para baixo!
Havendo escândalo, conta-se! não havendo, inventa-se!"
E Agostinho acrescentou, com benevolência:
- E não te dê cuidado o estilo, que eu cá o florearei!
- Veremos, veremos, murmurou João Eduardo.
Mas daí por diante Agostinho perguntava-lhe sempre:
- E o artigo, homem? Traz-me o artigo.
Tinha avidez dele, porque sabendo como João Eduardo vivia na intimidade da "panelinha
canônica da S. Joaneira", supunha-o no segredo de infâmias especiais.
João Eduardo, porém, hesitava. Se se viesse a saber?
- Qual! afirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. É artigo da redação. Quem diabo
vai saber? Sucedeu na noite seguinte que João Eduardo surpreendeu o padre Amaro resvalando
sorrateiramente um segredinho a Amélia - e ao outro dia apareceu de tarde na redação com a palidez de
uma noite velada, trazendo cinco largas tiras de papel, miudamente escritas numa letra de cartório. Era o
artigo, e intitulava-se: Os modernos fariseus! - Depois de algumas considerações, cheias de flores, sobre
Jesus e o Gólgota, o artigo de João Eduardo era, sob alusões tão diáfanas como teias de aranha, um
vingativo ataque ao cônego Dias, ao padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natário!... Todos tinham a
sua dose, como exclamou cheio de júbilo o Agostinho.
- E quando sai? perguntou João Eduardo.
O Agostinho esfregou as mãos, refletiu, disse:
- É que está forte, diabo! É como se tivesse os nomes próprios! Mas descansa, eu arranjarei.
Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor Godinho - que o achou "uma catilinária atroz".
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Entre o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um arrufo: ele reconhecia, em geral, a necessidade da
religião entre as massas; sua esposa, a bela D. Cândida, era além disso de inclinações devotas, e
começava a dizer que aquela guerra do jornal ao clero lhe causava grandes escrúpulos: e o doutor
Godinho não queria provocar ódios desnecessários entre os padres, prevendo que o seu amor da paz
doméstica, os interesses da ordem e o seu dever de cristão o forçariam bem cedo a uma reconciliação, -
"muito contra as suas opiniões, mas..."
Disse por isso a Agostinho secamente:
- Isto não pode ir como artigo da redação, deve aparecer como comunicado. Cumpra estas
ordens.
E Agostinho declarou ao escrevente - que a coisa publicava-se como um Comunicado, assinado:
Um liberal. Somente João Eduardo terminava o artigo exclamando: - Alerta, mães de família! O
Agostinho sugeriu que este final alerta podia dar lugar à réplica jocosa - Alerta está! E depois de largas
combinações decidiram-se por este fecho: - Cuidado, sotainas negras!
No domingo seguinte apareceu o comunicado assinado: Um liberal.
···
Durante toda essa manhã de domingo, o padre Amaro, à volta da Sé, estivera ocupado em
compor laboriosamente uma carta a Amélia. Impaciente, como ele dizia, "com aquelas relações que não
andavam nem desandavam, que era olhar e apertos de mão e dali não passava" - tinha-lhe dado uma noite,
à mesa do quino, um bilhetinho onde escrevera com boa letra, a tinta azul; - Desejo encontrá-la só,
porque tenho muito que lhe falar. Onde pode ser sem inconveniente? Deus proteja o nosso afeto. Ela não
respondera: - E Amaro despeitado, descontente também por não a ter visto nessa manhã à missa das nove,
resolveu "pôr tudo a claro numa carta de sentimento": e preparava os períodos sentidos que lhe deviam ir
revolver o coração, passeando pela casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a cada momento curvado
sobre o Dicionário de Sinônimos.
"Ameliazinha do meu coração, (escrevia ele) não posso atinar com as razões maiores
que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em casa da senhora sua mamã; pois
que era pela muita necessidade que tinha de lhe falar a sós, e as minhas intenções
eram puras, e na inocência desta a/ma que tanto lhe quer e que não medita o pecado.
Deve ter compreendido que lhe voto um fervente afeto, e pela sua parte me parece, (se
não me enganam esses olhos que são os faróis da minha vida, e como a estrela do
navegante) que também tu, minha Ameliazinha, tens inclinação por quem tanto te
adora; pois que até outro dia, quando o Libano quinou com os seis primeiros números, e que
todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com tanta ternura,
que até me pareceu que o Céu se abria e que eu sentia os anjos entoarem o Hossana!
Por que não respondeste pois? Se pensas que o nosso afeto pode ser desagradável aos
nossos anjos da guarda, então te direi que maior pecado cometes trazendo-me nesta
incerteza e tortura, que até na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti, e nem
me deixa elevar a minha a/ma no divino sacrifício. Se eu visse que este mútuo afeto era obra
do tentador, eu mesmo te diria: oh, minha bem amada filha, façamos o sacrifício a Jesus,
para lhe pagar parte do sangue que derramou por nós! Mas eu tenho interrogado a minha
a/ma e vejo nela a brancura dos lírios. E o teu amor também é puro como a tua a/ma, que
um dia se unirá à minha, entre os coros celestes, na bem-aventurança. Se tu soubesses como
eu te quero, querida Ameliazinha, que até às vezes me parece que te podia comer aos
bocadinhos! Responde pois e dize se não te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos
no Morena/, pela tarde. Pois eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como
falar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me guie pelo
caminho do amor, até aos êxtases duma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a
oferta do coração do teu amante e pai espiritual,
Amaro."
Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ela bem dobrada no bolso da batina foi à
Rua da Misericórdia. Logo da escada sentiu em cima a voz aguda de Natário, discutindo.
- Quem está por cá? - perguntou à Ruça, que alumiava, encolhida no seu xale.
-.As senhoras todas. Está o Sr, padre Brito.
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- Olá! Bela sociedade!
Galgou os degraus, e à porta da sala, com o seu capote ainda pelos ombros, tirando alto o
chapéu:
- Muito boas noites a todos, começando pelas senhoras.
Natário, imediatamente, plantou-se diante dele e exclamou:
- Então que lhe parece?
- O quê? perguntou Amaro. E reparando no silêncio, nos olhos cravados nele: - O que é? Alguma
coisa de novo?
- Pois não leu, senhor pároco? exclamaram. Não leu o Distrito!?
Era papel em que ele não pusera os olhos, disse. Então as senhoras indignadas romperam:
- Ai! é um desaforo!
- Ai! é um escândalo, senhor pároco!
Natário com as mãos enterradas nas algibeiras contemplava o pároco com um sorrizinho
sarcástico, saltando dentre os dentes:
- Não leu! Não leu! Então que fez?
Amaro reparava, já aterrado, na palidez de Amélia, nos seus olhos muito vermelhos. E enfim o
cônego erguendo-se pesadamente:
- Amigo pároco, dão-nos uma desanda...
- Ora essa! exclamou Amaro.
- Tesa!
O senhor cônego, que trouxera o jornal, devia ler alto - lembraram.
- Leia, Dias, leia, acudiu Natário. Leia, para saborearmos!
A S. Joaneira deu mais luz ao candeeiro: o cônego Dias acomodou- se à mesa, desdobrou o
jornal, pôs os óculos cuidadosamente, e, com o lenço do rapé nos joelhos, começou a leitura do
Comunicado na sua voz pachorrenta.
O princípio não interessava: eram períodos enternecidos em que o liberal exprobrava aos
fariseus a crucificação de Jesus: - "Por que o matásteis? (exclamava ele). Respondei!" E os fariseus
respondiam: - "Matamo-lo porque ele era a liberdade, a emancipação, a aurora de uma nova era", etc. O
liberal então esboçava, a largos traços, a noite do Calvário: - "Ei-lo pendente da cruz, traspassado de
lanças, a sua túnica jogada aos dados, a plebe infrene", etc. E, voltando a dirigir-se aos fariseus
infelizes, o liberal gritava-lhes com ironia: - "Contemplai a vossa bela obra!" Depois, por uma gradação
hábil, o liberal descia de Jerusalém a Leiria: - "Mas pensam os leitores que os fariseus morreram? Como
se enganam! Vivem! conhecemo-los nós; Leiria está cheia deles, e vamos apresentá-los aos leitores..."
- Agora é que elas começam, disse o cônego olhando para todos em redor, por cima dos óculos.
Com efeito "elas começavam"; era, numa forma brutal, uma galeria de fotografias eclesiásticas: a
primeira era a do padre Brito: - "Vede-o, (exclamava o liberal) grosso como um touro, montado na sua
égua castanha..."
- Até a cor da égua! murmurou com uma indignação piedosa a Sra. D. Maria da Assunção.
"... Estúpido como um melão, sem sequer saber latim..."
O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira,
esfregando devagar os joelhos.
"... Espécie de caceteiro", continuava o cônego, que lia aquelas frases cruéis com uma
tranqüilidade doce, "desabrido de maneiras, mas que não desgosta de se dar à ternura, e, segundo dizem
os bem informados, escolheu para Dulcinéia a própria e legítima esposa do seu regedor..."
O padre Brito não se dominou:
- Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recaindo pesadamente na cadeira.
- Escute, homem, disse Natário.
- Qual escute! O que é, é que o racho!
Mas se ele não sabia quem era o liberal!
- Qual liberal! Quem eu racho é o doutor Godinho. O doutor Godinho é que é o dono do jornal.
O doutor Godinho é que eu racho!
A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas à coxa.
Lembraram-lhe o dever cristão de perdoar as injúrias! A S. Joaneira com unção citou a bofetada
que Jesus Cristo suportou. Devia imitar Cristo.
- Qual Cristo, qual cabaça! gritou Brito apoplético.
Aquela impiedade criou um terror.
- Credo! Sr, padre Brito, credo! exclamou a irmã do cônego, recuando a cadeira.
O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado sob o desastre, murmurava:
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- Nossa Senhora das Dores, que até pode cair um raio!
E, vendo mesmo Amélia indignada, o padre Amaro disse gravemente:
- Brito, realmente você excedeu-se.
- Pois se estão a puxar por mim!...
- Homem, ninguém puxou por você, disse severamente Amaro. E com um tom pedagogo: -
Apenas lhe lembrarei, como devo, que em tais casos, quando se diz a blasfêmia má, o reverendo padre
Scomelli recomenda confissão geral e dois dias de recolhimento a pão e água.
O padre Brito resmungava.
- Bem, bem, resumiu Natário. O Brito cometeu uma grande falta, mas saberá pedir perdão a
Deus, e a misericórdia de Deus é infinita!
Houve uma pausa comovida, em que se ouviu a Sra. D. Maria da Assunção murmurar "que
ficara sem pinga de sangue": e o cônego, que durante a catástrofe pousara os óculos sobre a mesa,
retomou-os, e continuou serenamente a leitura:
"...Conheceis um outro com cara de furão?..."
Olhares de lado fixaram o padre Natário.
"...Desconfiai dele: se puder trair-vos, não hesita; se puder prejudicar-vos, folga; as suas intrigas
trazem o cabido numa confusão porque é a víbora mais daninha da diocese, mas com tudo isso muito
dado à jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas do seu canteiro."
- Homem, essa! exclamou Amaro.
- É para que você veja, disse Natário erguendo-se lívido. Que lhe parece? Você sabe que eu,
quando falo das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do meu canteiro. É um gracejo. Pois,
senhores, até vem com isto! - E com um sorriso macilento, de fel: - Mas amanhã hei-de saber quem é!
Olaré! Eu hei-de saber quem é!
- Deite ao desprezo, Sr. padre Natário, deite ao desprezo, disse a S. Joaneira pacificadora.
- Obrigado, minha senhora, acudiu Natário curvando-se com uma ironia rancorosa, obrigado! Cá
recebi!
Mas a voz imperturbável do cônego retomara a leitura. Agora era o retrato dele, traçado com
ódio:
"...Cônego bojudo e glutão, antigo caceteiro do Sr. D. Miguel, que foi expulso da freguesia de
Ourém, outrora mestre de Moral num seminário e hoje mestre de imoralidade em Leiria..."
- Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.
O cônego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
- Você pensa que me dá isto cuidado? disse ele. Boa! Tenho que comer e que beber, graças a
Deus! Deixar rosnar quem rosna!
- Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho de brio!
- ora, mana! replicou o cônego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguém
lhe pede a sua opinião!
- Nem preciso que ma peçam, gritou ela empertigando-se. Sei-a dar muito bem quando quero e
como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!
- Então! então! disseram em roda, acalmando-a.
- Menos língua, mana, menos língua! disse o cônego fechando os seus óculos. Olhe, não lhe
caiam os dentes postiços!
- Seu malcriado!
Ia falar, mas sufocou-se; e começou subitamente a soltar ais.
Recearam logo que lhe desse o flato; a S. Joaneira e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o
quarto, embaixo, amparando-a, com palavras brandas:
- Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escândalo! Nossa Senhora te valha!
Amélia mandava buscar água de flor de laranja.
- Deixe-a lá, rosnou o cônego, deixe-a lá! Aquilo passa-lhe. São calores!
Amélia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a Sra. D. Maria da
Assunção e a Gansoso surda, que iam também "sossegar a D. Josefa, coitadita!" Os padres agora estavam
sós e o cônego voltando-se para Amaro: - Ouça você, que é a sua vez - disse retomando o jornal.
- E verá que dose! disse Natário.
O cônego escarrou, aproximou mais o candeeiro, e declamou:
"... Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, párocos por influências de condes da
capital, vivendo na intimidade das famílias de bem onde há donzelas inexperientes, e aproveitando-se da
influência do seu sagrado ministério para lançar na alma da inocente a semente de chamas criminosas!"
- Pouca vergonha! murmurou Amaro lívido.
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"... Dize, sacerdote de Cristo, onde queres arrastar a impoluta virgem? Queres arrastá-la aos
lodaçais do vício? Que vens fazer aqui ao seio desta respeitável família? Por que rondas em volta da tua
presa, como o milhafre em torno da inocente pomba? Para trás, sacrílego! Murmuras-lhe sedutoras frases,
para a desviares do caminho da honra; condenas á desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe
queira oferecer a sua mão trabalhadora; e vais-lhe preparando um horroroso futuro de lágrimas. E tudo
para quê? Para saciares os torpes impulsos da tua criminosa lascívia..."
- Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.
"...Mas acautela-te, presbítero perverso!" E a voz do cônego tinha tons cavos ao soltar aquelas
apóstrofes. "Já o arcanjo levanta a espada da justiça. E sobre ti, e teus cúmplices, já a opinião da ilustrada
Leiria fita seu olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o
estigma da infâmia. Tremei, sectários do Syllabus! cuidado, sotainas negras!"
- De escacha! fez o cônego suado, dobrando a Voz do Distrito.
O padre Amaro tinha os olhos enevoados de duas lágrimas de raiva: passou devagar o lenço pela
testa, soprou, disse com os beiços a tremer:
- Eu, colegas, nem sei o que hei-de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto é a calúnia das calúnias.
- Uma calúnia infame... rosnaram.
- E a mim, o que me parece, continuou Amaro, é que nos dirijamos à autoridade!
- É o que eu tinha dito, acudiu Natário, é necessário falar ao secretário-geral...
- Um cacete é que é! rugiu o padre Brito. Autoridade! O que é, é rachá-lo! Eu bebia-lhe o
sangue!...
O cônego, que meditava coçando o queixo, disse então:
- E você, Natário, é que deve ir ao secretário-geral. Você tem língua, tem lógica...
- Se os colegas decidem, disse Natário curvando-se, vou. E hei-de- lhas cantar, à autoridade!
Amaro ficara junto da mesa com a cabeça entre as mãos, aniquilado. E o Libaninho murmurava:
- Ai, filhos, eu não é nada comigo, mas só de ouvir todo esse aranzel, até se me estão a vergar as
pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...
Mas sentiram a voz da Sra. Joaquina Gansoso subindo a escada; e o cônego imediatamente com
uma voz prudente:
- Colegas, o melhor, diante das senhoras, é não se falar mais nisto. Bem basta o que basta.
Daí a momentos, apenas Amélia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que estava com uma forte
dor de cabeça, e despediu-se das senhoras.
- E sem tomar chá? acudiu a S. Joaneira.
- Sim, minha senhora, disse ele embrulhando-se no seu capote, não me estou a sentir bem. Boas
noites... E você, Natário, apareça amanhã pela Sé à uma hora.
Apertou a mão de Amélia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e mole, - e saiu com os
ombros vergados.
A S. Joaneira notou, desconsolada:
- O senhor pároco ia muito pálido...
O cônego levantou-se, e com um tom impaciente e quezilado:
- Se ia pálido, amanhã estará corado. E agora quero dizer uma coisa. Esse aranzel do jornal é a
calúnia das calúnias! Eu não sei quem o escreveu, nem para que o escreveu. Mas são tolices e são
infâmias. É pateta e maroto, quem quer que seja. O que devemos fazer já o sabemos, e como já se
tagarelou bastante sobre o caso, a senhora mande vir o chá. E o que lá vai, lá vai, não se fala mais na
questão.
As faces em roda continuavam contristadas. - E então o cônego acrescentou:
- Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguém, não há necessidade de estar aqui
com cara de pêsames. E tu, pequena, senta- te ao instrumento e repenica-me essa Chiquita!
···
O secretário-geral, o Sr. Gouveia Ledesma, antigo jornalista, e, em anos mais expansivos, autor
do livro sentimental Devaneios de um Sonhador, estava então dirigindo o distrito na ausência do
governador civil.
Era um moço bacharel que passava por ter talento. Representara de galã no teatro acadêmico, em
Coimbra, com muito aplauso; e tomara a esse tempo o hábito de passear à tarde na Sofia, com o ar fatal
com que no palco arrepelava os cabelos, ou levava, nos transes de amor, o lenço aos olhos. Depois em
Lisboa arruinara um pequeno patrimônio com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Mata, muita caça
no Xafredo e perniciosas convivências literárias: aos trinta anos estava pobre, saturado de mercúrio e
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autor de vinte folhetins românticos na Civilização: mas tornara- se tão popular, que era conhecido nos
lupanares e nos cafés por um cognome carinhoso - era o Bibi. Julgando então que conhecia a fundo a
existência, deixou crescer as suíças, começou a citar Bastiat, freqüentou as câmaras e entrou na carreira
administrativa; chamava agora à república que tanto exaltara em Coimbra uma absurda quimera; e Bibi
era um pilar das instituições.
Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia às senhoras, nas soirées do deputado
Novais - "que estava cansado da vida". Rosnava- se que a esposa do bom Novais andava doida por ele: e
em verdade Bibi escrevera a um amigo da capital: - "enquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas
no papo a Novaisitos".
Levantava-se tarde; e nessa manhã, de robe-de-chambre à mesa do almoço, partia os seus ovos
quentes, lendo com saudade no jornal a narração apaixonada duma pateada em S. Carlos, quando o
criado, - um galego que trouxera de Lisboa - veio dizer que "estava ali um cura".
- Um cura? Que entre para aqui! - E murmurou para sua satisfação pessoal: - o Estado não deve
fazer esperar a Igreja.
Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre Natário que entrava, muito composto, na sua longa
batina de lustrina.
- Uma cadeira, Trindade! Toma uma chávena de chá, senhor cura? Soberba manhã, hem? Estava
justamente pensando em si, - isto é, estava pensando no clero em geral... Acabava de ler as peregrinações
que se estão fazendo a Nossa Senhora de Lourdes... Grande exemplo! Milhares de pessoas da melhor
roda... É realmente consolador ver renascer a fé... Ainda ontem eu disse em casa do Novais: "No fim de
tudo a fé é a mola real da sociedade". Tome uma chávena de chá... Ah! é um grande bálsamo!...
- Não, obrigado, almocei já.
- Mas não! Quando digo um grande bálsamo refiro-me à fé, não ao chá! Ah! ah! É boa, não?
E prolongou a sua risadinha com complacência. Queria agradar a Natário, pelo princípio que repetia
muito, com um sorriso astuto - "que quem está metido na política deve ter por si a padraria".
- E depois, acrescentou, como eu dizia ontem em casa do Novais, que vantagem para as
localidades! Lourdes, por exemplo, era uma aldeola; pois com a afluência dos devotos está uma cidade...
Grandes hotéis, bulevares, belas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento econômico, correndo
parelhas com o renascimento religioso.
E deu com satisfação um puxãozinho grave ao colarinho.
- Pois eu vinha aqui falar a V. Ex.a a respeito dum comunicado na Voz do Distrito.
- Ah! interrompeu o secretário-geral, perfeitamente, li! Uma famosa verrina... Mas
literariamente, como estilo e como imagens, que miséria!
- E que tenciona V. Ex.a fazer, senhor secretário-geral?
O Sr. Gouveia Ledesma apoiou-se nas costas da cadeira, perguntou pasmado:
- Eu?
Natário disse, destilando as palavras:
- A autoridade tem o dever de proteger a religião do Estado, e implicitamente os seus
sacerdotes... Que tenha V. Ex.a em vista, eu não venho aqui em nome do clero...
E acrescentou com a mão sobre o peito:
- Sou apenas um pobre padre sem influência... Venho, como particular, perguntar ao senhor
secretário-geral se se pode permitir que caracteres respeitáveis da Igreja diocesana sejam assim
difamados...
- É certamente lamentável que um jornal...
Natário interrompeu, empertigando o busto com indignação:
- Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretário-geral!
- Suspenso! Por quem é, senhor cura! Mas V. St decerto não quer que eu volte ao tempo dos
corredores-mores! - Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa é um princípio sagrado! Nem as leis
de imprensa o permitem... Mesmo querelar pelo ministério público porque um periódico diz duas ou três
pilhérias sobre o cabido, impossível! Tínhamos de querelar toda a imprensa de Portugal, com exceção da
Nação e do Bem Público! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta anos de progresso, a própria
idéia governamental? Mas nós não somos os Cabrais, meu caro senhor! Nós queremos luz, muitíssima
luz! Justamente o que nós queremos é luz!
Natário tossiu devagarinho, disse:
- Perfeitamente. Mas então quando pelas eleições, a autoridade nos vier pedir o nosso auxilio,
nós vendo que não encontramos nela proteção, diremos simplesmente: "Non possumus!"
- E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que dão os senhores abades, nós vamos
trair a civilização?
65
E o antigo Bibi, tomando uma grande atitude, soltou esta frase:
- Somos filhos da liberdade, não renegaremos nossa mãe!
- Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal, é oposição, observou então Natário; protegerlhe
o jornal é implicitamente proteger-lhe as manobras...
O secretário-geral teve um sorriso:
- Meu caro senhor cura, V. St não está no segredo da política. Entre o doutor Godinho e o
governo civil não há inimizade, há apenas um arrufo... O doutor Godinho é uma inteligência... Vai
reconhecendo que o grupo da Maia não produz nada... O doutor Godinho aprecia a política do governo, e
o governo aprecia o doutor Godinho.
E, rebuçando-se todo num mistério de Estado, acrescentou:
- Coisas de alta política, meu caro senhor.
Natário ergueu-se:
- De modo que...
- Impossibilis est, disse o secretário. De resto acredite, senhor cura, que, como particular,
revolto-me contra o Comunicado; mas como autoridade devo respeitar a expressão do pensamento... Mas
creia, e pode dizê-lo a todo o clero diocesano, a Igreja católica não tem um filho mais fervente que eu,
Gouveia Ledesma... Quero porém uma religião liberal, de harmonia com o progresso, com a ciência...
Foram sempre as minhas idéias; preguei-as bem alto, na imprensa, na universidade e no grêmio...
Assim, por exemplo, não acho que haja poesia maior que a poesia do cristianismo! E admiro Pio IX, uma
grande figura! Somente lamento que ele não arvore a bandeira da civilização! - E o antigo Bibi, contente
da sua frase, repetia-a: - Sim, lamento que ele não arvore a bandeira da civilização... O Syllabus é
impossível neste século de eletricidade, senhor cura! E a verdade é que nós não podemos querelar dum
jornal, porque ele diz duas ou três pilhérias sobre o sacerdócio, nem nos convém, por altas razões de
política, escandalizar o doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.
- Senhor secretário-geral, disse Natário curvando-se.
- Um criado de V. S.a. Sinto que não tome uma chávena de chá. E como vai o nosso chantre?
- S. Ex. a nestes últimos dias, segundo creio, tem tornado a sofrer de tonturas.
- Sinto. Uma negligência também! Grande latinista... Tenha cuidado com o degrau!...
Natário correu à Sé, com um passo nervoso, resmungando alto de cólera. Amaro passeava
devagar no terraço, com as mãos atrás das costas: tinha as olheiras batidas e a face envelhecida.
- Então? disse ele, indo rapidamente ao encontro de Natário.
- Nada!
Amaro mordeu o beiço: e enquanto Natário lhe contava, excitado, a conversação com o
secretário-geral, "e como argumentara com ele, e como o homem tagarelara, tagarelara", - a face do
pároco cobria-se duma sombra desconsolada, e ia arrancando raivosamente, com a ponta do guarda-sol, a
erva que crescia nas fendas do terraço.
- Um patarata! resumiu o padre Natário com um grande gesto. Pela autoridade não se faz nada. É
escusado... Mas a questão agora é entre mim e o liberal, padre Amaro! Eu hei-de saber quem é, padre
Amaro! E quem o esmaga sou eu, padre Amaro, sou eu!...
···
No entanto, João Eduardo desde o domingo triunfava; o artigo fizera escândalo: tinham-se
vendido oitenta números avulsos do jornal, e o Agostinho afirmara-lhe que na botica da Praça a opinião
era "que o liberal conhecia a padraria a fundo e tinha cabeça" ! _
- És um gênio, rapaz, disse o Agostinho. É trazer-me outro, é trazer-me outro!
João Eduardo gozava prodigiosamente "daquele falatório que ia pela cidade".
Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse escandalizar a S. Joaneira, desejaria ir
pelas lojas dizer bem alto: fui eu, eu é que o escrevi! - e já ruminava outro, mais terrível, que se deveria
intitular: O diabo feito eremita, ou O sacerdócio de Leiria perante o século XIX!
O doutor Godinho encontrara-o na Praça, e parara com condescendência, para lhe dizer:
- A coisa tem feito barulho. Você é o diabo! E a piada ao Brito é bem jogada. Que eu não sabia...
E diz que é bonita, a mulher do regedor...
- V. Ex.a não sabia?
- Não sabia, e saboreei. Você é o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho que publicasse a coisa
como um comunicado. Você compreende... Eu não me convém ter turras de mais com o clero... E depois
lá minha esposa tem seus escrúpulos... Enfim, é melhor e é conveniente que as mulheres tenham
religião... Mas no meu foro interior saboreei... Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me uma guerra
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dos diabos na eleição passada... Ah! e outra coisa, o seu negócio arranja-se. Lá para o mês que vem tem o
seu emprego no governo civil.
- Oh, senhor doutor, V. Ex.a....
- Qual história, você é um benemérito!
João Eduardo foi para o cartório, trêmulo de alegria. O Sr. Nunes Ferral saíra: o escrevente
aparou devagar uma pena, começou a cópia duma procuração, - e de repente, agarrando o chapéu, correu
à Rua da Misericórdia.
A S. Joaneira costurava só á janela: Amélia fora ao Morenal: e João Eduardo, logo da porta:
- Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor Godinho. Diz que lá para o mês que vem tenho o
meu emprego...
A S. Joaneira tirou a luneta, deixou cair as mãos no regaço:
- Que me diz?...
- É verdade, é verdade...
E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos nervosos de júbilo.
- Que pechincha! exclamou. De modo que agora, se a Ameliazinha estiver de acordo...
- Ai! João Eduardo! fez a S. Joaneira com um grande suspiro, que me tira um peso do coração...
Que tenho estado... Olhe, nem tenho dormido!...
João Eduardo pressentiu que ela ia falar do Comunicado. Foi pôr o chapéu numa cadeira ao
canto; e voltando à janela, com as mãos nos bolsos:
- Então por quê, por quê?
- Aquela pouca-vergonha no Distrito! Que diz você? Aquela calúnia! Ai! tenho-me feito velha!
João Eduardo escrevera o artigo sob as solicitações do ciúme, só para "enterrar" o padre Amaro;
não previra o desgosto das duas senhoras; e vendo agora a S. Joaneira com duas lágrimas no branco dos
olhos, sentia-se quase arrependido. Disse ambiguamente:
- Eu li, é o diabo...
Mas aproveitando o sentimento da S. Joaneira para servir a sua paixão, acrescentou sentando-se,
chegando a cadeira para ao pé dela:
- Eu nunca lhe quis falar disso, D. Augusta, mas... olhe que a Ameliazinha tratava o pároco com
muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo, iase
rosnando... Eu bem sei que ela, coitada, não via o mal, mas... a D. Augusta sabe o que é Leiria. Que
línguas, hem!
A S. Joaneira então declarou que lhe ia falar como a um filho: o artigo afligira-a, sobretudo por
causa dele, João Eduardo. Porque enfim ele podia acreditar também, desfazer o casamento, e que
desgosto! E ela podia dizer-lhe como mulher de bem, como mãe, que não havia entre a pequena e o
senhor pároco, nada, nada, nada! Era a rapariga que tinha aquele gênio comunicativo! E o pároco tinha
boas palavras, sempre muito delicado... Que ela sempre o dissera, o Sr. padre Amaro tinha maneiras que
tocavam o coração...
- Decerto, disse João Eduardo mordendo o bigode, com a cabeça baixa.
A S. Joaneira então pôs a mão de leve sobre o joelho do escrevente, e fitando-o:
- E olhe, não sei se me fica mal dizer-lho, mas a rapariga quer-lhe deveras, João Eduardo.
O coração do escrevente teve uma palpitação comovida.
- E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que eu tenho por ela... E lá do artigo que me importa a
mim?
Então a S. Joaneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma alegria para ela! Ela sempre
o dissera, como rapaz de bem, não havia outro na cidade de Leiria! .
- Você sabe, quero-lhe como filho!
O escrevente enterneceu-se:
- Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do mundo... E erguendo- se, com uma solenidade
engraçada:
- Sra. D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir a mão...
Ela riu-se, - e na sua alegria João Eduardo beijou-a na testa, filialmente.
- E fale à noite à Ameliazinha, disse ao sair. Eu venho amanhã, e felicidade não há-de faltar...
- Louvado seja Nosso Senhor, acrescentou a S. Joaneira retomando a sua costura, com um
suspiro de muito alivio.
Apenas, nessa tarde, Amélia voltou do Morenal, a S. Joaneira, que estava pondo a mesa, disselhe:
- Esteve ai o João Eduardo...
- Ah!...
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- Ai esteve a falar, coitado...
Amélia, calada, dobrava a sua manta de lã.
- Aí esteve a queixar-se, continuou a mãe.
- Mas de quê? perguntou ela muito vermelha.
- Ora de quê! Que se falava muito na cidade do artigo do Distrito; que se perguntava a quem
aludia o periódico com as donzelas inexperientes, e que a resposta era: "Quem há-de ser? a Amélia da S.
Joaneira, da Rua da Misericórdia!" O pobre João diz que tem andado tão desgostoso!... Não se atrevia,
por delicadeza, a falar-te... Enfim...
- Mas que hei-de eu fazer, minha mãe? exclamou Amélia com os olhos subitamente cheios de
lágrimas, àquelas palavras que caíam sobre os seus tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
- Eu digo-te isto para seu governo. Faz o que quiseres, filha. Eu bem sei que são calúnias! Mas tu
sabes o que são línguas do mundo... O que te posso dizer é que o rapaz não acreditou no periódico. Que
era isso que me dava cuidado!... Credo! tirou-me o sono... Mas não, diz que não lhe importa o artigo, que
te quer da mesma maneira, e está a arder por que se faça o casamento... E eu por mim o que fazia, para
calar toda essa gente, era casar-me já. Eu bem sei que tu não morres por ele, bem sei. Deixa lá! Isso vem
depois. O João é bom rapaz, vai ter o emprego...
- Vai ter o emprego!?
- Pois foi o que ele me veio dizer também... Esteve com o doutor Godinho, diz que lá para o fim
do mês está empregado... Enfim tu fazes o que entenderes... Que olha que eu estou velha, filha, posso
faltar-te dum momento para o outro!...
Amélia não respondeu, olhando de frente no telhado voarem os pardais - menos
desassossegados, naquele instante, que os seus pensamentos.
···
Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzela inexperiente a que aludia o
Comunicado era ela, Amélia, e torturava-a o vexame de ver assim o seu amor publicado no jornal. Depois
(como ela pensava, mordendo o beiço numa raiva muda, com os olhos afogados de lágrimas), aquilo
vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com risinhos perversos: - "Então a Ameliazita da S.
Joaneira metida com o pároco, hem?" Decerto o senhor chantre, tão severo em "coisas de
mulheres", repreenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns apertos de mão, aí estava a sua
reputação estragada, estragado o seu amor!
Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas risinhos a escarnecê-la; no
aceno que lhe fez da porta da botica o respeitável Carlos julgou ver uma secura repreensível; à volta
encontrara o Marques da loja de ferragens, que não lhe tirou o chapéu, e ao entrar em casa julgava-se
desacreditada - esquecendo que o bom Marques era tão curto de vista que usava na loja duas lunetas
sobrepostas.
- Que hei-de eu fazer? que hei-de eu fazer? murmurava, às vezes, com as mãos apertadas na
cabeça. O seu cérebro de devota apenas lhe fornecia soluções devotas - entrar num recolhimento, fazer
uma promessa a Nossa Senhora das Dores "para que a livrasse daquele apuro", ir confessar-se ao padre
Silvério... E terminava por se vir sentar resignadamente ao pé da mãe com a sua costura, considerando,
muito enternecida, que desde pequena fora sempre bem infeliz!
A mãe não lhe falara claramente sobre o Comunicado: tivera apenas palavras ambíguas:
- É uma pouca-vergonha... É deitar ao desprezo... Quando a gente tem a sua consciência
sossegada, o mais histórias...
Mas Amélia via-lhe bem o desgosto - na face envelhecida, nos tristes silêncios, nos suspiros
repentinos quando fazia meia à janela com a luneta na ponta do nariz: e então mais se convencia que
havia "grande falatório na cidade", de que a mãe, coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D.
Josefa Dias - cuja boca produzia o mexerico mais naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
E então o seu amor pelo pároco, que até ai, naquela reunião de saias e batinas da Rua da
Misericórdia se lhe afigurara natural, agora, julgando-o reprovado pelas pessoas que desde pequena fora
acostumada a respeitar - os Guedes, os Marques, os Vaz, - aparecia-lhe já monstruoso: assim as cores
dum retrato pintado à luz de azeite, e que à luz de azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes
quando lhes cai em cima a luz do sol. E quase estimava que o padre Amaro não tivesse voltado à Rua
da Misericórdia.
No entanto, com que ansiedade esperava todas as noites o seu toque de campainha! Mas ele não
vinha; e aquela ausência, que a sua razão julgava prudente, dava ao seu coração o desespero de uma
traição. Na quarta- feira á noite não se conteve, disse, corando sobre a sua costura: - Que será feito do
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senhor pároco?
O cônego, que na sua poltrona parecia dormitar, tossiu grosso, mexeu-se, rosnou:
- Mas que fazer... E escusam de esperar por ele tão cedo!...
E Amélia, que ficara branca como a cal, teve imediatamente a certeza que o pároco, aterrado
com o escândalo do jornal, aconselhado pelos padres timoratos, zelosos "do bom nome do clero" - tratava
de se descartar dela! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãe, escondeu o seu desespero: foi mesmo
sentar-se ao piano, e tocou mazurcas tão estrondosas - que o cônego, tomando a mexer-se na poltrona,
grunhiu:
- Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixão pelo pároco flamejava mais irritada; e
todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma alusão num jornal o picara, ficara a tremer na sua batina,
apavorado, não se atrevendo sequer a visitá-la - sem se lembrar que também ela se via diminuída na sua
reputação, sem ser satisfeita no seu amor! E fora ele que a tentara com as suas palavrinhas doces, as suas
denguices! Infame!... Desejava violentamente apertá-lo ao coração - e esbofeteá-lo. Teve a idéia insensata
de ir ao outro dia à Rua das Sousas atirar-se-lhe aos braços, instalar-se-lhe no quarto, fazer um escândalo
que o obrigasse a fugir da diocese... Por que não? Eram novos, eram robustos, poderiam viver
longe, noutra cidade, - e a sua imaginação começou a repastar-se logo histericamente nas perspectivas
deliciosas dessa existência, em que se figurava constantemente a dar-lhe beijos! Através da sua intensa
excitação, aquele plano parecia-lhe muito prático, muito fácil: fugiriam para o Algarve; lá, ele deixaria
crescer o cabelo (que mais bonito seria então!) e ninguém saberia que era um padre; poderia ensinar
latim, ela coseria para fora; e viveriam numa casinha - onde o que mais a atraia era o leito com as duas
travesseirinhas chegadas... E a única dificuldade que via em todo este plano radiante, era fazer sair de
casa, ás escondidas da mãe, o baú com a sua roupa! - Mas quando acordou, essas resoluções mórbidas, à
luz clara do dia, desfizeram-se como sombras: tudo aquilo que parecia agora tão impraticável, e ele tão
separado dela, como se entre a Rua da Misericórdia e a Rua das Sousas se erguessem inacessivelmente
todas as montanhas da Terra. Ai, o senhor pároco abandonara-a, era certo! Não queria perder os lucros da
sua paróquia nem a estima dos seus superiores!... Pobre dela! Considerou-se então para sempre infeliz e
desinteressada da vida. Guardou, todavia, muito intenso, o desejo de se vingar do padre Amaro.
Foi então que refletiu, pela primeira vez, que João Eduardo desde a publicação do Comunicado
não aparecera na Rua da Misericórdia. Também me volta as costas - pensou com amargura. Mas que lhe
importava? No meio da aflição que lhe dava o abandono do padre Amaro, a perda do amor do escrevente,
piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade nem prazer, era uma contrariedade imperceptível: uma
infelicidade viera que lhe arrebatava bruscamente todas as afeições - a que lhe enchia a alma, e a que
apenas lhe acariciava a vaidadezinha; e irritava-a, sim, não sentir já o amor do escrevente colado a suas
saias, com a docilidade dum cão - mas todas as suas lágrimas eram para o senhor pároco "que já não
queria saber dela"! Só lamentava a deserção de João Eduardo, porque perdia assim um meio sempre
pronto de fazer enraivecer o padre Amaro...
···
Por isso nessa tarde à janela, calada, olhando no telhado defronte voarem os pardais - depois de
saber que João Eduardo certo do emprego, viera falar enfim a mãe - pensava com satisfação no desespero
do pároco ao ver publicados na Sé os banhos do seu casamento. Depois as palavras muito práticas da S.
Joaneira trabalhavam-lhe silenciosamente na alma: o emprego do governo civil rendia 25$000 réis
mensais; casando, reentrava logo na sua respeitabilidade de senhora; e se a mãe morresse, com o
ordenado do homem e com o rendimento do Morenal, podia viver com decência, ir mesmo no Verão aos
banhos... E via-se já na Vieira, muito cumprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do
governador civil.
- Que lhe parece, minha mãe? - perguntou bruscamente. Estava decidida pelas vantagens que
entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava ser persuadida e forçada.
- Eu ia pelo seguro, filha - foi a resposta da S. Joaneira.
- É sempre o melhor - murmurou Amélia entrando no quarto. E sentou-se muito triste aos pés da
cama porque a melancolia que lhe dava o crepúsculo tornava-lhe agora mais pungente a saudade "dos
seus bons tempos com o senhor pároco".
Nessa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S. Joaneira, repousada agora das
suas inquietações, estava muito sonolenta, a cada momento cabeceava com a meia caída no regaço.
Amélia então pousava a costura, e com o cotovelo sobre a mesa, fazendo girar o abajur verde do
candeeiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo era bom rapaz, coitado; realizava o tipo de marido
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tão estimado na pequena burguesia - não era feio e tinha um emprego; decerto o oferecimento da sua
mão, apesar das infâmias do jornal, não lhe parecia, como a mãe dissera, "um rasgo de mão-cheia"; mas a
sua dedicação lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia dois anos que o pobre
João gostava dela... Começou então laboriosamente a lembrar tudo o que nele lhe agradava - o seu ar
sério, os seus dentes muito brancos, a sua roupa asseada.
Fora ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças, dava-lhe apetites de confortos,
um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a dormir no berço - porque seria um rapaz, chamar-se-ia
Carlos e teria os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro... Depois de casada, decerto, tornaria a
encontrar o Sr. padre Amaro... E então uma idéia atravessou todo o seu ser, fê-la erguer bruscamente, ir
por instinto procurar a escuridão da janela para ocultar a vermelhidão do rosto. Oh! isso não, isso não!
Era horrível!... Mas a idéia implacavelmente apoderara-se dela como um braço muito forte que a sufocava
e lhe dava uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o despeito e a necessidade tinham recalcado
no fundo da sua alma, rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o
nome de Amaro: desejou avidamente os seus beijos - oh! adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha
acabado! E devia casar, pobre dela!... Então à janela, com a face contra a escuridão da noite, choramingou
baixinho.
Ao chá a S. Joaneira disse-lhe, de repente:
- Pois a coisa, a fazer-se, filha, deve ser já... Era começar o enxoval, e se fosse possível casar-te
para o fim do mês.
Ela não respondeu - mas a sua imaginação alvoroçou-se àquelas palavras. Casada daí a um mês,
ela! Apesar de João Eduardo lhe ser indiferente, a idéia daquele rapaz, novo e apaixonado, que ia viver
com ela, dormir com ela, deu uma perturbação a todo o seu ser.
E quando a mãe ia descer ao quarto, disse-lhe:
- Que lhe parece, minha mãe? Eu está-me a custar entrar em explicações com o João Eduardo,
dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
- Também acho, filha, escreve-lhe... A Ruça leva a carta pela manhã... Uma carta bonita, e que
agrade ao rapaz.
Amélia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta. Dizia:
"SR. JOÃO EDUARDO.
A mamã cá me pôs ao fato da conversação que teve consigo. E se a sua afeição é verdadeira,
como creio e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se decidiu com muito boa vontade,
pois conhece os meus sentimentos. E a respeito de enxoval e papéis, amanhã se falará, pois que
o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu desejo que tudo seja para nossa
felicidade, como espero há-de ser, com a ajuda de Deus. A mamã recomenda-se e eu sou
a que muito lhe quer,
Amélia Caminha".
Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante dela deram-lhe o desejo de
escrever ao padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe o seu amor, com a mesma pena, molhada na mesma
tinta, com que aceitava por marido o outro?... Acusá-lo da sua cobardia, mostrar o seu desgosto - era
humilhar-se! E apesar de não ter motivo para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras
palavras: "Meu adorado Amaro..." Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar a carta. Ai!
tinham de separar-se assim, em silêncio, para sempre!... Separarem-se por quê? - pensou. Depois de
casada podia bem ver o Sr, padre Amaro. E a mesma idéia voltava, sutilmente, mas numa forma tão
honesta agora, que a não repelia: decerto, o Sr. padre Amaro podia ser o seu confessor; era em toda a
cristandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciência; haveria então entre
eles uma troca deliciosa e constante de confidências, de doces admoestações; todos os sábados iria
receber ao confessionário, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e
aquilo seria casto, muito picante, e para a glória de Deus.
Sentiu-se quase satisfeita com a impressão, que não definia bem, duma existência em que a carne
estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria os encantos duma devoção amorosa. Tudo vinha a
calhar bem, por fim... E daí a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu
marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda a Sé, sentada
nos joelhos do senhor pároco.
Ao outro dia a Ruça levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as duas senhoras, costurando à
janela, falaram do casamento. Amélia não se queria separar da mãe, e, como a casa tinha acomodações, os
noivos viveriam no primeiro andar, e a S. Joaneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor cônego
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ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua-de-mel para a fazenda da D. Maria. E Amélia àquelas
perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãe que, de luneta na ponta do nariz, a
admirava, babosa.
Às Ave-Marias a S. Joaneira fechou-se embaixo no seu quarto a rezar a sua coroa, e deixou
Amélia só "para se entender com o rapaz". - Dai a pouco, com efeito, João Eduardo bateu à campainha.
Vinha muito nervoso, de luvas pretas, enfrascado em água-de-colônia. Quando chegou à porta da sala de
jantar não havia luz, e a bonita forma de Amélia destacava de pé, junto à claridade da vidraça. Ele pôs o
xale-manta a um canto como costumava, e vindo para ela que ficara imóvel, disse-lhe, esfregando muito
as mãos:
- Lá recebi a cartinha, menina Amélia.
- Eu mandei-a pela Ruça logo pela manhã para o pilhar em casa - disse ela imediatamente com as
faces a arder.
- Eu ia para o cartório, até já ia na escada... Haviam de ser nove horas...
- Haviam de ser... - disse ela.
Calaram-se, muito perturbados. Ele então tomou-lhe delicadamente os pulsos, e baixo:
- Então sempre quer?
- Quero, murmurou Amélia.
- E o mais depressa possível, hem?
- Pois sim...
Ele suspirou, muito feliz.
- Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem, dizia. E as suas mãos, com
pressões temas, iam-se apoderando dos braços dela, dos pulsos aos cotovelos.
- A mamã diz que podemos viver juntos, disse ela, esforçando-se por falar tranqüilamente.
- Está claro, e eu vou mandar fazer lençóis, acudiu ele, todo alterado.
Atraiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os lábios; ela teve um soluçozinho, abandonou-se-lhe
entre os braços, toda fraca, toda lânguida.
- Oh filha! murmurava o escrevente.
Mas os sapatos da mãe rangeram na escada, e Amélia foi vivamente para o aparador acender o
candeeiro.
A S. Joaneira parou à porta; e para dar a sua primeira aprovação maternal, disse, com bonomia:
- Então vocês estão aqui às escuras, filhos?
Foi o cônego Dias que participou ao padre Amaro o casamento de Amélia, uma manhã na Sé.
Falou no ''a propósito do enlace'', e acrescentou:
- Eu estimo, porque é a contento da rapariga, e é um descanso para a pobre velha...
- Está claro, está claro... - murmurou Amaro, que se fizera muito branco.
O cônego pigarreou grosso, e ajuntou:
- E você agora apareça por lá, agora está tudo na ordem... A patifaria do jornal isso pertence à
história... O que lá vai, lá vai!
- Está claro, está claro... - rosnou Amaro. Traçou bruscamente a capa, saiu da igreja.
Ia indignado; e continha-se, para não praguejar alto, pelas ruas. À esquina da viela das Sousas
quase esbarrou com Natário, que o agarrou, logo, pela manga, para lhe soprar ao ouvido:
- Ainda não sei nada!
- De quê?
- Do liberal, do Comunicado. Mas trabalho, trabalho!
Amaro, que ansiava por desabafar, disse logo:
- Então ouviu a novidade? O casamento de Amélia... Que lhe parece?
- Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego... Foi o doutor
Godinho... E outro que tal!... Veja você esta corja. O doutor Godinho do jornal às bulhas com o governo
civil, e o governo civil a atirar postas aos afilhados do doutor Godinho. Vá lá entendê-los! Isto é um país
de biltres!
- Diz que há grande alegrão na casa da S. Joaneira! - disse o pároco, com um azedume negro.
- Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá ir... Eu não tenho tempo para nada!... Eu cá ando no
meu fito, saber quem é o liberal e escachá-lo! Não posso ver esta gente que leva a chicotada, coça-se, e
curva a orelha. Eu cá não! eu guardo-as! - E, com uma contração de rancor, que lhe curvou os dedos em
garra, e lhe encolheu o peito magro, disse por entre os dentes cerrados: - Eu, quando odeio, odeio bem!
Esteve um momento calado, gozando o sabor do seu fel.
- Você se for à Rua da Misericórdia dê lá os parabéns a essa gente... - E acrescentou com os
olhinhos em Amaro: - O palerma do escrevente leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher o papo!
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- Até à vista! exclamou bruscamente Amaro, abalando pela rua furioso.
Depois daquele terrível domingo em que aparecera o Comunicado, o padre Amaro, ao principio,
muito egoistamente, apenas se preocupara com as conseqüências - "conseqüências fatais, Santo Deus!" -
que lhe podia trazer o escândalo. Hem! se pela cidade se espalhasse que era ele o padre ajanotado que o
liberal apostrofava! Viveu dois dias aterrado, tremendo de ver aparecer o padre Saldanha, com a sua cara
ameninada e voz melíflua, a dizer-lhe "que sua excelência o senhor chantre reclamava a sua presença"!
Passava já o tempo preparando explicações, respostas hábeis, lisonjas a sua excelência. - Mas quando viu
que, apesar da violência do artigo, sua excelência parecia disposto "a fazer a vista grossa", ocupouse
então, mais tranqüilo, dos interesses do seu amor tão violentamente perturbados. O medo tornava-o
astucioso; e decidiu não voltar algum tempo à Rua da Misericórdia.
- Deixar passar o aguaceiro, pensou.
Ao fim de quinze dias, três semanas, quando o artigo estivesse esquecido, apareceria de novo em
casa da S. Joaneira: deixaria ver bem à rapariga que a adorava sempre, mas evitaria a antiga
familiaridade, as conversazinhas baixas, os lugarzinhos chegados ao quino; depois, pela D. Maria da
Assunção, pela D. Josefa Dias, obteria que Amélia deixasse o padre Silvèrio e se confessasse a ele:
poderiam então entender-se, no segredo do confessionário: combinariam uma conduta discreta, encontros
cautelosos aqui e além, cartinhas pela criada: e aquele amor assim conduzido, com prudenciazinha, não
teria o perigo de aparecer uma manhã anunciado no periódico! E regozijava-se já da habilidade desta
combinação, quando lhe vinha o grande choque - casava-se a rapariga!
Depois dos primeiros desesperos, desabafos em patadas no soalho e blasfêmias de que pedia logo
perdão a Nosso Senhor Jesus Cristo, quis serenar, estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquela
paixão? Ao escândalo. E assim, casada ela, cada um entrava no seu destino legitimo e sensato - ela na sua
família, ele na sua paróquia. Depois, quando se encontrassem, um cumprimento amável; e ele poderia
passear a cidade com a sua cabeça bem direita, sem medo dos apartes da Arcada, das insinuações da
gazeta, das severidades de sua excelência e das picadinhas da consciência! E a sua vida seria feliz. - Não,
por Deus! a sua vida não poderia ser feliz sem ela! Tirado à sua existência aquele interesse das visitas à
Rua da Misericórdia, os apertozinhos de mão, a esperança de delicias melhores - que lhe restava a ele?
Vegetar, como um dos tortulhos nos cantos úmidos da Sé! E ela, ela que o entontecera com os seus
olhinhos e as suas maneirinhas, voltava-lhe as costas mal lhe aparecia outro, bom para marido, com
25$000 por mês! Todos aqueles suspiros, aquelas mudanças de cor - chalaça! Mangara com o senhor
pároco!
O que a odiava! - menos que ao outro porém, o outro que triunfava porque era um homem, tinha
a sua liberdade, o seu cabelo todo, o seu bigode, um braço livre para lhe dar na rua! Repastava então a
imaginação rancorosamente nas visões de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a da igreja
triunfantemente; via-o beijando-lhe o pescoço e o peito... E a estas idéias dava patadas furiosas no soalho
- que assustavam a Vicência na cozinha
Depois procurava sossegar, retomar a direção das suas faculdades, aplicá-las todas a achar uma
vingança, uma boa vingança! E voltava então o antigo desespero de não viver no tempo da Inquisição, e
com uma denúncia de irreligião ou de feitiçaria, mandá-los ambos para um cárcere. Ah! nesse tempo um
padre gozava! Mas agora, com os senhores liberais, tinha de ver aquele miserável escrevente a seis
vinténs por dia apoderar-se lhe da rapariga - e ele, sacerdote instruído, que podia ser bispo, que podia ser
papa, tinha de vergar os ombros e ruminar solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldições de Deus
tinham algum valor - malditos fossem eles! Queria vê-los cheios de filhos, sem pão na prateleira, com o
último cobertor empenhado, ressequidos de fome, injuriando-se, - e ele a rir-se, ele a regalar-se!...
···
Na segunda-feira não se conteve, foi à Rua da Misericórdia. A S. Joaneira estava embaixo na
saleta com o cônego Dias. E apenas viu Amaro:
- Oh! senhor pároco, bem aparecido! Estava a falar em V. Sa ! Já estranhava não o vermos, agora
que há alegria em casa.
- Já sei, já sei, murmurou Amaro pálido.
- Alguma vez havia de ser, disse o cônego jovialmente. Deus os faça felizes e lhes dê poucos
filhos, que a carne está cara.
Amaro sorriu - escutando em cima o piano.
Era Amélia que tocava como outrora a valsa dos Dois Mundos; e João Eduardo, muito chegado a
ela, voltava as folhas da música.
- Quem entrou, Ruça? gritou ela, sentindo os passos da rapariga nas escadas.
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- O Sr. padre Amaro.
Um fluxo de sangue abrasou-lhe o rosto - e o coração batia-lhe tão forte, que ficou um momento
com os dedos imóveis sobre e teclado.
- Não se precisava cá do Sr. padre Amaro, rosnou João Eduardo por entre dentes.
Amélia mordeu o beiço. Teve ódio ao escrevente: num instante repugnou-lhe a sua voz, os seus
modos, a sua figura de pé junto dela: pensou com deleite, como depois de casada (á que tinha de casar) se
confessaria toda ao padre Amaro, e não deixaria de o amar! Não sentia naquele momento escrúpulos; e
quase desejava que o escrevente lhe visse no rosto a paixão que a revolvia.
- Credo, criatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco mais para lá, que nem me deixa os braços
livres para tocar!
Terminou bruscamente a valsa dos Dois Mundos, começou a cantar o Adeus:
Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado!
A sua voz elevava-se, com uma modulação ardente, - dirigindo o canto, através do soalho, ao
coração do pároco, embaixo.
E o pároco, com a sua bengala entre os joelhos, sentado no canapé, devorava todos os tons da
voz dela - enquanto a S. Joaneira tagarelava, contando as peças de algodão que comprara para lençóis, os
arranjos que ia fazer no quarto dos noivos, e as vantagens de viverem juntos...
- Uma felicidade por aí além, interrompeu o cônego erguendo-se pesadamente. E vamos lá para
cima, que isto de noivos não se querem sós...
- Ah, lá nisso, disse a S. Joaneira rindo, fio-me nele, que é um homem de bem às direitas.
Amaro, ao subir a escada, tremia - e, mal entrou na sala, o rosto de Amélia, alumiado pelas luzes
do piano, deu-lhe um deslumbramento, como se as vésperas do noivado a tivessem embelezado, e a
separação lha tornasse mais apetitosa. Foi dar-lhe gravemente um aperto de mão, outro ao escrevente,
disse baixo, sem os olhar:
- Os meus parabéns... Os meus parabéns...
Voltou as costas, e foi conversar com o cônego que se enterrara na sua poltrona, queixando-se de
enfastiamento e reclamando o chá.
Amélia ficara como abstrata, correndo inconscientemente os dedos pelo teclado. Aquele modo
do padre Amaro confirmava a sua idéia: queria a todo o custo descartar-se dela, o ingrato! fazia "como se
nada tivesse havido", o vilão! Na sua cobardia de padre, com o terror do senhor chantre, do jornal, da
Arcada, de tudo - sacudia-a da sua imaginação, do seu coração, da sua vida como se sacode um inseto que
tem peçonha!... Então, para o enraivecer, começou a cochichar ternamente com o escrevente; roçava-se
lhe pelo ombro, rendida, com risinhos, segredinhos; tentaram, em alarido jovial, tocar uma peça a quatro
mãos; depois ela beliscou-o, ele deu um gritinho exagerado. - E a S. Joaneira contemplava-os
babosa, enquanto o cônego dormitava já, e o padre Amaro, abandonado a um canto como outrora o
escrevente, ia folheando o velho álbum.
Mas um brusco repique da campainha veio sobressaltá-los todos: passos rápidos galgaram a
escada, pararam embaixo na saleta; e a Ruça apareceu dizendo "que era o Sr, padre Natàrio, que não
desejava subir, e queria dar uma palavra ao senhor cônego".
- Fracas horas para embaixadas, rosnou o cônego, arrancando-se com custo ao fundo confortável
da poltrona.
Amélia fechou logo o piano - e a S. Joaneira pousando a meia foi em bicos de pés escutar ao alto
da escada: fora ventava forte, e para os lados da Praça afastava-se o toque de retreta.
Enfim a voz do cônego chamou, de baixo, da porta da saleta:
- Ó Amaro?
- Padre-mestre?
- Venha cá, homem. E diga à senhora que pode vir também.
A S. Joaneira desceu logo, muito assustada: Amaro imaginava que o padre Natàrio enfim
descobrira o liberal!
A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e na parede, num velho
painel muito escuro - que ultimamente o cônego dera à S. Joaneira - destacava uma face lívida de monge
e um osso frontal de caveira.
O cônego Dias acomodara-se ao canto do canapé, sorvendo refletidamente a pitada: e Natário,
que se agitava pela sala, exclamou logo:
- Boas noites, senhora! Olá, Amaro! Trago novidades!... Não quis subir porque imaginei que
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estaria o escrevente, e estas coisas são cá para nós. Estava a começar a dizer ao colega Dias... Tive lá em
casa o padre Saldanha. Temo-las boas!
O padre Saldanha era o confidente do senhor chantre. E o padre Amaro, já inquieto, perguntou:
- Coisa que nos toca?
Natário começou com solenidade erguendo alto o braço:
- Primo: o colega Brito mudado da freguesia de Amor para ao pé de Alcobaça, para a serra, para
o inferno...
- Que me diz? exclamou a S. Joaneira.
- Obras do liberal, minha senhora! O nosso digno chantre levou-lhe tempo a meditar o
Comunicado do Distrito, mas por fim saiu-se! O pobre Brito lá vai esfogueteado!...
- Sempre é o que se dizia da mulher do regedor, murmurou a boa senhora.
- Olá! interrompeu severamente o cônego. Então, senhora, então! Isto aqui não é casa de
murmuração!... Siga com o seu recado, colega Natário.
- Secundo, continuou Natàrio: é o que eu ia dizer ao colega Dias... O senhor chantre, em vista do
Comunicado e de outros ataques da imprensa, está decidido a "reformar os costumes do clero diocesano",
palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam sumamente os conciliábulos de eclesiásticos e de
senhoras... Que quer saber o que é isso de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas... Enfim,
palavras textuais de sua excelência - está decidido a limpar as cavalariças de Augias!... - o que quer
dizer em bom português, minha senhora, que vai andar tudo numa roda-viva.
Houve uma pausa consternada. E Natário, plantado no meio da saleta com as mãos enterradas nas
algibeiras, exclamou:
- Que lhes parece esta à última hora, hem?
O cônego ergueu-se pachorrentamente:
- Olhe, colega, disse, entre mortos e feridos há-de escapar alguém. E a senhora não se fique ai
com essa cara de Mater dolorosa, e mande servir o chá, que é o importante.
- Eu lá disse ao padre Saldanha... - começou Natário perorando.
Mas o cônego interrompeu-o com força:
- O padre Saldanha é um patarata!... Vamos nós às torradinhas, e lá em cima, diante dos rapazes,
caluda.
O chá foi silencioso. O cônego, a cada bocado de torrada, respirava afrontado, franzia muito o
sobrolho: a S. Joaneira, depois de falar da D. Maria da Assunção que estava mal do catarro, ficou toda
murcha, com a testa sobre o punho. Natário, a grandes passadas, fazia uma ventania na sala com as abas
do casacão.
- E quando vem essa boda? exclamou ele, estacando subitamente diante de Amélia e do
escrevente, que tomavam o chá sobre o piano,
- Um dia cedo, respondeu ela sorrindo.
Amaro então ergueu-se devagar, e tirando o seu cebolão:
- São horas de me ir chegando à Rua das Sousas, minhas senhoras, disse com uma voz
desalentada.
Mas a S. Joaneira não consentiu. Credo, estavam todos monos como se estivessem de pêsames!...
Que fizessem um quino para espairecer... - O cônego porém, saindo do seu torpor, disse com severidade:
- Está a senhora muito enganada, ninguém está mono. Não há razões senão para estar alegre.
Pois não é verdade, senhor noivo?
João Eduardo mexeu-se, sorriu:
- Eu cá por mim, senhor cônego, não tenho razão senão para estar feliz.
- Pois está claro, disse o cônego. E agora Deus lhes dê boas-noites a todos, que eu vou quinar
para vale de lençóis. E o Amaro também.
Amaro foi apertar silenciosamente a mão de Amélia, - e os três padres desceram calados.
Na saleta a vela ainda ardia com um morrão. O cônego entrou a buscar o seu guarda-chuva; e
então, chamando os outros, cerrando devagarinho a porta, disse-lhes baixo:
- Eu, colegas, não quis assustar há pouco a pobre senhora, mas essas coisas do chantre, esses
falatórios... É o diabo!
- É ter cautelinha, meninos! aconselhou Natário, abafando a voz.
- É sério, é sério, murmurou lugubremente o padre Amaro.
Estavam de pé no meio da saleta. Fora o vento uivava: a luz da vela agitada fazia alternadamente
destacar e reentrar na sombra do quadro o osso frontal da caveira: e em cima Amélia cantarolava a
Chiquita.
Amaro recordava outras noites felizes em que ele, triunfante e sem cuidados, fazia rir as
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senhoras, - e Amélia, gorjeando Ai chiquita que si, revirava-lhe olhares rendidos...
- Eu, disse o cônego, os colegas sabem, tenho que comer e beber, não me importa... Mas é
necessário manter a honra da classe!
- E não carece dúvida, acrescentou Natário, que se há outro artigo e mais falatórios, estala com
certeza o raio...
- Olha o padre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado para a serra!
Em cima decerto houve alguma graça, porque sentiram as risadas do escrevente.
Amaro rosnou com rancor:
- Grande galhofa lá em cima!...
Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natário duma chuva miudinha.
- Olha que noite! exclamou furioso.
Só o cônego tinha guarda-chuva: e abrindo-o devagar:
- Pois meninos, não há que ver, estamos em calças pardas...
Da janela de cima alumiada, saiam os sons do piano, nos acompanhamentos da Chiquita. O
cônego soprava, agarrando fortemente o guarda- chuva contra o vento; ao lado Natário, cheio de fel,
rilhava os dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava de cabeça caída, num abatimento de
derrota; e enquanto os três padres, assim agachados sob o guarda-chuva do cônego, iam chapinhando as
poças pela rua tenebrosa, por trás a chuva penetrante e sonora ia-os ironicamente fustigando!
XI
Daí a dias, os freqüentadores da botica, na Praça, viram com espanto o padre Natário e o doutor
Godinho conversando em harmonia, à porta da loja de ferragens do Guedes. O recebedor, - que era
escutado com deferência em questões de política estrangeira, - observou-os com atenção através da porta
vidrada da farmácia, e declarou com um tom profundo "que não se admiraria mais se visse Vítor Manuel
e Pio IX passearem de braço dado"!
O cirurgião da Câmara porém não estranhava aquele "comércio de amizade". - Segundo ele, o
último artigo da Voz do Distrito, evidentemente escrito pelo doutor Godinho (era o seu estilo incisivo,
cheio de lógica, atulhado de erudição!), mostrava que a gente da Maia se queria ir aproximando da gente
da Misericórdia. O doutor Godinho (na expressão do cirurgião da Câmara) fazia tagatés ao governo civil e
ao clero diocesano: a última frase do artigo era significativa - "Não seremos nós que regatearemos ao
clero os meios de exercer proficuamente a sua divina missão"!
A verdade era (como observou um indivíduo obeso, o amigo Pimenta), que se não havia ainda
paz já havia negociações - porque, na véspera ele vira com aqueles seus olhos que a terra tinha de comer,
o padre Natário saindo de manhã muito cedo da redação da Voz do Distrito!
- Oh amigo Pimenta, essa é fabricada!
O amigo Pimenta ergueu-se com majestade, deu um puxão grave aos cós das calças, e ia
indignar-se - quando o recebedor acudiu:
- Não, não, o amigo Pimenta tem razão. A verdade é que eu noutro dia vi o patife do Agostinho
fazer grande barretada ao padre Natário. E que o Natário traz intriga na mão, isso é seguro! Eu gosto de
observar as pessoas... Pois senhores, o Natário que nunca aparecia aqui na Arcada, agora vejo-o sempre aí
com o nariz pelas lojas... Depois a grande amizade com o padre Silvério... Hão-de reparar que são ambos
certos aí na Praça às Ave-Marias... E é negócio com a gente do doutor Godinho... O padre Silvério é o
confessor da mulher do Godinho... Umas coisas pegam com as outras!
Era muito comentada, com efeito, a nova amizade do padre Natário com o padre Silvério. Havia
cinco anos, tinha ocorrido na sacristia da Sé, entre os dois eclesiásticos, uma questão escandalosa: Natário
correra até de guarda-chuva erguido para o padre Silvério, quando o bom cônego Sarmento, banhado em
lágrimas, o reteve pela batina, gritando: "Oh colega, que é a perdição da religião! ". Desde então, Natário
e Silvério não falavam - com desgosto de Silvério, um bonacheirão, duma obesidade hidrópica, que,
segundo diziam as suas confessadas, "era todo afeição e perdão". Mas Natário, seco e pequeno, tinha
tenacidade no rancor. Quando o Sr. chantre Valadares começou a governar o bispado, chamou-os, e,
depois de lhes lembrar com eloqüência a necessidade "de manter a paz na Igreja", de lhes recordar o
exemplo tocante de Castor e Pólux, empurrou Natário com uma brandura grave para os braços do padre
Silvério - que o teve um momento sepultado na vastidão do peito e do estômago, murmurando todo
comovido:
- Todos somos irmãos, todos somos irmãos!
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Mas Natário, cuja natureza dura e grosseira nunca perdia, como o papelão, as dobras que tomava,
conservou com o padre Silvério um tom amuado; na Sé ou na rua, resvalando junto dele, com um jeito
brusco do pescoço, rosnava apenas: "Sr. padre Silvério, ás ordens!"
Havia porém duas semanas, uma tarde de chuva Natário fizera repentinamente uma visita ao
padre Silvério - sob pretexto que "o pilhara ali uma pancada de água, e que se vinha recolher um
instante".
- E também, acrescentou, para lhe pedir a sua receita para a dor de ouvidos, que uma das minhas
sobrinhas, coitada, está como doida, colega!
O bom Silvério, esquecendo decerto que ainda nessa manhã vira as duas sobrinhas de Natário sãs
e satisfeitas como dois pardais, apressou-se a escrever a receita, todo feliz de utilizar os seus queridos
estudos de medicina caseira; e murmurava, banhado de riso:
- Ora que alegria, colega, vê-lo aqui de novo nesta sua casa!
A reconciliação foi tão pública - que o cunhado do Sr. barão de Via Clara, bacharel de grandes
dotes poéticos, lhe dedicou uma daquelas sátiras que ele intitulava Ferrões, que iam manuscritas de casa
em casa, muito saboreadas e muito temidas; e chamara à composição, tendo presente decerto a figura dos
dois sacerdotes: Famosa Reconciliação do Macaco e da Baleia! Era com efeito freqüente, agora, ver a
pequena figura de Natário gesticulando e saltitando ao lado do vulto enorme e pachorrento do padre
Silvério.
Uma manhã mesmo os empregados da administração (que era então no Largo da Sé) gozaram
muito, observando da sacada os dois padres que passeavam no terraço ao tépido sol de Maio. O senhor
administrador, - que passava as horas da repartição namorando com um binóculo, por trás da vidraça do
seu gabinete, a esposa do Teles, alfaiate - começara subitamente a dar gargalhadas á janela: o escrivão
Borges correu logo, de pena na mão, à varanda, a ver de que ria sua senhoria, e, muito divertido, a fungar,
chamou à pressa o Artur Couceiro que estava copiando, para estudar à guitarra, uma canção da Grinalda;
o amanuense Pires, severo e digno, aproximou-se, carregando para a orelha o seu barretinho de seda, com
horror às correntes de ar; e em grupo, de olho arregalado, observavam os dois padres, que tinham parado
à esquina da igreja. Natário parecia excitado; procurava decerto persuadir, abalar o padre Silvério; e em
bicos de pés, plantado diante dele, agitava freneticamente as mãos muito magras. Depois, subitamente,
apoderou-se-lhe do braço, arrastou-o ao comprido do terraço lajeado: ao fundo parou, recuou, fez um
gesto largo e desolado, como atestando a perdição possível dele, da Sé ao lado, da cidade, do universo
em redor; o bom Silvério, com os olhos muito abertos, parecia apavorado. E recomeçaram a passear. Mas
Natário exaltava-se; dava recuões bruscos, atirava estocadas com um longo dedo ao vasto estômago de
Silvério, batia patadas furiosas nas lajes polidas; e de repente, de braços pendentes, mostrava-se
acabrunhado. Então o bom Silvério falou um momento com a mão espalmada sobre o peito;
imediatamente, a face biliosa de Natário iluminou-se; pulou, bateu no ombro do colega palmadinhas de
muito júbilo, - e os dois sacerdotes entraram na Sé, chegados e rindo baixinho.
- Que patuscos! disse o escrivão Borges, que detestava sotainas.
- Aquilo tudo é a respeito do jornal, disse Artur Couceiro, vindo retomar o seu trabalho lírico. O
Natário não sossega enquanto não souber quem escreveu o Comunicado; disse-o ele em casa da S.
Joaneira... E a coisa pelo Silvério vai bem, que é o confessor da mulher do Godinho.
- Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou pachorrentamente o ofício que compunha,
remetendo para Alcobaça um preso - que ao fundo da saleta, entre dois soldados, esperava sobre um
banco, prostrado e embrutecido, com uma face de fome e as mãos em ferros.
···
Dai a dias tinha havido na Sé o Ofício de corpo presente pelo rico proprietário Morais, que
morrera dum aneurisma, e a quem sua esposa (em penitência decerto dos desgostos que lhe dera com a
sua afeição desordenada por tenentes de infantaria), estava fazendo, como se disse, "exéquias de pessoa
real". - Amaro desvestira-se, e na sacristia, à luz dum velho candeeiro de latão, escrevia assentos
atrasados, quando a porta de carvalho rangeu, e a voz agitada de Natário disse:
- Ó Amaro, você está aí?
- Que temos?
O padre Natário fechou a porta, e atirando os braços para o ar:
- Grande novidade, é o escrevente!
- Que escrevente?
- O João Eduardo! É ele! É o liberal! Foi ele que escreveu o Comunicado!
- Que me diz você? fez Amaro atônito.
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- Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escrito pela letra dele. O que se chama ver! Cinco
tiras de papel!
Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natário.
- Custou, exclamou Natário. Custou, mas soube-se tudo! Cinco tiras de papel! E quer escrever
outro! O Sr. João Eduardo! O nosso rico amigo Sr. João Eduardo!
- Você está certo disso?
- Se estou certo! Estou a dizer-lhe que vi, homem!
- E como soube você, Natário?
Natário dobrou-se; e com a cabeça enterrada nos ombros, arrastando as palavras:
- Ah, colega, lá isso... Os comos e os porquês... Você compreende... Sigillus magnus!
E com uma voz aguda de triunfo, a largos passos pela sacristia:
- Mas ainda isto não é nada! o Sr. Eduardo, que nós víamos ali na casa da S. Joaneira, tão bom
mocinho, é um patife antigo. É o intimo do Agostinho, o bandido da Voz do Distrito! Está metido na
redação até altas horas da noite... Uma orgia, vinhaça, mulheres... E gaba-se de ser ateu... Há seis anos
que se não confessa... Chama-nos a canalha canônica... É republicano... Uma fera, meu caro senhor, uma
fera!
Amaro, escutando Natário, arrumava atarantadamente, com as mãos trêmulas, papéis no gavetão
da escrivaninha.
- E agora?... perguntou.
- Agora? exclamou Natário. Agora é esmagá-lo!
Amaro fechou o gavetão, e, muito nervoso, passando o lenço pelos lábios secos:
- Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga, coitada... Casar agora com um homem desses... Um
perdido!
Os dois padres, então, olharam-se fixamente. No silêncio, o velho relógio da sacristia punha o
seu tiquetaque plangente. Natário tirou da algibeira dos calções a caixa do rapé, e com os olhos ainda
fixos em Amaro, a pitada nos dedos, disse sorrindo friamente:
- Desmanchar-lhe o casamentozinho, hem?
- Você acha? perguntou sofregamente Amaro.
- Caro colega, é uma questão de consciência... Para mim era uma questão de dever! Não se pode
deixar casar a pobre pequena com um brejeiro, um pedreiro-livre, um ateu...
- Com efeito! com efeito! murmurava Amaro.
- Vem a calhar, hem? fez Natário; e sorveu com gozo a pitada. Mas o sacristão entrou; eram as
horas de fechar a igreja; vinha perguntar a suas senhorias se demoravam.
- Um instante, Sr. Domingos.
E, enquanto o sacristão corria os pesados ferrolhos da porta interior do pátio, os dois padres
muito chegados falavam baixo.
- Você vai ter com a S. Joaneira, dizia Natário. Não, escute, é melhor que lhe fale o Dias; o Dias
é que deve falar á S. Joaneira. Vamos pelo seguro. Você fale à pequena e diga-lhe simplesmente que o
ponha fora de casa! - E ao ouvido de Amaro: - Diga à rapariga que ele vive ai de casa e pucarinho com
uma desavergonhada!
- Homem! disse Amaro recuando, não sei se isso é verdade!
- Há-de ser. Ele é capaz de tudo. E depois é um meio de levar a pequena.
E foram descendo a igreja atrás do sacristão, que fazia tilintar o seu molho de chaves,
pigarreando grosso.
Nas capelas pendiam as armações de paninho negro agaloadas de prata; ao centro, entre quatro
fortes tocheiras de grosso morrão, estava a essa, com o largo pano de veludilho cobrindo o caixão do
Morais, recaindo em pregas franjadas; à cabeceira tinha uma larga coroa de perpétuas; e aos pés pendia,
dum grande laço de fita escarlate, o seu hábito de cavaleiro de Cristo.
O padre Natário então parou; e tomando o braço de Amaro, com satisfação:
- E depois, meu caro amigo, tenho outra preparada ao cavalheiro...
- O quê?
- Cortar-lhe os víveres!
- Cortar-lhe os víveres?
- O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro amanuense, hem? Pois vou-lhe
desmanchar o arranjinho!... E o Nunes Ferral que é dos meus, homem de boas idéias, vai pô-lo fora do
cartório... E que escreva então Comunicados!
Amaro teve horror àquela intriga rancorosa:
- Deus me perdoe, Natário, mas isso é perder o rapaz.
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- Enquanto o não vir por essas ruas a pedir um bocado de pão, não o largo, padre Amaro, não o
largo!
- Oh, Natário! oh, colega! isso é de pouca caridade... Isso não é de cristão... E então aqui que
Deus está a ouvi-lo...
- Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, não é a resmungar Padre-
Nossos. Para ímpios não há caridade! A Inquisição atacava-os pelo fogo, não me parece mau atacá-los
pela fome. Tudo é permitido a quem serve uma causa santa... Que se não metesse comigo!
Iam a sair; mas Natário deitou um olhar para o caixão do morto, e apontando com o guarda-chuva:
- Quem está ali?
- O Morais, disse Amaro.
- O gordo, picado das bexigas?
- Sim.
- Boa besta!
E depois de um silêncio:
- Foram os Ofícios do Morais... Eu nem dei por isso, ocupado cá na minha campanha... E a viúva
fica rica. É generosa, é presenteadora... Quem a confessa é o Silvério, hem? Tem as melhores pechinchas
de Leiria, aquele elefante!
Saíram. A botica do Carlos estava fechada, o céu muito escuro.
No largo, Natário parou:
- Resumindo: o Dias fala à S. Joaneira, e você fala à pequena. Eu por mim me entenderei com a
gente do governo civil e com o Nunes Ferral. Encarreguem-se vocês do casamento, que eu me encarrego
do emprego! - E batendo no ombro do pároco jovialmente: - É o que se pode dizer atacá-lo pelo coração e
pelo estômago! E adeusinho, que as pequenas estão à espera para a ceia! Coitadita, a Rosa tem estado
com um defluxo!... É fraquita, aquela rapariga, dá-me muito cuidado... Que eu em a vendo murcha até
perco logo o sono. Que quer você? Quando se tem bom coração... Até amanhã, Amaro.
- Até amanhã, Natário.
E os dois padres separaram-se, quando davam nove horas na Sé.
···
Amaro entrou em casa ainda um pouco trêmulo, mas muito decidido, muito feliz: tinha um dever
delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos graves pela casa, para se compenetrar bem dessa
responsabilidade estimada:
- É do meu dever! É do meu dever!
Como cristão, como pároco, como amigo da S. Joaneira, o seu dever era procurar Amélia, e, com
simplicidade, sem paixão interessada, contar- lhe que fora João Eduardo, o seu noivo, que escrevera o
Comunicado.
Foi ele! Difamou os íntimos da casa, sacerdotes de ciência e de posição; desacreditou-a a ela;
passa as noites em deboche na pocilga do Agostinho; insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligião; há
seis anos que se não confessa! Como diz o colega Natário, é uma fera! Pobre menina! Não, não podia
casar com um homem que lhe impediria a vida perfeita, lhe achincalharia as boas crenças! Não a deixaria
rezar, nem jejuar, nem procurar no confessor a direção salutar, e, como diz o santo padre
Crisóstomo, "amadureceria a sua alma para o inferno"! Ele não era seu pai, nem seu tutor; mas era
pároco, era pastor: - e se a não subtraísse àquele destino herético pelos seus conselhos graves, pela
influência da mãe e das amigas, - seria como aquele que tem a guarda dum rebanho numa herdade, e abre
indignamente a cancela ao lobo! Não, a Ameliazinha não havia de casar com o ateu!
E o seu coração então batia forte sob a efusão daquela esperança. Não, o outro não a possuiria!
Quando viesse a apoderar-se legalmente daquela cinta, daqueles peitos, daqueles olhos, daquela
Ameliazinha - ele, pároco, lá estava para dizer alto: Para trás, seu canalha! isto aqui é de Deus!
E tomaria então bem cuidado em guiar a pequena à salvação! Agora o Comunicado estava
esquecido, o senhor chantre tranqüilizado: daí a dias poderia voltar sem susto à Rua da Misericórdia,
recomeçar os deliciosos serões - apoderar-se de novo daquela alma, formá-la para o Paraíso...
E aquilo, Jesus! não era uma intriga para a arrancar ao noivo: os seus motivos (e dizia-o alto,
para se convencer melhor) eram muito retos, muito puros: aquilo era um trabalho santo para a arrancar ao
Inferno: ele não a queira para si, queria-a para Deus!... Casualmente, sim, os seus interesses de amante
coincidiam com os seus deveres de sacerdote. Mas se ela fosse vesga e feia e tola, ele iria igualmente à
Rua da Misericórdia, em serviço do Céu, desmascarar o Sr. João Eduardo, difamador e ateu!
E, sossegado por esta argumentação, deitou-se tranqüilamente.
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Mas toda a noite sonhou com Amélia. Tinha fugido com ela: e ia-a levando por uma estrada que
conduzia ao Céu! O diabo perseguia-o; ele via-o, com as feições de João Eduardo, soprando e rasgando
com os cornos os delicados seios das nuvens. E ele escondia Amélia no seu capote de padre, devorando-a
por baixo de beijos! Mas a estrada do Céu não findava. - "Onde é a porta do paraíso?" perguntava ele a
anjos de cabeleiras de ouro que passavam, num doce rumor de asas, levando almas nos braços. E todos
lhe respondiam: - "Na Rua da Misericórdia, na Rua da Misericórdia número nove!" Amaro sentia-se
perdido; um vasto éter cor de leite, penetrável e macio como uma penugem de ave, envolvia-o; e ele
procurava debalde uma tabuleta de hospedaria! Por vezes resvalava junto dele um globo reluzente de
onde saía o rumor duma criação; ou um esquadrão de arcanjos, com couraças de diamantes, erguendo alto
espadas de fogo, galopavam num ritmo nobre...
Amélia tinha fome, tinha frio. "Paciência, paciência, meu amor!" dizia-lhe ele. Caminhando,
vieram a encontrar uma figura branca, que tinha na mão uma palma verde. "Onde está Deus, nosso pai?"
perguntou-lhe Amaro, com Amélia conchegada ao peito. A figura disse: - "Eu fui um confessor, e sou um
santo: os séculos passam, e imutavelmente, sempiternamente sustento na mão esta palma e banha-me um
êxtase igual! Nenhuma tinta modifica esta luz para sempre branca; nenhuma sensação sacode o meu ser
para sempre imaculado; e imobilizado na bem-aventurança, sinto a monotonia do Céu pesar-me como
uma capa de bronze. Oh! pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas diferentes da Terra - ou
bracejar, sob as variedades da dor, nas chamas do purgatório!"
Amaro murmurou: "Bem fazemos nós em pecar!" - Mas Amélia desfalecia fatigada...
"Durmamos, meu amor!" E, deitados, viam estrelas flutuando numa poeirada como o joio sacudido
vivamente do crivo. Então nuvens começaram a dispor-se em torno deles, em pregas de cortinados, dando
um perfume de sachets: Amaro pousou a sua mão sobre o peito de Amélia: um enleio muito doce
enervava-os: enlaçaram-se, os seus lábios pegavam-se úmidos e quentes: - "Oh, Ameliazinha! "
murmurava ele. - "Amo- te, Amaro, amo-te! " suspirava ela. - Mas de repente as nuvens afastaram- se
como os cortinados dum leito; e Amaro viu diante o diabo que os alcançara, e que, com as garras na cinta,
esgaçava a boca numa risada muda. Com ele estava outro personagem: era velho como a substância; nos
anéis dos seus cabelos vegetavam florestas; a sua pupila tinha a vastidão azul dum oceano; e nos dedos
abertos com que cofiava a barba infindável, caminhavam, como em estradas, filas de raças humanas. -
"Aqui estão os dois sujeitos", dizia-lhe o diabo retorcendo a cauda. E por trás Amaro via aglomerarem-se
legiões de santos e de santas. Reconheceu S. Sebastião com as suas setas cravadas; Santa Cecília trazendo
na mão o seu órgão; por entre eles sentia balarem os rebanhos de S. João; e no meio erguia-se o
bom gigante S. Cristóvão apoiado ao seu pinheiro. Espreitavam, cochichavam! Amaro não se podia
desenlaçar de Amélia, que chorava muito baixo; os seus corpos estavam sobrenaturalmente colados; e
Amaro, aflito, via que as saias dela levantadas descobriam os seus joelhos brancos. - "Aqui estio os dois
sujeitos", dizia o diabo ao velho personagem "e repare o meu prezado amigo, porque todos aqui somos
apreciadores, que a pequena tem bonitas pernas! " Santos vetustos alçaram-se sofregamente em bicos de
pés, estendendo pescoços onde se viam cicatrizes de martírios: e as onze mil virgens bateram o vôo como
pombas espavoridas! Então o personagem, esfregando as mãos de onde se esfarelavam universos, disse
grave: "Fico inteirado, meu caro amigo, fico inteirado! Com que, senhor pároco, vai-se à Rua da
Misericórdia, arruina-se a felicidade do Sr. João Eduardo (um cavalheiro), arranca-se a Ameliazinha à
mamã, e vem-se saciar concupiscências reprimidas a um cantinho da Eternidade? Eu estou velho - e está
rouca esta voz que outrora tão sabiamente discursava pelos vales. Mas pensa que me assombra o Sr.
conde de Ribamar, seu protetor, apesar de ser um pilar da Igreja e uma coluna da Ordem? Faraó era um
grande rei - e eu afoguei-o, e os seus príncipes cativos, os seus tesouros, os seus carros de guerra, e as
manadas dos seus escravos! Eu cá sou assim! E se os senhores eclesiásticos continuarem a escandalizar
Leiria - eu ainda sei queimar uma cidade como um papel inútil, e ainda me resta água para dilúvios!" E
voltando-se para dois anjos armados de espadas e lanças, o personagem bradou: "Chumbem uma grilheta
aos pés do padre, e levem-no ao abismo número sete!". E o diabo gania: "Aí estão as conseqüências, Sr.
padre Amaro!" Ele sentiu-se arrebatado de sobre o seio de Amélia por mãos de brasa; e ia lutar, bradar
contra o juiz que o julgava - quando um sol prodigioso que vinha nascendo do Oriente bateu no rosto do
personagem, e Amaro, com um grito, reconheceu o Padre Eterno!
Acordou banhado em suor. Um raio de sol entrava pela janela.
···
Nessa noite João Eduardo, indo da Praça para casa da S. Joaneira, ficou assombrado, ao ver
aparecer à outra boca da rua, do lado da Sé, o Santíssimo em procissão.
E vinha para casa das senhoras! Por entre as velhas de mantéu pela cabeça, as tochas faziam
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destacar opas de paninho escarlate; sob o pálio os dourados da estola do pároco reluziam; uma campainha
tocava adiante, às vidraças apareciam luzes; - e na noite escura o sino da Sé repicava, sem descontinuar.
João Eduardo correu aterrado - e soube logo que era a extrema-unção á entrevada.
Tinham posto na escada um candeeiro de petróleo sobre uma cadeira. Os serventes encostaram à
parede da rua os varais do pálio, e o pároco entrou. João Eduardo, muito nervoso, subiu também: ia
pensando que a morte da entrevada, o luto retardariam o seu casamento; contrariava-o a presença do
pároco e a influência que ele adquiria naquele momento; e foi quase quezilado que perguntou à Ruça na
saleta:
- Então como foi isto?
- Foi a pobre de Cristo que esta tarde começou a esmorecer, o senhor doutor veio, diz que estava
a acabar e a senhora mandou pelos sacramentos.
João Eduardo, então, julgou delicado ir assistir "à cerimônia".
O quarto da velha era junto à cozinha; e tinha naquele momento uma solenidade lúgubre. Sobre
uma mesa coberta de toalha de folhos, estava um prato com cinco bolinhas de algodão entre duas velas de
cera. A cabeça da entrevada, toda branca, a sua face cor de cera mal se distinguiam do linho do
travesseiro; tinha os olhos estupidamente dilatados; e ia apanhando incessantemente com um gesto lento a
dobra do lençol bordado.
A S. Joaneira e Amélia rezavam ajoelhadas à beira da cama; a Sra. D. Maria da Assunção (que
casualmente entrara, ao voltar da fazenda) ficara à porta do quarto aterrada, agachada sobre os
calcanhares, murmurando Salve-Rainhas. João Eduardo, sem ruído, dobrou o joelho junto dela.
O padre Amaro, curvado quase ao ouvido da entrevada, exortava-a a que se abandonasse à Misericórdia
divina; mas vendo que ela não compreendia, ajoelhou, recitou rapidamente o Misereatur; e no silêncio, a
sua voz erguendo-se nas sílabas latinas mais agudas, dava uma sensação de enterro que enternecia, fazia
soluçar as duas senhoras. Depois ergueu-se, molhou o dedo nos santos óleos; murmurando as expressões
penitentes do ritual ungiu os olhos, o peito, a boca, as mãos - que há dez anos só se moviam para chegar a
escarradeira, e as plantas dos pés que há dez anos só se aplicavam a buscar o calor da botija. E depois de
queimar as bolinhas de algodão úmidas de óleo, ajoelhou-se, ficou imóvel, com os olhos postos no
Breviário.
João Eduardo voltou em pontas de pés á sala, sentou-se no mocho do piano: agora decerto,
durante quatro ou cinco semanas, Amélia não tornaria a tocar... E uma melancolia amoleceu-o, vendo no
doce progresso do seu amor aquela brusca interrupção da morte e dos seus cerimoniais.
A Sra. D. Maria entrou então, toda transtornada daquela cena - e seguida de Amélia que trazia os olhos
muito vermelhos.
- Ah! ainda bem que aqui está, João Eduardo! disse logo a velha. Que quero que me faça um
favor, que é acompanhar-me a casa... Estou toda a tremer... Estava desprevenida, e com perdão de Deus
seja dito, não posso ver gente na agonia... Que ela, coitadinha, vai-se como um passarinho... E pecados
não os tem... Olhe, vamos pela Praça que é mais perto. E desculpe... Tu, filha, dispensa, mas não posso
ficar... É que me dava a dor... Ai! que desgosto... Que para ela até é melhor... Pois olhem, sinto- me a
desfalecer...
Foi mesmo necessário que Amélia a levasse a baixo, ao quarto da S. Joaneira, a reconfortá-la
caridosamente com um cálice de jeropiga.
- Ameliazinha, disse então João Eduardo, se eu sou cá necessário para alguma coisa...
- Não, obrigada. Ela está por instantes, coitadinha...
- Não te esqueças, filha, recomendou descendo a Sra. D. Maria da Assunção, põe-lhe as duas
velas bentas à cabeceira... Alivia muito na agonia... E se tiver muitos arrancos, põe outras duas apagadas,
em cruz... Boas noites... Ai, que nem me sinto!
À porta, mal viu o pálio, os homens com as tochas, apoderou-se do braço de João Eduardo,
colou-se toda a ele com terror - um pouco também com o acesso de ternura que lhe dava sempre a
jeropiga.
···
Amaro prometera voltar mais tarde, para "as acompanhar, como amigo, naquele transe". E o
cônego (que chegara, quando a procissão como o pálio dobrava a esquina para o lado da Sé), informado
desta delicadeza do senhor pároco, declarou logo que visto que o colega Amaro vinha fazer a noitada, ele
ia descansar o corpo porque, Deus bem o sabia, aquelas comoções arrasavam-lhe a saúde.
- E a senhora não havia de querer que eu apanhasse alguma, e me visse nos mesmos assados...
- Credo, senhor cônego! exclamou a S. Joaneira, nem diga isso!...
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- E começou a choramingar, muito abalada.
- Pois então boas noites, disse o cônego, e nada de afligir. Olhe, a pobre criatura, alegria não a
tinha: e como não tem pecados não lhe importa achar-se na presença de Deus. Tudo bem considerado,
senhora, é uma pechincha! E adeusinho, que me não estou a sentir bem...
Também a S. Joaneira não se sentia bem. O choque, logo depois do jantar, dera-lhe ameaças de
enxaqueca: - e quando Amaro voltou, às onze, Amélia que fora abrir a porta, disse-lhe, ao subir à sala de
jantar:
- O senhor pároco desculpe... A mamã veio-lhe a enxaqueca, coitada... Estava que nem via...
Deitou-se, pôs água sedativa e adormeceu...
- Ah! deixá-la dormir!
Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabeça virada para a parede; dos seus beiços abertos
saía um gemido muito débil e contínuo. Sobre a mesa agora, uma grossa vela benta, de morrão negro,
erguia uma luz triste; e ao canto, transida de medo, a Ruça, segundo as recomendações da S. Joaneira, ia
rezando a coroa.
- O senhor doutor, disse Amélia baixo, diz que morre sem o sentir... Diz que há-de gemer,
gemer, e de repente acabar como um passarinho...
- Seja feita a vontade de Deus, murmurou gravemente o padre Amaro.
Voltaram à sala de jantar. Toda a casa estava silenciosa: fora ventava forte. Havia muitas
semanas que não se encontravam assim sós. Muito embaraçado, Amaro aproximou-se da janela: Amélia
encostou-se ao aparador.
- Vamos ter uma noite de água, disse o pároco.
- E está frio, disse ela, encolhendo-se no xale. Eu tenho estado passada de medo...
- Nunca viu morrer ninguém?
- Nunca.
Calaram-se - ele imóvel ao pé da janela, ela encostada ao aparador, de olhos baixos.
- Pois está frio, disse Amaro, com a voz alterada da perturbação que lhe ia dando a presença dela
àquela hora da noite.
- Na cozinha está a braseira acesa, disse Amélia. É melhor irmos para lá.
- É melhor.
Foram. Amélia levou o candeeiro de latão: e Amaro, indo remexer com as tenazes o brasido
vermelho, disse:
- Há que tempo que eu não entro aqui na cozinha... Ainda tem os vasos com os raminhos fora da
janela?
- Ainda, è um craveiro...
Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da braseira. Amélia, inclinada para o lume, sentia os
olhos do padre Amaro devorá-la silenciosamente. Ele ia falar-lhe, decerto! Tinha as mãos a tremer; não
ousava mover- se, erguer as pálpebras, com medo que lhe rompessem as lágrimas; mas ansiava pelas suas
palavras, ou amargas ou doces...
Elas vieram enfim, muito graves.
- Menina Amélia, disse, eu não esperava poder assim falar-lhe a sós. Mas as coisas arranjaramse...
É decerto a vontade de Nosso Senhor! E depois, como as suas maneiras mudaram tanto...
Ela voltou-se bruscamente, toda escarlate, o beicinho trêmulo:
- Mas bem sabe por quê! exclamou quase chorando.
- Sei. Se não fosse aquele infame Comunicado, e as calúnias... nada se tinha passado, e a nossa
amizade seria a mesma, e tudo iria bem... É justamente a esse respeito que eu lhe quero falar.
Chegou a cadeira mais para junto dela, e muito suave, muito tranqüilo:
- Lembra-se desse artigo em que todos os amigos da casa eram insultados? em que eu era
arrastado pela rua da amargura? em que a menina mesma, a sua honra era ofendida?... Lembra-se, hem?
Sabe quem o escreveu?
- Quem? perguntou Amélia toda surpreendida.
- O Sr. João Eduardo! disse o pároco muito tranqüilamente cruzando os braços diante dela.
- Não pode ser!
Tinha-se erguido. Amaro puxou-lhe devagarinho pelas saias para a fazer sentar; e a sua voz
continuou paciente e suave:
- Ouça. Sente-se. Foi ele que o escreveu. Soube ontem tudo. O Natário viu o original escrito pela
letra dele. Foi ele que descobriu. Por meios dignos decerto,.. e porque era a vontade de Deus que a
verdade aparecesse. Agora escute. A menina não conhece esse homem. - Então, baixo, contou-lhe o que
sabia de João Eduardo, por Natário: as suas noitadas com o Agostinho, as suas injúrias contra os padres, a
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sua irreligião...
- Pergunte-lhe se ele se confessa há seis anos, e peça-lhe os bilhetes da confissão!
Ela murmurava, com as mãos caídas no regaço:
- Jesus, Jesus...
- Eu então entendi que como íntimo da casa, como pároco, como cristão, como seu amigo,
menina Amélia... porque acredite que lhe quero... enfim, entendi que era o meu dever avisá-la! Se eu
fosse seu irmão, dizia-lhe simplesmente: "Amélia, esse homem fora de casa!". Não o sou, infelizmente.
Mas venho, com dedicação de alma, dizer-lhe: "O homem com quem quer casar surpreendeu a sua boa-fé
e de sua mamã; vem aqui, sim senhor, com aparências de bom moço, e no fundo é..."
Ergueu-se, como ferido duma indignação irreprimível:
- Menina Amélia, é o homem que escreveu esse Comunicado! que fez ir o pobre Brito para a
serra de Alcobaça! que me chamou a mim sedutor! que chamou devasso ao Sr. cônego Dias! Devasso!
Que lançou veneno nas relações de sua mamã com o cônego! e que a acusou à menina, em bom
português, de se deixar seduzir! Diga, quer casar com esse homem?
Ela não respondeu, com os olhos cravados no lume, duas lágrimas mudas sobre as faces.
Amaro deu passos irritados pela cozinha; e voltando ao pé dela, com a voz abrandada, gestos
muito amigos:
- Mas suponhamos que não era ele o autor do Comunicado, que não tinha insultado em letra
redonda a sua mamã, o senhor cônego, os seus amigos: resta ainda a sua impiedade! Veja que destino o
seu se casasse com ele! Ou teria de condescender com opiniões do homem, abandonar as suas devoções,
romper com os amigos de sua mãe, não pôr os pés na igreja, dar escândalo a toda a gente honesta, ou teria
de se pôr em oposição com ele, e a sua casa seria um inferno! Por tudo uma questão! Por jejuar à sextafeira,
por ir à exposição do Santíssimo, por cumprir o domingo... Se se quisesse confessar, que
desavenças! Um horror! E sujeitar-se a ouvi-lo escarnecer os mistérios da fé! Ainda me lembro, na
primeira noite que aqui passei, com que desacato ele falou da Santa da Arregaça!... E ainda me lembro
uma noite que o padre Natário aqui falava dos sofrimentos do nosso santo padre Pio IX, que seria preso,
se os liberais entrassem em Roma... Como ele tinha risinhos de escárnio, como disse que
eram exagerações!... Como se não fosse perfeitamente certo que por vontade dos liberais veríamos o
chefe da Igreja, o vigário de Cristo, dormir num calabouço em cima dumas poucas de palhas! São as
opiniões dele, que ele apregoa por toda parte! O padre Natário diz que ele e o Agostinho estavam no café
ao pé do Terreiro, a dizer que o batismo era um abuso, porque cada um devia escolher a religião que
quisesse, e não ser forçado, de pequeno, a ser cristão! Hem, que lhe parece? Como seu amigo lho
digo... Para bem da sua alma antes a queria ver morta, do que ligada a esse homem! Case com ele, e perde
para sempre a graça de Deus!
Amélia levou as mãos às fontes, e deixando-se cair para as costas da cadeira, murmurou, muito
desgraçada:
- Oh meu Deus, meu Deus!
Amaro então sentou-se ao pé dela, tocando-lhe quase o vestido com o joelho, pondo na voz uma
bondade paternal:
- E depois, minha filha, pensa que um homem assim pode ter bom coração, apreciar a sua
virtude, querer-lhe como um marido cristão? Quem não tem religião não tem moral. Quem não crê não
ama, diz um dos nossos santos padres. Depois de lhe passar o fogacho da paixão, começaria a ser duro
consigo, mal-humorado, voltaria a freqüentar o Agostinho e as mulheres da vida e maltratá-la-ia talvez...
E que susto constante para si! Quem não respeita a religião não tem escrúpulos: mente, rouba,
calunia... Veja o Comunicado. Vir aqui apertar a mão ao senhor cônego, e ir para o jornal chamar-lhe
devasso! Que remorsos não sentiria a menina, mas tarde, à hora da morte! É muito bom enquanto se tem
saúde e se é nova; mas quando chegasse a sua última hora, quando se achasse, como aquela pobre criatura
que está ali, nos últimos arrancos, que terror não sentiria de ter de aparecer diante de Jesus Cristo, depois
de ter vivido em pecado ao lado desse homem! Quem sabe se ele não recusaria que lhe dessem a extremaunção!
Morrer sem sacramentos, morrer como um animal!
- Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus, senhor pároco! exclamou Amélia rompendo num
choro nervoso.
- Não chore, disse ele tomando-lhe suavemente a mão entre as suas, muito trêmulas. Escute,
abra-se comigo... Vá, esteja sossegada, tudo se remedeia. Não há banhos publicados... Diga-lhe que não
quer casar, que sabe tudo, que o odeia...
Esfregava, apertava devagarinho a mão de Amélia. E subitamente, com voz dum ardor brusco:
- Não se importa com ele, não é verdade?
Ela respondeu muito baixo, com a cabeça caída sobre o peito:
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- Não.
- Então, ai tem! fez excitado. E diga-me, gosta de outro?
Ela não respondeu, com o peito a arfar fortemente, os olhos dilatados para o lume.
- Gosta? Diga, diga!
Passou-lhe o braço sobre o ombro, atraindo-a docemente. Ela tinha as mãos abandonadas no
regaço; sem se mover voltou devagar para ele os olhos resplandecentes sob uma névoa de lágrimas; e
entreabriu devagar os lábios, pálida, toda desfalecida. Ele estendeu os beiços a tremer - e ficaram imóveis,
colados num só beijo, muito longo, profundo, os dentes contra os dentes.
- Minha senhora! minha senhora! gritou de repente, num terror, a voz da Ruça, dentro.
Amaro ergueu-se dum salto, correu ao quarto da entrevada. Amélia estava tão trêmula, que
precisou encostar-se à porta da cozinha um momento, com as pernas vergadas, a mão sobre o coração.
Recuperou-se, desceu a acordar a mãe.
Quando entraram no quarto da idiota, Amaro ajoelhado, com a face quase sobre o leito, rezava:
as duas senhoras rojaram-se no chão: uma respiração acelerada sacudia o peito, as ilhargas da velha: e à
medida que o arquejo se tornava mais rouco, o pároco precipitava as suas orações. Subitamente o som
agonizante cessou: ergueram-se: a velha estava imóvel, com os bugalhos dos olhos saídos e baços.
Expirara.
O padre Amaro trouxe logo as senhoras para a sala; - e aí a S. Joaneira, curada, pelo choque, da
sua enxaqueca, desabafou, em acessos de choro, recordando o tempo em que a pobre mana era nova, e
que bonita era! e que bom casamento estivera para fazer com o morgado da Vigareira!...
- E o gênio mais dado, senhor pároco! Uma santa! E quando a Amélia nasceu, e que eu estive tão
mal, que não se tirou de ao pé de mim, noite e dia!... E alegre, não havia outra... Ai Deus da minha alma,
Deus da minha alma!
Amélia, encostada à vidraça na sombra da janela, olhava entorpecida a noite negra.
Bateram então à campainha. Amaro desceu, com uma vela. Era João Eduardo que, ao ver o
pároco àquela hora na casa, - ficou petrificado, junto da porta aberta; enfim balbuciou:
- Eu vinha saber se havia novidade...
- A pobre senhora expirou agora mesmo...
- Ah!
Os dois homens olharam-se um instante fixamente.
- Se eu sou preciso para alguma coisa... - disse João Eduardo.
- Não, obrigado. As senhoras vão-se deitar.
João Eduardo fez-se pálido da cólera que lhe davam aqueles modos de dono da casa. Esteve
ainda um momento, hesitando - mas vendo o pároco abrigar a luz, com a mão, contra o vento da rua:
- Bem, boa noite, disse.
- Boa noite.
O padre Amaro subiu: e depois de deixar as duas senhoras no quarto da S. Joaneira (porque,
cheias de terror, queriam dormir juntas), voltou ao quarto da morta, despertou a vela sobre a mesa,
acomodou-se numa cadeira, e começou a ler o Breviário.
Mais tarde, quando toda a casa estava silenciosa, o pároco, sentindo o sono entorpecê-lo, veio à
sala de jantar; reconfortou-se com um cálice de vinho do Porto que achara no aparador; e saboreava
regaladamente o cigarro, quando ouviu na rua passos de botas fortes que iam, vinham, por baixo das
janelas. Como a noite estava escura não pôde distinguir "o passeante". Era João Eduardo que rondava a
casa, furioso.
XII
Ao outro dia cedo, a Sra. D. Josefa Dias que entrara, havia pouco, da missa, ficou muito
surpreendida, ouvindo a criada que lavava as escadas dizer de baixo:
- Está aqui o Sr, padre Amaro, Sra. D. Josefa!
O pároco ultimamente raras vezes vinha a casa do cônego; e D. Josefa gritou logo lisonjeada e já
curiosa:
- Que suba para aqui, não é de cerimônia! É como de família. Que suba!
Estava na sala de jantar, arranjando numa travessa ladrilhos de marmelada, com um vestido de
barege preto esgaçado na ilharga e arqueado em redor dos tornozelos por uma crinoline dum só arco;
trazia nessa manhã óculos azuis; e foi logo ao patamar, arrastando os seus medonhos chinelos de ourelo, e
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preparando, por baixo do lenço preto repuxado sobre a testa, um ar agradável para o senhor pároco.
- Ora ditosos olhos, exclamou. Eu entrei há bocadinho, e já cá tenho a primeira missinha. Fui
hoje à capela de Nossa Senhora do Rosário... Disse-a o padre Vicente. Ai! e que virtude, que me fez hoje,
senhor pároco! Sente-se. Aí não, que lhe vem ar da porta... E então a pobre entrevada lá se foi... Conte lá,
senhor pároco...
O pároco teve de descrever a agonia da entrevada, a dor da S. Joaneira; como depois de morta a
face da velha parecera remoçar; o que as senhoras tinham decidido a respeito da mortalha...
- Aqui para nós, D. Josefa, é um grande alívio para a S. Joaneira... - E de repente, puxando-se
para a beira da cadeira, assentando as mãos nos joelhos: - E que me diz à do Sr. João Eduardo? Já sabe?
Foi ele que escreveu o artigo!
A velha exclamou, levando as mãos à cabeça:
- Ai! nem me fale nisso, senhor pároco! Nem me fale nisso, que até tenho estado doente!
- Ah, já sabe?
- E mais que sei, senhor pároco! O Sr. padre Natário, devo-lhe esse favor, esteve aqui ontem e
contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma perdida!
- E sabe que é o íntimo do Agostinho, que são bebedeiras na redação até de madrugada, que vai
para o bilhar do Terreiro achincalhar a religião...
- Ai, por quem é, senhor pároco, nem me diga, nem mo diga! Que ontem, quando o Sr. padre
Natário esteve ai, até tive escrúpulos de ouvir tanto pecado... Que lhe devo esse favor, ao Sr. padre
Natário, logo que soube veio-me contar... É de muito delicado... E olhe, senhor pároco, a mim sempre me
quis parecer isso mesmo do homem. Eu nunca o disse, nunca o disse! Que lá isso, esta boquinha nunca se
pôs em vidas alheias... Mas tinha cá dentro um palpite. Ele ia à missa, cumpria o jejum; mas eu cá tinha a
desconfiança que aquilo era para enganar a S. Joaneira e a pequena. Agora se vê! Ele foi criatura que
nunca me caiu em graça! Nunca, senhor pároco! - E de repente, com os olhinhos luzidios duma alegria
perversa: - E agora, já se sabe, o casamento desmancha-se?
O padre Amaro recostou-se na cadeira, e muito pausadamente:
- Ora, minha senhora, seria notório que uma rapariga de bons princípios fosse casar com um
pedreiro-livre, que não se confessa há seis anos!
- Credo, senhor pároco! antes vê-la morta! É necessário dizer tudo à rapariga.
O padre Amaro interrompeu, chegando rapidamente a cadeira para ao pé dela:
- Pois foi justamente para isso mesmo que eu a vim procurar, minha senhora. Eu ontem já falei
com a pequena... Mas compreende, no meio daquele desgosto, com a pobre senhora a expirar ao lado, não
pude insistir muito. Enfim disse-lhe o que havia, aconselhei-a por bons modos, expus-lhe que ia perder a
sua alma, ter uma vida desgraçada, etc. Fiz o que pude, minha senhora, como amigo e como pároco. E
como era o meu dever (ainda que me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe que, como cristã e como
senhora, tinha obrigação de romper com o escrevente.
- E ela?
O padre Amaro fez uma visagem descontente:
- Não disse que sim nem que não. Pôs-se a fazer biquinho, a choramingar. É verdade que estava
muito alterada com a morte em casa. Que a rapariga não morre por ele, isso é claro; mas quer casar, tem
medo que a mãe morra, que se veja só... Enfim sabe o que são raparigas! Que as minhas palavras fizeramlhe
efeito, ficou muito indignada, etc. ... Mas enfim, eu pensei que o melhor era a senhora falar-lhe. A
senhora é a amiga da casa, é madrinha, conheceu-a de pequena... Estou certo que no seu testamento havia
de lhe deixar uma boa lembrança... Tudo isto são considerações...
- Ai, fica por minha conta, senhor pároco, exclamou a velha, hei- de-lhas contar!
- A rapariga o que precisa é quem a dirija. Aqui para nós, precisa quem a confesse! Ela confessase
ao padre Silvério; mas, sem querer dizer mal, o padre Silvério, coitado, pouco vale. Muito caridoso,
muita virtude; mas o que se chama jeito, não tem. Para ele a confissão é a desobriga. Pergunta doutrina,
depois faz o exame pelos mandamentos da lei de Deus... Veja a senhora!... Está claro que a rapariga não
furta, nem mata, nem deseja a mulher do seu próximo! A confissão assim não lhe aproveita: o que ela
precisa é um confessor teso, que lhe diga - para ali! e sem réplica. A rapariga é um espírito fraco; como a
maior parte das mulheres não se sabe dirigir por si; necessita por isso um confessor que a governe com
uma vara de ferro, a quem ela obedeça, a quem conte tudo, a quem tenha medo... É como deve ser um
confessor.
- O senhor pároco é que lhe servia...
Amaro sorriu modestamente:
- Não digo que não. Havia de aconselhá-la bem; sou amigo da mãe, acho que ela é boa rapariga e
digna da graça de Deus. Que eu, sempre que converso com ela, todos os conselhos que posso, em tudo,
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dou- lhos... Mas a senhora compreende, há coisas em que se não pode estar a falar na sala, com gente à
volta... Só se está à vontade no confessionário. E é o que me falta, são as ocasiões de lhe falar só. Mas
enfim eu não posso ir dizer-lhe: "a menina agora há-de confessar-se comigo"! Eu nisso sou muito
escrupuloso...
- Mas digo-lhe eu, senhor pároco! Ah, digo-lhe eu!...
- Ora isso é que era um grande favor! Era um bem que fazia àquela alma! Porque se a rapariga
me entrega a direção da sua alma, então podemos dizer que lhe acabaram as dificuldades, e temo-la no
caminho da graça... E quando lhe vai falar, D. Josefa?
D. Josefa, "como julgava pecado adiar", estava decidida a falar-lhe essa mesma noite.
- Não me parece, D. Josefa. Hoje é noite de pêsames... O escrevente naturalmente está lá...
- Credo, senhor pároco! Pois eu e as outras pequenas havemos de passar a noite debaixo das
mesmas telhas com o herege?
- Tem de ser. Enfim, o rapaz por ora é considerado da família... Além disso, D. Josefa, a senhora,
a D. Maria e as Gansosinhos são pessoas da maior virtude... Mas nós não devemos ter orgulho da nossa
virtude... Arriscamo-nos a perder-lhe todos os frutos. E é um ato de humildade, que agrada muito a Deus,
o misturar-nos às vezes com os maus; é como quando um grande fidalgo tem de estar lado a lado com um
trabalhador de enxada... É como se disséssemos: "Eu sou-te superior em virtude, mas comparado com o
que devia ser para entrar na glória, quem sabe se não sou tão pecador como tu!..." E esta humilhação da
alma é a melhor oferta que podemos fazer a Jesus.
D. Josefa escutava-o, babosa; e numa admiração:
- Ai, senhor pároco, que até dá virtude ouvi-lo!
Amaro curvou-se:
- Deus às vezes, na sua bondade, inspira-me justas palavras... Pois, minha senhora, eu não quero
maçar mais. Ficamos entendidos. A senhora fala à pequena amanhã; e se, como é de crer, ela consentir
em escutar os meus conselhos, traz-ma à Sé, no sábado, às oito horas. E fale-lhe teso, D. Josefa!
- Deixe-a comigo, senhor pároco!... Então não quer provar da minha marmelada?
- Provarei, disse Amaro, tomando um ladrilho em que cravou os dentes com dignidade.
- É dos marmelos da D. Maria. Saiu-me melhor que a das Gansosinhos...
- Pois adeus, D. Josefa... Ah, é verdade, que diz o nosso cônego deste caso do escrevente?
- O mano?...
Neste momento a campainha embaixo repicou com furor.
- Há-de ser ele, disse logo D. Josefa. E vem zangado!
Vinha, com efeito, da fazenda - furioso com o caseiro, o regedor, o governo e a perversidade dos
homens. Tinham-lhe roubado uma porção de cebolinho; e, abafado de cólera, aliviava-se repetindo com
gozo o nome do Inimigo.
- Credo, mano, que até lhe fica mal! - exclamou D. Josefa tomada de escrúpulos.
- Ora, mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo co'os diabos! e repito co'os
diabos! Mas eu lá disse ao caseiro, que se sentir gente na fazenda, carregue a espingarda e faça fogo!
- Há uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.
- Há uma falta de respeito por tudo! exclamou o cônego. Um cebolinho que dava saúde só olhar
para ele! Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu chamo um sacrilégio!... Um desaforado sacrilégio! -
acrescentou com convicção; porque o roubo do seu cebolinho, o cebolinho dum cônego, parecia-lhe um
ato tão negro de impiedade como se tivessem sido furtados os vasos santos da Sé.
- Falta de temor a Deus, falta de religião, observou D. Josefa.
- Qual falta de religião! replicou o cônego exasperado. Falta de cabos de polícia, é o que é! - E
voltando-se para Amaro: - Hoje é o enterro da velha, hem? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá
dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!
O padre Amaro então, retomado pela sua preocupação:
- Estávamos cá a falar do caso do João Eduardo: o Comunicado!
- Isso é outra maroteira que tal, fez logo o cônego. Vejam essa, também! Que quadrilha vai pelo
mundo, que quadrilha! - e ficou de braços cruzados, com os olhos arregalados, como contemplando uma
legião de monstros, soltos pelo universo, e arremessando-se com impudência contra as reputações, os
princípios da Igreja, a honra das famílias e o cebolinho do clero.
Ao sair, o padre Amaro renovou ainda as suas recomendações a D. Josefa, que o acompanhara ao
patamar.
- Então hoje, noite de pêsames, não se faz nada. Amanhã fala à rapariga, e lá para o fim da
semana leva-ma à Sé. Bem. E convença a rapariga, D. Josefa, trate de salvar aquela alma! Olhe que Deus
tem os olhos em si. Fale-lhe teso, fale-lhe teso!... E o nosso cônego que se entenda com a S. Joaneira.
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- Pode ir descansado, senhor pároco. Sou madrinha, e, quer ela queira quer não, hei-de pô-la no
caminho da salvação...
- Amém, disse o padre Amaro.
Nessa noite, com efeito, D.Josefa "não fez nada". Eram os pêsames na Rua da Misericórdia.
Estavam embaixo, na saleta, alumiada lugubremente por uma só vela com um abajur verde-escuro. A S.
Joaneira e Amélia, de luto, ocupavam tristemente o canapé ao centro; e em redor, nas fileiras de cadeiras
apoiadas à parede, as amigas, cobertas de negro pesado, conservavam-se funebremente imóveis, de faces
contristadas, num torpor mudo: às vezes duas vozes ciciavam, ou dum canto, na sombra, saía um suspiro:
depois o Libaninho, ou Artur Couceiro, ia em bicos de pés espevitar o morrão da vela; a D. Maria da
Assunção expectorava o seu catarro com um som choroso: e no silêncio ouviam tamancos bater no lajedo
da rua, ou os quartos de hora no relógio da Misericórdia.
A intervalos a Ruça, toda de negro, entrava com o tabuleiro de doces e copos de chazada;
levantava-se então o abajur; e as velhas, que já iam cerrando as pálpebras, sentindo a sala mais clara,
levavam logo os lenços aos olhos, e, com ais, serviam-se de bolinhos da Encarnação.
João Eduardo lá estava, a um canto, ignorado, ao pé da Gansoso surda que dormia com a boca
aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde o olhar de Amélia, que não se movia, com o rosto sobre
o peito, as mãos no regaço, torcendo e destorcendo o seu lenço de cambraieta. O Sr. padre Amaro e o Sr.
cônego Dias vieram às nove horas: o pároco com passos graves foi dizer à S. Joaneira:
- Minha senhora, o golpe é grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua excelentíssima mana
está a esta hora gozando a companhia de Jesus Cristo.
Houve em redor uma murmuração de soluços; e como não restavam cadeiras, os dois
eclesiásticos sentaram-se aos dois cantos do canapé, tendo no meio a S. Joaneira e Amélia em lágrimas.
Eram assim reconhecidos pessoas de família; a Sra. D. Maria da Assunção notou baixinho a D.
Joaquina Gansoso:
- Ai, até dá gosto vê-los assim todos quatro!
E até às dez horas a noite de pêsames continuou soturna e sonolenta, perturbada apenas pela
tosse constante de João Eduardo que estava constipado, e que (na opinião da Sra. D. Josefa Dias que o
disse a todos, depois), "tossia só para fazer troça e para achincalhar o respeito aos mortos".
···
Daí a dois dias, às oito horas da manhã, a Sra. D. Josefa Dias e Amélia entraram na Sé - depois
de terem falado no terraço à Amparo, mulher do boticário, que tinha uma criança com sarampo, e, apesar
de não ser coisa de cuidado, "viera à cautela fazer uma promessa".
O dia estava enevoado, a igreja tinha luz parda. Amélia, pálida sob a sua mantilha de renda,
parou defronte do altar de Nossa Senhora das Dores, deixou-se cair de joelhos, e ficou imóvel, com o
rosto sobre o livro de missa. A Sra. D. Josefa Dias, com passos fofos, depois de se ter prostrado diante da
capela do Santíssimo e do altar-mor, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro lá
passeava, com os ombros vergados, as mãos atrás das costas:
- Então? perguntou logo, erguendo para D. Josefa a sua face muito barbeada, onde os olhos
reluziam inquietos.
- Está ali, disse a velha baixinho, numa expressão de triunfo. Fui eu mesma buscá-la! Ai, faleilhe
teso, senhor pároco, não lhas poupei! Agora é consigo!
- Obrigado, obrigado, D. Josefa! disse o padre, apertando-lhe as mãos ambas com força. Deus
há-de-lho levar em conta.
Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o lenço, a carteira dos papéis; e, cerrando
devagarinho a porta da sacristia, desceu à igreja. Amélia ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro
imóvel contra o pilar branco.
- Pst, fez-lhe D. Josefa.
Ela ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo tremulamente com as mãos as pregas da
mantilha em roda do pescoço.
- Aqui lha deixo, senhor pároco, disse a velha. Vou à Amparo da botica, e venho depois por ela.
Ora vai filha, vai, Deus te alumie essa alma!
E saiu com mesuras a todos os altares.
O Carlos da botica - que era inquilino do cônego e um pouco ronceiro na renda - desbarretou-se
com espalhafato apenas D. Josefa apareceu à porta, e conduziu-a logo acima, à sala de cortinas de cassa,
onde a Amparo costurava à janela.
- Ai, não se prenda, Sr. Carlos, dizia-lhe a velha. Não largue os seus afazeres. Eu deixei a
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afilhada na Sé, e venho aqui descansar um bocadinho.
- Então, se me dá licença... E como vai o nosso cônego?
- Não tornou a ter a dor. Mas tem sofrido de tonturas.
- Começos de Primavera, disse o Carlos que retomara o seu ar majestoso, de pé no meio da sala,
com os dedos nas aberturas do colete. Também eu me tenho sentido perturbado... Nós, as pessoas
sangüíneas, sofremos sempre disto que se pode chamar o renascimento da seiva... Há uma abundância de
humores no sangue, que, não sendo eliminados pelos canais próprios, vão, por assim dizer, abrir caminho,
aqui e além, pelo corpo, sob a forma de furúnculo, espinha, nascida, às vezes, em lugares bem incômodos,
e, ainda que em si insignificantes, acompanhados sempre, por assim dizer, dum cortejo... Perdão, sinto o
praticante a palrar... Se me dá licença... Respeitos ao nosso cônego. Que use a magnésia de James!
D. Josefa então quis ver a menina com o sarampo. Mas não passou da porta do quarto,
recomendando à pequena, que arregalava uns olhos de febre, muito abafada na roupa, "não se descuidasse
das suas oraçõezinhas de manhã e à noite". Aconselhou à Amparo alguns remédios, que eram milagrosos
no sarampo; mas se a promessa fora feita com fé, a menina podia considerar-se curada... Ai, todos os dias
dava graças a Deus de se não ter casado! Que filhos eram só para dar trabalho e canseiras; e com as
quezílias que traziam e o tempo que tomavam, eram até causa duma mulher se descuidar das suas práticas
e meter a alma no Inferno.
- Tem razão, D. Josefa, disse a Amparo, é um castigo... E eu com cinco! Às vezes fazem-me tão
doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me a chorar só comigo...
Tinham voltado para junto da janela, e gozaram muito, espreitando o senhor administrador do
conselho, que, por trás da vidraça da repartição, namorava de binóculo a do Teles alfaiate. - Ai, era um
escândalo! Que nunca houvera em Leiria autoridades assim! O secretário-geral era um desaforo com a
Novais... Que se podia esperar de homens sem religião, educados em Lisboa, que, segundo D. Josefa,
estava predestinada a perecer como Gomorra pelo fogo do Céu! - A Amparo cosia com a cabeça
baixa, envergonhada talvez diante daquela indignação piedosa, dos desejos culpados que a roíam de ver o
Passeio Público e de ouvir os cantores em S. Carlos.
Mas bem depressa a Sra. D. Josefa começou a falar do escrevente. A Amparo não sabia nada; e a
velha teve a satisfação de contar prolixamente, "tintim por tintim", a história do Comunicado, o desgosto
na Rua da Misericórdia, e a campanha de Natário para descobrir o liberal. Alargou-se principalmente
sobre o caráter de João Eduardo, a sua impiedade, as suas orgias... E, considerando um dever de cristã
aniquilar o ateu, deu mesmo a entender que alguns roubos ultimamente cometidos em Leiria, eram "obra
de João Eduardo".
A Amparo declarou-se "banzada". O casamento então, com a Ameliazinha...
- Isso pertence á história, declarou com júbilo D. Josefa Dias. Vão pô-lo fora de casa! E por
muito feliz se deve o homem dar em não ir parar ao banco dos réus... Que a mim o deve, e à prudência do
mano e do Sr. padre Amaro. Que havia motivos para o ferrar na cadeia!
- Mas a pequena gostava dele, ao que parece.
D. Josefa indignou-se. Credo, a Amélia era uma rapariga de juízo, de muita virtude! Apenas
conheceu os desaforos, foi a primeira a dizer que não, e que não! Ai! detestava-o... - E D. Josefa,
baixando a voz em confidência, contou "que era positivo que ele vivia com uma desgraçada para os lados
do quartel".
- Disse-o o Sr. padre Natário, afirmou. - E aquilo é homem que da sua boca nunca sai senão a
verdade pura... Foi muito delicado comigo, devo-lhe esse favor. Apenas soube veio-me logo dizer a casa,
pedir-me conselhos... Enfim, muito atencioso.
Mas o Carlos apareceu de novo. Tinha a botica desembaraçada um momento (que não o tinham
deixado respirar toda a manhã!) e vinha fazer companhia às senhoras.
- Então já sabe, Sr. Carlos, exclamou logo D. Josefa, o caso do Comunicado e do João Eduardo?
O farmacêutico arregalou os seus olhos redondos. Que relação havia entre um artigo tão indigno, e esse
mancebo que lhe parecia honesto?
- Honesto? ganiu a Sra. D. Josefa Dias. Foi ele que o escreveu, Sr. Carlos!
E vendo o Carlos morder o beiço de surpresa, D. Josefa, entusiasmada, repetiu a história da
"maroteira".
- Que lhe parece, Sr. Carlos, que lhe parece?
O farmacêutico deu a sua opinião, numa voz vagarosa, sobrecarregada da autoridade dum vasto
entendimento:
- Nesse caso digo, e todas as pessoas de bem o dirão comigo, é uma vergonha para Leiria. Eu já
tinha observado, quando li o Comunicado: a religião é a base da sociedade, e miná-la é, por assim dizer,
querer aluir o edifício... É uma desgraça que haja na cidade desses sectários do materialismo e da
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república, que, como é sabido, querem destruir tudo o que existe; proclamam que os homens e as
mulheres se devem unir com a promiscuidade de cães e cadelas... (Desculpem exprimir-me assim, mas
a ciência é a ciência.) Querem ter o direito de entrar em minha casa, levar- me as pratas e o suor do meu
rosto; não admitem que haja autoridades, e se os deixassem seriam capazes de cuspir na sagrada hóstia...
D. Josefa encolheu-se com um gritinho, muito arrepiada.
- E ousa esta seita falar em liberdade! Eu também sou liberal... Que, francamente o digo, eu não
sou fanático... Nem pelo fato dum homem pertencer ao sacerdócio, o julgo um santo, não... Por exemplo,
sempre embirrei com o pároco Miguéis... Era uma jibóia! Desculpe-me a senhora, mas era uma jibóia.
Disse-lho na cara, porque a lei das rolhas já lá vai... Derramamos o nosso sangue nas trincheiras do Porto,
justamente para não haver lei das rolhas... Disse-lho na cara: "Vossa senhoria é uma jibóia!" Mas, enfim,
quando um homem veste uma batina deve ser respeitado... E o Comunicado, repito, é uma vergonha para
Leiria... E também lhe digo, com esses ateus, esses republicanos, não deve haver consideração!... Eu sou
um homem pacífico, aqui a Amparozinho conhece-me bem; pois se eu tivesse de aviar uma receita para
um republicano declarado, não tinha dúvida, em lugar de lhe dar uma dessas composições benéficas que
são o orgulho da nossa ciência, de lhe mandar uma dose de ácido prússico... Não, não direi que lhe
mandasse ácido prússico... mas se estivesse no banco dos jurados, havia de lhe fazer cair em cima todo o
peso da lei!
E balançou-se um momento sobre a ponta das chinelas, lançando um grande gesto em redor,
como se esperasse os aplausos dum conselho de distrito ou duma municipalidade em sessão.
Mas na Sé bateram então devagar as onze; e D. Josefa embrulhou- se à pressa no seu mantelete
para ir buscar a pequena, coitada, que havia de estar farta de esperar.
O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe (como um mimo que remetia ao seu
senhorio):
- Repita ao nosso cônego quais são as minhas opiniões... Que nessa questão do Comunicado e de
ataques ao clero, estou de alma e coração com suas senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo vaise
a embrulhar.
Quando D. Josefa entrou na igreja, Amélia estava ainda no confessionário. A velha tossiu alto,
ajoelhou, e, com as mãos sobre a face, abismou-se numa devoção à Senhora do Rosário. A igreja ficou
numa imobilidade e num silêncio. Depois D. Josefa, voltando-se para o confessionário, espreitou por
entre os dedos; Amélia conservava-se imóvel, com a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do
vestido negro espalhada em redor; e D. Josefa recaiu na sua reza. Uma chuva fina fustigava agora os
vidros duma janela, ao lado. Enfim, houve no confessionário um rangido de madeira, um frufru de
vestidos nas lajes, - e D. Josefa, voltando-se, viu de pé diante dela Amélia com a face escarlate e o olhar
reluzindo muito.
- Está há muito tempo à espera, madrinha?
- Um bocadinho. Estás prontinha, hem?
Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras saíram da Sé. Ainda caía uma chuva fina; mas o Sr.
Artur Couceiro, que passava no largo com ofícios para o governo civil, foi levá-las à Rua da Misericórdia
debaixo do seu guarda-chuva.
XIII
João Eduardo, à noitinha, ia sair de casa para a Rua da Misericórdia, levando debaixo do braço
um rolo de amostras de papel de parede para Amélia escolher, quando à porta encontrou a Ruça que ia
puxar a campainha.
- Que é, Ruça?
- As senhoras foram passar a noite fora de casa, e aqui está esta carta que manda a senhora.
João Eduardo sentiu apertar-se-lhe o coração, e seguia com o olhar pasmado a Ruça, que descia a
rua, batendo os tamancos. Foi ao pé do candeeiro, defronte, abriu a carta:
"SR. JOÃO EDUARDO.
O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuasão que era V. Sa. uma
pessoa de bem e que me poderia fazer feliz,' mas como se sabe tudo, e que foi o senhor que
escreveu o artigo do Distrito, e caluniou os amigos da casa e me insultou a mim, e como os seus
costumes não me dão garantia de felicidade na vida de casada, deve desde hoje, considerar tudo
acabado entre nós, pois não há banhos publicados nem despesas feitas. E eu espero, bem como
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a mamã, que o senhor seja bastante delicado para não nos voltar a casa, nem perseguir-nos na
rua. O que tudo lhe comunico por ordem da mamã, e sou
criada de V. Sa.
Amélia Caminha'' .
João Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede defronte onde batia a claridade do candeeiro,
imóvel como uma pedra, com o seu rolo de papéis pintados debaixo do braço. Maquinalmente, voltou a
casa. As mãos tremiam-lhe tanto, que mal podia acender o candeeiro. De pé, junto da mesa, releu a carta.
Depois ficou ali, fatigando a vista contra a chama da torcida, com uma sensação arrefecedora de
Imobilidade e de Silêncio, como se subitamente, sem choque, toda a vida universal tivesse emudecido e
parado. Pensou onde teriam elas ido passar a noite. Lembranças de serões felizes na Rua da Misericórdia
atravessaram-lhe devagar na memória: Amélia trabalhava, com a cabeça baixa, e entre o cabelo muito
preto e o colar muito branco o seu pescoço tinha uma palidez que a luz amaciava... Então a idéia de que a
perdera para sempre varou-lhe o coração com um frio de punhalada. Apertou as fontes entre as mãos,
tonto. Que havia de fazer? que havia de fazer? Resoluções bruscas relampejavam-lhe um momento no
espírito, esvaíam-se. Queria escrever-lhe! Tirá-la por justiça! Ir para o Brasil! Saber quem descobrira que
ele era o autor do artigo! - E como isto era o mais praticável àquela hora, correu à redação da Voz do
Distrito.
Agostinho, estirado no canapé, com a vela ao pé sobre uma cadeira, saboreava os jornais de
Lisboa. A face descomposta de João Eduardo assustou-o.
- Que é?
- É que me perdeste, maroto!
E de um só fôlego acusou furiosamente o corcunda de o ter traído.
Agostinho erguera-se devagar, procurando sem perturbação a bolsa do tabaco na algibeira da
jaqueta.
- Homem, disse, nada de espalhafatos... Eu dou-te a minha palavra de honra que não disse a
ninguém do Comunicado. É verdade que ninguém me perguntou...
- Mas quem foi, então? gritou o escrevente.
Agostinho enterrou a cabeça nos ombros.
- Eu o que sei é que os padres andavam numa azáfama para saber quem era. O Natário esteve aí
uma manhã, por causa do anúncio de uma viúva que recorre à caridade pública, mas do Comunicado não
se disse nem palavra... O doutor Godinho é que sabia, entende-te com ele! Mas então fizeram-te alguma?
- Mataram-me! disse João Eduardo lugubremente.
Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e saiu arremessando a porta. Passeou na Praça;
foi ao acaso pelas ruas; depois, atraído pela obscuridade, à estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma
intolerável palpitação surda latejar-lhe interiormente contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos,
parecia-lhe seguir um silêncio universal; por vezes a idéia da sua desgraça rasgava-lhe subitamente o
coração, e então imaginava ver toda a paisagem oscilar e o chão da estrada afigurava-se-lhe mole como
um lamaçal. Voltou pela Sé quando batiam onze horas; e achou-se na Rua da Misericórdia, com o olhar
cravado para a janela da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraça do quarto de Amélia alumiou-se
também; ela ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um desejo furioso da sua beleza, do seu corpo, dos seus
beijos. Fugiu para casa; uma fadiga intolerável prostrou-o sobre a cama; depois uma saudade indefinida,
profunda, foi-o amolecendo, e chorou muito tempo, enternecendo-se mais com o som dos seus próprios
soluços, - até que ficou adormecido, de bruços, numa massa inerte.
···
Ao outro dia, cedo, Amélia vinha da Rua da Misericórdia para a Praça, quando ao pé do Arco,
João Eduardo lhe saiu de emboscada.
- Quero falar-lhe, menina Amélia.
Ela recuou assustada, disse a tremer:
- Não tem que me falar...
Mas ele plantara-se diante dela, muito decidido, com os olhos vermelhos como carvões:
- Quero-lhe dizer... Lá do artigo, é verdade, fui eu que o escrevi, foi uma desgraça; mas a menina
tinha-me ralado de ciúmes... Mas o que a menina diz de maus costumes é uma calúnia. Eu sempre fui um
homem de bem...
- O Sr. padre Amaro é que o conhece! Faz favor de me deixar passar...
Ao nome do pároco, João Eduardo fez-se lívido de raiva:
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- Ah! é o Sr. padre Amaro! É o maroto do padre! Pois veremos Ouça...
- Faz favor de me deixar passar! disse ela irritada, tão alto, que um sujeito gordo de xale-manta
parou olhando.
João Eduardo recuou, tirando o chapéu; e ela, imediatamente, refugiou-se na loja do Fernandes.
Então, num desespero, correu a casa do doutor Godinho. Já na véspera, por entre os seus acessos
de choro, sentindo-se tão abandonado, se lembrara do doutor Godinho. Fora outrora seu escrevente; e
como por pedido dele entrara no cartório do Nunes Ferral, e por sua influência ia ser acomodado no
governo civil, julgava-o uma Providência pródiga e inesgotável! Demais, desde que escrevera o
Comunicado considerava-se da redação da Voz do Distrito, do grupo da Maia; agora, que era atacado
pelos padres, devia claramente ir acolher-se à forte proteção do seu chefe, do doutor Godinho, do inimigo
da reação, o "Cavour de Leiria", como dizia, arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, autor dos
Ferrões! - E João Eduardo, dirigindo-se ao casarão amarelo, ao pé do Terreiro onde o doutor vivia, ia
num alvoroço de esperanças, contente em se refugiar, como um cão escorraçado, entre as pernas daquele
colosso!
O doutor Godinho descera já ao escritório, e repoltreado na sua poltrona abacial de pregos
amarelos, com os olhos no teto de carvalho escuro, acabava com beatitude o charuto do almoço. Recebeu
com majestade os "bons-dias" de João Eduardo.
- E então que temos, amigo?
As altas estantes de in-fólios graves, as resmas de autos, o aparatoso painel representando o
marquês de Pombal, de pé num terraço sobre o Tejo, expulsando com o dedo a esquadra inglesa -
acanharam como sempre João Eduardo; e foi com voz embaraçada que disse vinha ali para que sua
excelência lhe desse remédio numa desgraça que lhe sucedia.
- Desordens, bordoada?
- Não, senhor, negócios de família.
Contou então, prolixamente, a sua história desde a publicação do Comunicado; leu, muito
comovido, a carta de Amélia; descreveu a cena ao pé do Arco... Ali estava agora, escorraçado da Rua da
Misericórdia por obras do senhor pároco! E parecia-lhe a ele, apesar de não ser formado em Coimbra, que
contra um padre que se introduzia numa família, desinquietava uma menina simples, levava por intrigas a
romper com o noivo e ficava de portas adentro senhor dela - devia haver leis!
- Eu não sei, senhor doutor, mas deve haver leis!
O doutor Godinho parecia contrariado.
- Leis! exclamou traçando vivamente a perna. Que leis quer você que haja? Quer querelar do
pároco?... Por quê? Ele bateu-lhe? Roubou- lhe o relógio? Insultou-o pela imprensa? Não. Então?...
- Oh, senhor doutor, mas intrigou-me com as senhoras! Eu nunca fui homem de maus costumes,
senhor doutor! Caluniou-me!
- Tem testemunhas?
- Não, senhor.
- Então?
E o doutor Godinho, assentando os cotovelos sobre a banca, declarou que, como advogado, não
tinha nada a fazer. Os tribunais não tomavam conhecimento dessas questões, desses dramas morais por
assim dizer, que se passavam nas alcovas domésticas... Como homem, como particular, como Alípio de
Vasconcelos Godinho, também não podia intervir porque não conhecia o Sr. padre Amaro, nem essas
senhoras da Rua da Misericórdia... Lamentava o fato, porque enfim fora novo, sentira a poesia da
mocidade, e sabia (infelizmente sabia!) o que eram esses transes do coração... E ai está tudo o que ele
podia fazer - lamentar! Também para que tinha ele dado a sua afeição a uma beata?...
João Eduardo interrompeu-o:
- A culpa não é dela, senhor doutor! A culpa é do padre que a anda a desencaminhar! A culpa é
dessa canalha do cabido!
O doutor Godinho estendeu com severidade a mão, e aconselhou o Sr. João Eduardo que tivesse
cuidado com semelhantes asserções! Nada provava que o senhor pároco possuísse nessa casa outra
influência, que não fosse a dum hábil diretor espiritual... E recomendava ao Sr. João Eduardo, com a
autoridade que lhe davam os anos e a sua posição no pais, que não fosse espalhar, por despeito, acusações
que só serviam para destruir o prestigio do sacerdócio, indispensável numa sociedade bem constituída! -
Sem ele, tudo seria anarquia e orgia!
E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava nessa manhã com "o dom da palavra".
Mas a face consternada do escrevente, que não se movia, de pé junto da banca, impacientava-o; e
disse com secura, puxando para diante de si um volume de autos:
- Enfim, acabemos, que quer o amigo? Já vê, eu não lhe posso dar remédio.
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João Eduardo replicou, com um movimento de coragem desesperada:
- Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer alguma coisa por mim... Porque enfim eu fui uma
vitima... Tudo isto vem de se saber que eu escrevi o Comunicado. E tinha-se combinado que havia de ser
segredo. O Agostinho não disse, só o senhor doutor o sabia...
O doutor pulou de indignação na sua cadeira abacial:
- Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a entender que fui eu que o disse? Não disse... Isto é,
disse; disse-o a minha mulher, porque numa família bem constituída não deve haver segredos entre
esposo e esposa. Ela perguntou-me, disse-lho... Mas suponhamos que fui eu que o espalhei pelas ruas. De
duas uma: ou o Comunicado era uma calúnia, e então sou eu que devo acusá-lo de ter poluído um jornal
honrado com um acervo de difamações; ou era verdade, e então que homem é o senhor que se envergonha
das verdades que solta e que não se atreve a manter á luz do dia as opiniões que redigiu na escuridão da
noite?
Duas lágrimas enevoaram os olhos de João Eduardo. Então, diante daquela expressão
esmorecida, satisfeito de o ter esmagado com uma argumentação tão lógica e tão poderosa, o doutor
Godinho abrandou:
- Bem, não nos zanguemos, disse. Não se fala mais em pontos de honra... O que pode acreditar é
que lamento o seu desgosto.
Deu-lhe conselhos duma solicitude paternal. Que não sucumbisse; havia mais meninas em Leiria
e meninas de bons princípios que não viviam sob a direção da sotaina. Que fosse forte, e que se
consolasse pensando que ele, doutor Godinho - e era ele! - também tivera em moço desgostos do coração.
Que evitasse o domínio das paixões que lhe seria prejudicial na carreira pública. E que se o não fizesse
por seu interesse próprio, o fizesse ao menos em atenção a ele, doutor Godinho!
João Eduardo saiu do escritório, indignado, julgando-se traído pelo doutor.
- Isto sucede-me a mim, resmungava, porque sou um pobre-diabo, não dou votos nas eleições,
não vou às soirées do Novais, não subscrevo para o clube. Ah, que mundo! Se eu tivesse um par de
contos de réis!...
Veio-lhe então um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e da religião que os
justifica. Voltou muito decidido ao escritório, e entreabrindo a porta:
- Vossa excelência ao menos agora dá licença que eu desabafe no jornal?... Queria contar esta
maroteira, cascar nessa canalha...
Esta audácia do escrevente indignou o doutor. Endireitou-se com severidade na poltrona, e
cruzando terrivelmente os braços:
- O Sr. João Eduardo está realmente a abusar! Pois o senhor vem- me pedir que transforme um
jornal de idéias num jornal de difamações? Vá, não se prenda! Pede-me que insulte os princípios da
religião, que achincalhe o Redentor, que repita as baboseiras de Renan, que ataque as leis fundamentais
do Estado, que injurie o rei, que vitupere a instituição da família! O senhor está ébrio.
- Oh, senhor doutor!
- O senhor está ébrio! Cuidado, meu caro amigo, cuidado, olhe que vai por um declive! É por
esse caminho que se chega a perder o respeito da autoridade, da lei, das coisas santas e do lar. É por esse
caminho que se vai ao crime! Escusa de arregalar os olhos... Ao crime, digo-lho eu! Tenho a experiência
de vinte anos de foro. Homem, detenha-se! Refreie essas paixões. Safa! Que idade tem o senhor?
- Vinte e seis anos.
- Pois não há desculpa para um homem de vinte e seis anos ter essas idéias subversivas. Adeus,
feche a porta. E escute. Escusa de pensar em mandar outro Comunicado para outro qualquer jornal. Não
lho consinto, eu que o tenho protegido sempre! Havia de querer fazer espalhafato... Escusa de negar,
estou-lho a ler nos olhos. Pois não lho consinto! É para seu bem, para lhe poupar uma má ação social!
Tomou uma grande atitude na poltrona, repetiu com força:
- Uma péssima ação social! Aonde nos querem os senhores levar com os seus materialismo, os
seus ateísmos? Quando tiverem dado cabo da religião de nossos pais, que têm os senhores para a
substituir? Que têm? Mostre lá!
A expressão embaraçada de João Eduardo (que não tinha ali, para a mostrar, um religião que
substituísse a de nossos pais) fez triunfar o doutor.
- Não têm nada! Têm lama, quando muito têm palavreado! Mas enquanto eu for vivo, pelo
menos em Leiria, há-de ser respeitada a Fé e o principio da Ordem! Podem pôr a Europa a fogo e sangue,
em Leiria não hão-de erguer cabeça. Em Leiria estou eu alerta, e juro que lhes hei-de ser funesto!
João Eduardo recebia de ombros vergados estas ameaças, sem as compreender. Como podia o
seu Comunicado e as intrigas da Rua da Misericórdia produzirem assim catástrofes sociais e revoluções
religiosas? Tanta severidade aniquilava-o. Ia perder decerto a amizade do doutor, o emprego no governo
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civil... Quis abrandá-lo:
- Oh, senhor doutor, mas vossa excelência bem vê...
O doutor interrompeu-o com um grande gesto:
- Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixões, a vingança o vão levando por um caminho fatal...
O que espero é que os meus conselhos o detenham. Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta, homem!
João Eduardo saiu acabrunhado. Que havia de fazer agora? O doutor Godinho, aquele colosso,
repelia-o com palavras tremendas! E que podia ele, pobre escrevente de cartório, contra o padre Amaro
que tinha por si o clero, o chantre, o cabido, os bispos, o papa, classe solidária e compacta que lhe
aparecia como uma medonha cidadela de bronze erguendo- se até ao céu! Eram eles que tinham causado a
resolução de Amélia, a sua carta, a dureza das suas palavras. Era uma intriga de párocos, cônegos
e beatas. Se ele pudesse arrancá-la àquela influência, ela tomaria a ser bem depressa a sua Ameliazinha
que lhe bordava chinelas, e que vinha toda corada vê-lo passar à janela! As suspeitas que outrora tivera
tinham-se desvanecido naqueles serões felizes, depois de decidido o casamento, quando ela, costurando
junto do candeeiro, falava da mobília que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha. Ela amava-o,
decerto... Mas quê, tinham- lhe dito que ele era o autor do Comunicado, que era herege, que tinha
costumes devassos; o pároco, na sua voz pedante, ameaçara-a com o Inferno; o cônego, furioso, e todopoderoso
na Rua da Misericórdia porque dava para a panela, falara teso - e a pobre menina, assustada,
dominada, com aquele bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe ao ouvido, coitada,
cedera! Estava talvez persuadida, de boa-fé, que ele era uma fera! E àquela hora, enquanto ele ali andava
pelas ruas, escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na saleta da Rua da Misericórdia, enterrado na
poltrona, senhor da casa e senhor da rapariga, de pema traçada, palrava de alto! Canalha! E não haver leis
que o vingassem! E não poder sequer "fazer escândalo", agora que a Voz do Distrito se lhe tomava
inacessível!
Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o pároco aos murros, com a força do padre Brito.
Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos num jornal, que revelassem as intrigas da Rua da
Misericórdia, amotinassem a opinião, caíssem sobre o padre como catástrofes, o forçassem a ele, ao
cônego e aos outros a desaparecerem corridos da casa da S. Joaneira! Ah! estava certo que a Ameliazinha,
livre daqueles galfarros, correria logo aos seus braços, com lágrimas de reconciliação...
Procurava assim à força convencer-se que "a culpa não era dela"; recordava os meses de
felicidade antes da chegada do pároco; arranjava explicações naturais para aquelas maneirinhas ternas que
ela outrora tinha para o padre Amaro, e que lhe tinham dado ciúmes desesperados: era o desejo, coitada,
de ser agradável ao hóspede, ao amigo do senhor cônego, de o reter para vantagem da mãe e da casa! E
além disso, como ela andava contente depois de resolvido o casamento! A sua indignação contra o
Comunicado, estava certo, não era natural dela - vinha-lhe soprada pelo pároco e belas beatas. E achava
uma consolação nesta idéia que não era repelido como namorado, como marido - mas que era uma vítima
das intrigas do torpe padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o odiava como liberal! Isto acumulavalhe
na alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua procurava ansiosamente uma
vingança, atirando a imaginação, aqui e além - mas vinha-lhe sempre a mesma idéia, o artigo do jornal, a
verrina, a imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se tivesse por si um figurão!
Um homem do campo, amarelo como uma cidra, que ia caminhando devagar, com o braço ao
peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor Gouveia.
- Na primeira rua, à esquerda, o portão verde ao pé do lampião, disse João Eduardo.
E uma esperança imensa alumiou-lhe bruscamente a alma: o doutor Gouveia é que o podia
salvar! O doutor era seu amigo; tratava-o por tu desde que o curara havia três anos da pneumonia;
aprovava muito o seu casamento com Amélia; havia ainda semanas perguntara-lhe ao pé da Praça: -
"Então, quando se faz essa rapariga feliz?" E que respeitado, que temido na Rua da Misericórdia! Era
médico de todas as amigas da casa que, apesar de se escandalizarem com a sua irreligião, dependiam
humildemente da sua ciência para os achaques, os flatos, os xaropes. Além disso, o doutor Gouveia,
inimigo decidido da padraria, decerto se ia indignar com aquela intriga beata: e João Eduardo via-se já
entrando na Rua da Misericórdia atrás do doutor Gouveia, que repreendia a S. Joaneira, arrasava o padre
Amaro, convencia as velhas, - e a sua felicidade recomeçava, inabalável agora!
- O senhor doutor está? perguntou ele quase alegre, à criada que no pátio estendia a roupa ao sol.
- Está na consulta, Sr. Joãozinho, faça favor de entrar.
Em dias de mercado os doentes do campo afluíam sempre. Mas àquela hora - quando os vizinhos
das freguesias se reúnem nas tabernas - havia só um velho, uma mulher com uma criança ao colo e o
homem do braço ao peito, esperando numa saleta baixa com bancos, dois manjericões na janela e uma
grande gravura da Coroação da Rainha Vitória. Apesar do sol claro que entrava no pátio, e de uma fresca
folhagem de tília que roçava o peitoril da janela, a saleta dava tristeza, como se as paredes, os bancos, os
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mesmos manjericões estivessem saturados da melancolia das doenças que ali tinham passado. João
Eduardo entrou e sentou-se a um canto.
Tinha batido meio-dia, e a mulher estava-se queixando de ter esperado tanto: era de uma
freguesia distante; deixara no mercado a irmã, e havia uma hora que o senhor doutor estava com duas
senhoras! A cada momento a criança rabujava, ela sacudia-a nos braços: calavam-se depois: o velho
arregaçava a calça, contemplava com satisfação uma chaga na canela envolta em trapos: e o outro homem
dava bocejos desconsolados que tomavam mais lúgubre a sua longa face amarela. Aquela demora
enervava, amolecia o escrevente; sentia perder gradualmente o ânimo de ocupar o doutor Gouveia;
preparava laboriosamente a sua história, mas ela parecia-lhe agora bem insuficiente para o interessar.
Vinha-lhe então um desalento, que as faces insípidas dos doentes tomavam ainda mais
intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta vida, cheia só de misérias, de sentimentos traídos, de
aflições, de doenças! Erguia-se; e com as mãos atrás das costas ia olhar desconsoladamente a Coroação da
Rainha Vitória.
De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas senhoras ainda lá estariam.
Lá estavam; e através do batente de baeta verde, que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes
pachorrentas palrarem.
- Em caindo aqui, é dia perdido! rosnava o velho.
Também ele deixara a cavalgadura à porta do Fumaça, e a rapariga na Praça... E o que teria a
esperar na botica, depois! Com três léguas ainda a fazer para voltar à freguesia!... Ser doente é bom, mas
para quem é rico e tem vagares!
A idéia da doença, da solidão que ela traz, faziam agora parecer a João Eduardo mais amarga a
perda de Amélia. Se adoecesse, teria de ir para o hospital. O malvado do padre tirara-lhe tudo - mulher,
felicidade, confortos de família, doces companhias da vida!
Enfim, sentiram no corredor as duas senhoras que saíam. A mulher com a criança apanhou o seu
cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando- se logo do banco junto da porta, disse com satisfação:
- Agora cá o patrão!
- Vossemecê tem muito que consultar? perguntou-lhe João Eduardo.
- Não senhor, é só receber a receita.
E imediatamente contou a história da sua chaga: fora uma trave que lhe caíra em cima; não fizera
caso; depois a ferida assanhara-se; e agora ali estava, manco e curtidinho de dores.
- E vossa senhoria, é coisa de cuidado? perguntou ele.
- Eu não estou doente, disse o escrevente. São negócios com o senhor doutor.
Os dois homens olharam-se com inveja.
Enfim foi a vez do velho, depois a do homem amarelo de braço ao peito. João Eduardo, só,
passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito difícil ir assim, sem cerimônia, pedir proteção ao
doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se queixar primeiro de dores do peito ou desarranjos do
estômago, e depois, incidentalmente, contar os seus infortúnios...
Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante dele, com sua longa barba grisalha que lhe caía
sobre a quinzena de veludo preto, o largo chapéu desabado na cabeça, calçando as luvas de fio de
Escócia.
- Olá! és tu, rapaz! Há novidade na Rua da Misericórdia? João Eduardo corou.
- Não senhor, senhor doutor, queria falar-lhe em particular.
Seguiu-o ao gabinete - o conhecido gabinete do doutor Gouveia que, com o seu caos de livros, o
seu tom poeirento, uma panóplia de flechas selvagens e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade a
reputação duma "Cela de Alquimista".
O doutor puxou o seu cebolão.
- Um quarto para as duas. Sê breve.
A face do escrevente exprimiu o embaraço de condensar uma narração tão complicada.
- Está bom, disse o doutor, explica-te como puderes. Não há nada mais difícil que ser claro e
breve; é necessário ter gênio. Que é?
João Eduardo então tartamudeou a sua história, insistindo sobretudo na perfídia do padre,
exagerando a inocência de Amélia...
O doutor escutava-o, cofiando a barba.
- Vejo o que é. Tu e o padre, disse ele, quereis ambos a rapariga. Como ele é o mais esperto e o
mais decidido, apanhou-a ele. É lei natural: o mais forte despoja, elimina o mais fraco; a fêmea e a presa
pertencem-lhe.
Aquilo pareceu a João Eduardo um gracejo. Disse, com a voz perturbada:
- Vossa excelência está a caçoar, senhor doutor, mas a mim retalhasse-me o coração!
93
- Homem, acudiu o doutor com bondade, estou a filosofar, não estou a caçoar... Mas enfim, que
queres tu que eu te faça?
Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, também, com mais pompa!
- Eu tenho a certeza que se vossa excelência lhe falasse...
O doutor sorriu:
- Eu posso receitar à rapariga este ou aquele xarope, mas não lhe posso impor este ou aquele
homem! Queres que lhe vá dizer: "A menina há-de preferir aqui o Sr. João Eduardo?" Queres que vá dizer
ao padre, um maganão que eu nunca vi: "O senhor faz favor de não seduzir esta menina?"
- Mas caluniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me como um homem de maus costumes, um
patife...
- Não, não te caluniaram. Sob o ponto de vista do padre e daquelas senhoras que jogam a noite o
quino na Rua da Misericórdia, tu és um patife: um cristão que nos periódicos vitupera abades, cônegos,
curas, personagens tão importantes para se comunicar com Deus e para se salvar a alma, é um patife. Não
te caluniaram, amigo!
- Mas, senhor doutor...
- Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obediências às instruções do senhor padre fulano
ou sicrano, comporta-se como uma boa católica. É o que te digo. Toda a vida do bom católico, os seus
pensamentos, as sua idéias, os seus sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas
noites, as sua relações de família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os seus
divertimentos - tudo isto é regulado pela autoridade eclesiástica (abade, bispo ou cônego), aprovado ou
censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo diretor da consciência. O bom católico, como a
tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura
pensa, quer, determina, sente por ela. O seu único trabalho neste mundo, que é ao mesmo tempo o seu
único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem a discutir; obedecer-lhe, dê por
onde der; se ela contraria as suas idéias, deve pensar que as suas idéias são falsas; se ela fere as suas
afeições, deve pensar que as suas afeições são culpadas. Dado isto, se o padre disse à pequena que não
devia nem casar, nem sequer falar contigo, a criatura prova, obedecendo-lhe, que é uma boa católica, uma
devota conseqüente, e que segue na vida, logicamente, a regra moral que escolheu. Aqui está, e desculpa
o sermão.
João Eduardo ouvia com respeito, com espanto estas frases, a que a face plácida, a bela barba
grisalha do doutor davam uma autoridade maior. Parecia-lhe agora quase impossível recuperar Amélia, se
ela pertencia assim tão absolutamente, alma e sentidos, ao padre que a confessava. Mas enfim, por que era
ele considerado um marido prejudicial?
- Eu compreenderia, disse ele, se fosse um homem de maus costumes, senhor doutor. Mas eu
porto-me bem. Eu não faço senão trabalhar. Eu não freqüento tabernas, nem troças. Eu não bebo, eu não
jogo. As minhas noites passo-as na Rua da Misericórdia, ou em casa a fazer serão para o cartório...
- Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a religião de nossos pais,
todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo,
verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não contam. Se tu fores um modelo
de bondade mas não fores à missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor
cura - és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra
de vida foi impecável, têm sido julgados verdadeiros canalhas, porque não foram batizados antes de terem
sido perfeitos. Hás-de ter ouvido falar de Sócrates, dum outro chamado Platão, de Catão, etc... Foram
sujeitos famosos pelas suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que
das virtudes desses homens estava cheio o Inferno... Isto prova que a moral católica é diferente da moral
natural e da moral social... Mas são coisas que tu compreendes mal... Queres tu um exemplo? Eu sou,
segundo a doutrina católica, um dos grandes desavergonhados que passeiam as ruas da cidade; e o meu
vizinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma
filhita de dez anos, é entre o clero um homem excelente, porque cumpre os seus deveres de devoto e toca
figle nas missas cantadas. Enfim, amigo, estas coisas são assim. E parece que são boas, porque há
milhares de pessoas respeitáveis que as consideram boas, o Estado mantém-nas, gasta até um dinheirão
para as manter, obriga-nos mesmo a respeitá-las, - e eu, que estou aqui a falar, pago todos os anos um
quartinho para que elas continuem a ser assim. Tu naturalmente pagas menos...
- Pago sete vinténs, senhor doutor.
- Mas enfim vais às festas, ouves música, sermão, desforras-te dos teus sete vinténs. Eu, o meu
quartinho perco-o; consolo-me apenas com a idéia de que vai ajudar a manter o esplendor da Igreja - da
Igreja que em vida me considera um bandido, e que para depois de morto me tem preparado um inferno
de primeira classe. Enfim, parece-me que temos cavaqueado bastante... Que queres mais?
94
João Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava o doutor, parecia-lhe, mais que nunca,
que se um homem de palavras tão sábias, de tantas idéias, se interessasse por ele, toda a intriga seria
facilmente desfeita e a sua felicidade, o seu lugar na Rua da Misericórdia recobrados para sempre.
- Então vossa excelência não pode fazer nada por mim? disse muito desconsolado.
- Eu posso talvez curar-te de outra pneumonia. Tens outra pneumonia a curar? Não? Então...
João Eduardo suspirou:
- Sou uma vítima, senhor doutor!
- Fazes mal. Não deve haver vítimas, quando não seja senão para impedir que haja tiranos - disse
o doutor, pondo o seu largo chapéu desabado.
- Porque no fim de tudo, exclamou ainda João Eduardo que se prendia ao doutor com uma
sofreguidão de afogado, no fim de tudo o que o patife do pároco quer, com todos os seus pretextos, é a
rapariga! Se ela fosse um camafeu, bem se importava o maroto que eu fosse um ímpio ou não! O que ele
quer é a rapariga!
O doutor encolheu os ombros.
- É natural, coitado - disse, já com a mão no fecho da porta. Que queres tu? Ele tem para as
mulheres, como homem, paixões e órgãos; como confessor, a importância dum Deus. É evidente que háde
utilizar essa importância para satisfazer essas paixões; e que há de cobrir essa satisfação natural com as
aparências e com os pretextos do serviço divino... É natural.
João Eduardo então, vendo-o abrir a porta, desvanecer-se a esperança que o trouxera ali, furioso,
vergastando o ar com o chapéu:
- Canalha de padres! Foi raça que sempre detestei! Queria-a ver varrida da face da Terra, senhor
doutor!
- Isso é outra tolice, disse o doutor, resignando-se a escutá-lo ainda, e parando à porta do quarto.
Ouve lá. Tu crês em Deus? No Deus do Céu, no Deus que lá está no alto do Céu, e que é lá de cima o
princípio de toda a justiça e de toda a verdade?
João Eduardo, surpreendido, disse:
- Eu creio, sim senhor.
- E no pecado original?
- Também...
- Na vida futura, na redenção, etc.?
- Fui educado nessas crenças...
- Então para que queres varrer os padres da face da Terra? Deves pelo contrário ainda achar que
são poucos. És um liberal racionalista nos limites da Carta, ao que vejo... Mas se crês no Deus do Céu,
que nos dirige lá de cima, e no pecado original, e na vida futura, precisas duma classe de sacerdotes que te
expliquem a doutrina e a moral revelada de Deus, que te ajudem a purificar da mácula original e te
preparem o teu lugar no Paraíso! Tu necessitas dos padres. E parece-me mesmo uma terrível falta de
lógica que os desacredites pela imprensa...
João Eduardo, atônito, balbuciou:
- Mas vossa excelência, senhor doutor... Desculpe-me vossa excelência, mas...
- Dize, homem. Eu quê?
- Vossa excelência não precisa dos padres neste mundo...
- Nem no outro. Eu não preciso dos padres no mundo, porque não preciso do Deus do Céu. Isto
quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro de mim, isto é, o princípio que dirige as minhas
ações e os meus juízos. Vulgo Consciência... Talvez não compreendas bem... O fato é que estou aqui a
expor doutrinas subversivas... E realmente são três horas...
E mostrou-lhe o cebolão.
À porta do pátio, João Eduardo disse-lhe ainda:
- Vossa excelência então desculpe, senhor doutor...
- Não há de quê... Manda a Rua da Misericórdia ao diabo!
João Eduardo interrompeu com calor:
- Isso é bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixão está a roer cá por dentro!...
- Ah! fez o doutor, é uma bela e grande coisa a paixão! O amor é uma das grandes forças da
civilização. Bem dirigida levanta um mundo e bastava para nos fazer a revolução moral... - E mudando de
tom: - Mas escuta. Olha que isso às vezes não é paixão, não está no coração... O coração é ordinariamente
um termo de que nos servimos, por decência, para designar outro órgão. É precisamente esse órgão o
único que está interessado, a maior parte das vezes, em questões de sentimento. E nesses casos o desgosto
não dura. Adeus, estimo que seja isso!
95
XIV
João Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado, todo cansado da noite
desesperada que passara, daquela manhã cheia de passos inúteis das conversas do doutor Godinho e do
doutor Gouveia.
- Acabou-se, pensava, não posso fazer mais nada! É agüentar.
Tinha a alma extenuada de tantos esforços de paixão, de esperança e de cólera. Desejaria ir
estirar-se ao comprido, num sítio isolado, longe de advogados, de mulheres e de padres, e dormir durante
meses. Mas como já passava das três horas, apressava-se para o cartório do Nunes. Teria talvez ainda de
ouvir um sermão por ter chegado tão tarde! Triste vida a sua!
Dobrava a esquina no Terreiro, quando ao pé da casa de pasto do Osório se encontrou com um
moço de quinzena clara, debruada de uma fita negra muito larga, e com um bigodinho tão preto que
parecia postiço sobre as suas feições extremamente pálidas.
- Olé! Que é feito, João Eduardo?
Era um Gustavo, tipógrafo da Voz do Distrito, que havia dois meses fora para Lisboa. Segundo
dizia o Agostinho, era "rapaz de cabeça e instruidote, mas de idéias do diabo". Escrevia às vezes artigos
de política estrangeira, onde introduzia frases poéticas e retumbantes, amaldiçoando Napoleão III, o czar
e os opressores do povo, chorando a escravidão da Polônia e a miséria do proletário. A simpatia entre ele
e João Eduardo proviera de conversas sobre religião, em que ambos exalavam o seu ódio ao clero e a sua
admiração por Jesus Cristo. A revolução de Espanha entusiasmara-o tanto que aspirara a pertencer à
Internacional; e o desejo de viver num centro operário, onde houvesse associações, discursos e
fraternidade, levara-o a Lisboa. Encontrara lá bom trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava a
mãe, velha e doente, e como era mais econômico viverem juntos, voltara a Leiria. O Distrito, além disso,
na perspectiva de eleições, prosperava a ponto de aumentar o salário aos três tipógrafos.
- De modo que lá estou outra vez com o raquítico... Vinha jantar, e convidou logo João Eduardo
a que lhe fizesse companhia. Não havia de acabar o mundo, que diabo, por ele faltar um dia ao cartório!
João Eduardo então lembrou-se que desde a véspera não tinha comido. Era talvez a debilidade
que o trouxera assim estonteado, tão pronto a desanimar... Decidiu-se logo - contente, depois das emoções
e das fadigas da manhã, de se estirar no banco da taberna, diante dum prato cheio, na intimidade com um
camarada de ódios iguais aos seus. Demais, os repelões que sofrera davam-lhe uma necessidade, uma
avidez de simpatia; e foi com calor que disse:
- Homem, valeu! Cais-me do céu! Este mundo é uma choldra. Se não fosse por alguma hora que
se passa em amizade, caramba, não valia a pena andar por cá! .
Este modo, tão novo no João Eduardo, no Pacatinho, espantou Gustavo.
- Por quê? As coisas não correm bem? Turras com a besta do Nunes, hem? perguntou-lhe.
- Não, um bocado de spleen.
- Isso de spleen é de inglês! Oh menino, havias de ver o Taborda no Amor londrino!... Deixa lá o
spleen. É deitar lastro para dentro e carregar no líquido!
Travou-lhe do braço, meteu-o pela porta da taberna.
- Viva o tio Osório! Saúde e fraternidade!
O dono da casa de pasto, o tio Osório, personagem obeso e contente da vida, com as mangas da
camisa arregaçadas até aos ombros, os braços nus muito brancos apoiados sobre o balcão, a face balofa e
finória, felicitou logo Gustavo de o ver de novo em Leiria. Achava-o mais magrito... Havia de ser das más
águas de Lisboa e do muito paucampeche nos vinhos... E que havia dele servir aos cavalheiros?
Gustavo, plantando-se diante do contador, de chapéu para nuca, apressou-se a soltar o gracejo,
que tanto o entusiasmara em Lisboa:
- Tio Osório, sirva-nos fígado de rei, com rim grelhado de padre! O tio Osório, pronto à réplica,
disse logo, dando um raspão de rodilha sobre o zinco do contador:
- Não temos cá disso, Sr. Gustavo. Isso é petisco da capital.
- Então estão vocês muito atrasados! Em Lisboa era todos os dias o meu almoço... Bem, acabouse,
dê-nos duas iscas com batatas... E bem saltadinho, isso!
- Hão-de ser servidos como amigos.
Acomodaram-se à "mesa dos envergonhados", entre dois tabiques de pinho fechados por uma
cortina de chita. O tio Osório, que apreciava Gustavo, "moço instruído e de pouca troça", veio ele mesmo
trazer a garrafa do tinto e as azeitonas; e limpando os copos ao avental enxovalhado:
- Então que há de novo pela capital, Sr. Gustavo? Como vai por lá aquilo?
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O tipógrafo deu imediatamente seriedade ao rosto: passou a mão pelos cabelos, e deixou cair algumas
frases enigmáticas:
Tremidito... Muito pouca-vergonha em política... A classe operária começa a mexer-se... Falta de
união, por ora... Está-se à espera de ver como as coisas correm em Espanha... Há-de havê-las bonitas!
Tudo depende de Espanha...
Mas o tio Osório, que juntara alguns vinténs e comprara uma fazenda, tinha horror a tumultos...
O que se queria no país era paz... Sobretudo o que lhe desagradava era contar-se com espanhóis... De
Espanha, deviam os cavalheiros sabê-lo, "nem bom vento nem bom casamento"!
- Os povos são todos irmãos! exclamou Gustavo. Quando se tratar de atirar abaixo Bourbons e
imperadores, camarilhas e fidalguia, não há portugueses nem espanhóis, todos são irmãos! Tudo é
fraternidade, tio Osório!
- Pois então é beber-lhe à saúde, e beber-lhe rijo, que isso é que faz andar o negócio, disse o tio
Osório tranqüilamente, rolando a sua obesidade para fora do cubículo.
- Elefante! rosnou o tipógrafo, chocado com aquela indiferença pela Fraternidade dos Povos.
Que se podia esperar, de resto dum proprietário e dum agente de eleições?
Trauteou a Marselhesa, enchendo os copos do alto, e quis saber o que tinha feito o amigo João
Eduardo... Já se não ia pelo Distrito? O raquítico dissera-lhe que não havia despegá-lo da Rua da
Misericórdia.
- E quando é esse casamento, por fim? João Eduardo corou, disse vagamente:
- Nada decidido... Tem havido dificuldades. E acrescentou com um sorriso desconsolado: -
Temos tidos arrufos.
- Pieguices! soltou o tipógrafo, com um movimento de ombros, que exprimia um desdém de
revolucionário pelas frivolidades do sentimento.
- Pieguices... Não sei se são pieguices, disse João Eduardo. O que sei é que dão desgostos...
Arrasam um homem, Gustavo...
Calou-se, mordendo o beiço, para recalcar a emoção que o revolvia.
Mas o tipógrafo achava todas essas histórias de mulheres ridículas. O tempo não estava para
amores... O homem do povo, o operário que se agarrava a uma saia para não despegar era um inútil... era
um vendido! Em que se devia pensar não era em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar o
trabalho das garras do capital, acabar com os monopólios, trabalhar para a república! Não se queria
lamúria, queria-se ação, queria- se a força! - E carregava furiosamente no r da palavra - a forrrça!
- agitando os seus pulsos magríssimos de tísico sobre o grande prato de iscas que o moço trouxera.
João Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo em que o tipógrafo, doido pela Júlia padeira,
aparecia sempre com os olhos vermelhos como carvões, e atroava a tipografia com suspiros medonhos. A
cada ai os camaradas, troçando, davam uma tossezinha de garganta. Um dia mesmo, Gustavo e o
Medeiros tinham-se esmurrado no pátio...
- Olha quem fala! disse por fim. És como os outros... Estás aí a palrar, e quando te chega és
como os outros.
O tipógrafo então - que, desde que em Lisboa freqüentara um clube democrático de Alcântara e
ajudara a redigir um manifesto aos irmãos cigarreiros em greve, se considerava exclusivamente votado ao
serviço do Proletariado e da República - escandalizou-se. Ele? Ele como os outros? Perder o seu tempo
com saias?...
- Está vossa senhoria muito enganado! - e recolheu-se a um silêncio chocado, partindo com furor
a sua isca.
João Eduardo receou tê-lo ofendido.
- Ó Gustavo, sejamos razoáveis! um homem pode ter os seus princípios, trabalhar pela sua causa,
mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma família.
- Nunca! exclamou o tipógrafo exaltado. O homem que casa está perdido! Daí por diante é
ganhar a papa, não se mexer do buraco, não ter um momento para os amigos, passear de noite os
marmanjos quando eles berram com os dentes. É um inútil! É um vendido! As mulheres não entendem
nada de política. Têm medo que o homem se meta em barulhos, tenha turras com a polícia. Está um
patriota atado de pés e mãos! E quando há um segredo a guardar? O homem casado não pode guardar um
segredo?... E ai está às vezes uma revolução comprometida... Sebo para a família! Outra de azeitonas, tio
Osório!
A pança do tio Osório apareceu entre os tabiques.
- Então que estão os senhores aqui a questionar, que parece que entraram os da Maia no concelho
de distrito?
Gustavo atirou-se para o fundo do banco, de pema estirada, e interpelando-o de alto:
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- O tio Osório é que vai dizer. Diga lá o amigo. Vossemecê era homem de mudar as suas
opiniões políticas para fazer a vontade à sua patroa?
O tio Osório acariciou o cachaço e disse com um tom finório:
- Eu lhe respondo, Sr. Gustavo. Mulheres são mais espertas que nós... E em política, como em
negócio, quem for com o que elas dizem vai pelo seguro... Eu sempre consulto a minha, e se quer que lhe
diga, já vai em vinte anos e não me tenho achado mal.
Gustavo pulou no banco:
- Você é um vendido! gritou.
O tio Osório, acostumado àquela expressão querida do tipógrafo, não se escandalizou: gracejou
até com o seu amor às boas réplicas:
- Vendido não direi, mas vendedor pro que quiser... Pois é o que lhe digo, Sr. Gustavo. O senhor
casará, e depois mas contará.
- O que hei-de contar, é, quando houver uma revolução, entrar-lhe por aqui de espingarda ao
ombro, e metê-lo em conselho de guerra, seu capitalista!
- Pois enquanto isso não chega, é beber-lhe e beber-lhe rijo, disse o tio Osório retirando-se com
pachorra.
- Hipopótamo - resmungou o tipógrafo.
E, como adorava discussões, recomeçou logo - sustentando que o homem, embeiçado por uma
saia, não tem firmeza nas suas convicções políticas...
João Eduardo sorria tristemente, numa negação muda, pensando consigo que, apesar da sua
paixão por Amélia, não se tinha confessado nos dois últimos anos!
- Tem provas! berrava Gustavo.
Citou um livre-pensador das suas relações que, para manter a paz doméstica, se sujeitava a jejuar
às sextas-feiras, e palmilhar aos domingos o caminho da capela de ripanço debaixo do braço...
- E é o que te há-de suceder!... Tu tens idéias menos más a respeito da religião, mas ainda te heide
ver de opa vermelha e círio na procissão do Senhor dos Passos... Filosofia e ateísmo não custam nada
quando se conversa no bilhar entre rapazes... Mas praticá-los em família, quando se tem uma mulher
bonita e devota, é o diabo! É o que te há-de suceder, se é que te não vai sucedendo já hás-de atirar as tuas
convicções liberais para o caixão do cisco, e fazer barretadas ao confessor da casa!
João Eduardo fazia-se escarlate de indignação. Mesmo nos tempos da sua felicidade, quando
tinha Amélia certa, aquela acusação (que o tipógrafo fazia só para questionar, para palrar) tê-lo-ia
escandalizado. Mas hoje! Justamente quando ele perdera Amélia por ter dito de alto, num jornal, o seu
horror a beatos! Hoje que se achava ali, com o coração partido, roubado de toda a alegria, exatamente
pelas suas opiniões liberais!...
- Isso dito a mim tem graça! disse com uma amargura sombria.
O tipógrafo galhofou:
- Homem, não me constou ainda que fosses um mártir da liberdade!
- Por quem és não apoquentes, Gustavo, disse o escrevente muito chocado. Tu não sabes o que se
tem passado. Se soubesses não me dizias isso!
Contou-lhe então a história do Comunicado - calando todavia que o escrevera num fogo de
ciúmes, e apresentando-o como uma pura afirmação de princípios... E que notasse esta circunstância, ia
então casar com uma rapariga devota, numa casa que era mais freqüentada por padres que a sacristia da
Sé...
- E assinaste? perguntou Gustavo, espantado da revelação.
- O doutor Godinho não quis, disse o escrevente corando um pouco.
- E deste-lhes uma desanda, hem?
- A todos, de rachar!
O tipógrafo, entusiasmado, berrou por "outra de tinto"!
Encheu os copos com transporte, bebeu uma grande saúde a João Eduardo.
- Caramba, quero ver isso! Quero mandá-lo à rapaziada em Lisboa!... E que efeito fez?
- Um escândalo, mestre.
- E os padrecas?
- Em brasa!
- Mas como souberam que eras tu?
João Eduardo encolheu os ombros. O Agostinho não o dissera. Desconfiava da mulher do
Godinho, que o sabia pelo marido, e que o fora meter no bico do padre Silvério, seu confessor, o padre
Silvério da Rua das Teresas...
- Um gordo, que parece hidrópico?
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- Sim.
- Que besta! rugiu o tipógrafo com rancor.
Olhava agora João Eduardo com respeito, aquele João Eduardo que se lhe revelara
inesperadamente um paladino do livre pensamento.
- Bebe, amigo, bebe! dizia-lhe, enchendo-lhe o copo com afeto, como se aquele esforço heróico
de liberalismo necessitasse ainda, depois de tantos dias, reconfortos excepcionais.
E que se tinha passado? Que tinha dito a gente da Rua da Misericórdia?
Tanto interesse comoveu João Eduardo: e dum fôlego fez a sua confidência. Mostrou-lhe mesmo
a carta de Amélia que ela decerto, coitada, fora levada a escrever num terror do Inferno, sob a pressão dos
padres furiosos...
- E aqui tens a vítima que eu sou, Gustavo!
Era-o com efeito; e o tipógrafo considerava-o com uma admiração crescente. Já não era o
Pacatinho, o escrevente do Nunes, o chichisbéu da Rua da Misericórdia - era uma vítima das
perseguições religiosas. Era a primeira que o tipógrafo via; e, apesar de não lhe aparecer na atitude
tradicional das estampas de propaganda, amarrado a um poste de fogueira ou fugindo com a família
espavorida a soldados que galopam da sombra do último plano, achava-o interessante. Invejava-lhe
secretamente aquela honra social. Que chique que lhe daria a ele entre a rapaziada de Alcântara! Famosa
pechincha, ser uma vítima da reação, sem perder o conforto das iscas do tio Osório e os salários inteiros
ao sábado! - Mas sobretudo o procedimento dos padres enfurecia-o! Para se vingarem dum liberal,
intrigarem-no, tirarem-lhe a noiva! - Oh, que canalha!... E esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e
à Família, trovejou de alto contra o clero, que é quem sempre destrói essa instituição social, perfeita, de
origem divina!
- Isso precisa uma vingança medonha, menino! É necessário arrasá-los! Uma vingança? João
Eduardo desejava-a, vorazmente! Mas qual?
- Qual? Contar tudo no Distrito, num artigo tremendo!
João Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho: dali por diante o Distrito estava fechado
aos senhores livres-pensadores!
- Cavalgadura! rugiu o tipógrafo.
Mas tinha uma idéia, caramba! Publicar um folheto! Um folheto de vinte páginas, o que se
chama no Brasil uma mofina, mas num estilo floreado (ele se encarregava disso), caindo sobre o clero
com um desabamento de verdades mortais!
João Eduardo entusiasmou-se. E diante daquela simpatia ativa de Gustavo, vendo nele um irmão,
soltou as últimas confidências, as mais dolorosas. O que havia no fundo da intriga era a paixão do padre
Amaro pela pequena, e era para se apoderar dela que o escorraçava a ele... O inimigo, o malvado, o
carrasco - era o pároco!
O tipógrafo apertou as mãos na cabeça: semelhante caso (que todavia era para ele trivial, nas
locais que compunha) sucedido a um amigo seu que estava ali bebendo com ele, a um democrata, parecialhe
monstruoso, alguma coisa semelhante aos furores de Tibério na velhice, violando, em banhos
perfumados, as carnes delicadas de mancebos patrícios.
Não queria acreditar. João Eduardo acumulou as provas. E então Gustavo, que tinha molhado
vastamente de tinto as iscas de fígado, ergueu os punhos fechados, e com a face intumescida, dente
rilhado, berrou em rouco:
- Abaixo a religião!
Do outro lado do tabique uma voz trocista grasnou em réplica:
- Viva Pio Nono!
Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremetido. Mas João Eduardo sossegou-o. E o
tipógrafo, sentando-se tranqüilamente, rechupou o fundo do copo.
Então, com os cotovelos sobre a mesa, a garrafa entre eles, conversaram baixo, de rosto a rosto,
sobre o plano do folheto. A coisa era fácil: escrevê-lo-iam ambos. João Eduardo queria-o em forma de
romance, de enredo negro, dando ao personagem do pároco os vícios e as perversidades de Calígula e de
Heliogábalo. O tipógrafo porém queria um livro filosófico, de estilo e de princípios, que demolisse de
uma vez para sempre o Ultramontanismo! Ele mesmo se encarregava de imprimir a obra aos
serões, grátis, já se sabe. - Mas apareceu-lhes então, bruscamente, uma dificuldade.
- O papel? Como se há-de arranjar o papel?
Era uma despesa de nove ou dez mil-réis; nenhum os tinha - nem um amigo que, por dedicação aos
princípios, lhos adiantasse.
- Pede-os ao Nunes por conta do teu ordenado! lembrou vivamente o tipógrafo.
João Eduardo coçou desconsoladamente a cabeça. Estava justamente pensando no Nunes e na
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sua indignação de devoto, de membro da junta de paróquia, amigo do chantre, apenas lesse o panfleto! E
se soubesse que era o seu escrevente que o compusera, com as penas do cartório, no papel almaço do
cartório... Via-o já roxo de cólera, alçando sobre o bico dos sapatos brancos a sua pessoa gordalhufa, e
gritando na voz de grilo - "Fora daqui, pedreiro-livre, fora daqui!"
- Ficava eu bem arranjado, disse João Eduardo muito sério, nem mulher, nem pão!
Isto fez lembrar também a Gustavo a cólera provável do doutor Godinho, dono da tipografia. O
doutor Godinho, que depois da reconciliação com a gente da Rua da Misericórdia, retomara publicamente
a sua considerável posição de pilar da Igreja e esteio da Fé...
- É o diabo, pode-nos sair caro, disse ele.
- É impossível! disse o escrevente.
Então praguejaram de raiva. Perder uma ocasião daquelas para pôr a calva à mostra ao clero!
O plano do folheto, como uma coluna tombada que parece maior, afigurava-se-lhes, agora que
estava derrubado, duma altura, duma importância colossal. Não era jà a demolição local dum pároco
celerado, era a ruína, ao longe e ao largo, de todo o clero, dos jesuítas, do poder temporal, de outras coisas
funestas... - Maldição! se não fosse o Nunes, se não fosse o Godinho, se não fossem os nove mil-réis do
papel!
Aquele perpétuo obstáculo do pobre, falta de dinheiro e dependência do patrão, que até para um
folheto era estorvo, revoltou-os contra a sociedade.
- Positivamente é necessário uma revolução, afirmou o tipógrafo. É necessário arrasar tudo,
tudo! - E o seu largo gesto sobre a mesa indicava, num formidável nivelamento social, uma demolição de
igrejas, palácios, bancos, quartéis, e prédios de Godinhos ! - Outra do tinto, tio Osório!...
Mas o tio Osório não aparecia. Gustavo martelou a mesa a toda a força com o cabo da faca. E enfim,
furioso, saiu fora ao contador "para arrebentar a pança àquele vendido que fazia assim esperar um
cidadão".
Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando com o barão de Via-Clara, que, em vésperas de
eleições, vinha pelas casas de pasto apertar a mão aos compadres. E ali na taberna, parecia magnífico o
barão, com a sua luneta de ouro, os botins de verniz sobre o solo térreo, tossicando ao cheiro acre do
azeite fervido e das emanações das borras de vinho.
Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao cubículo.
- Está com o barão, disse numa surdina respeitosa.
Mas vendo João Eduardo aniquilado, com a cabeça entre os punhos, o tipógrafo exortou-o a não
esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de casar com uma beata...
- Não me pode vingar daquele maroto! interrompeu João Eduardo com um repelão ao prato.
- Não te aflijas, prometeu o tipógrafo com solenidade, que a vingança não vem longe!
Fez-lhe então, baixo, a confidência "das coisas que se preparavam em Lisboa". Tinham-lhe
afiançado que havia um clube republicano a que até pertenciam figurões - e que era para ele uma garantia
superior de triunfo. Além disso, a rapaziada do trabalho mexia-se... Ele mesmo - e murmurava quase
contra a face de João Eduardo, estirado sobre a mesa - fora falado para pertencer a uma seção da
Internacional, que devia organizar um espanhol de Madri; nunca vira o espanhol, que se disfarçava
por causa da policia; e a coisa falhara porque o Comitê tinha falta de fundos... Mas era certo haver um
homem, que possuía um talho, que prometera cem mil-réis... O exército, além disso, estava na coisa: tinha
visto numa reunião um sujeito barrigudo que lhe tinham dito que era major, e que tinha cara de major... -
De modo que, com todos estes elementos, a opinião dele Gustavo, era que dentro de meses, governo, rei,
fidalgos, capitalistas, bispos, todos esses monstros iam pelos ares!
- E então somos nós os reizinhos, menino! Godinho, Nunes toda a cambada ferramo-la na
enxovia de S. Francisco. Eu a quem me atiro é ao Godinho... Padres, derreamo-los à pancada! E o povo
respira, enfim!
- Mas daqui até lá! suspirou João Eduardo, que pensava com amargura que, quando a revolução
viesse já seria tarde para recuperar a Ameliazinha...
O tio Osório então apareceu com a garrafa.
- Ora até que enfim, seu fidalgo! disse o tipógrafo a trasbordar de sarcasmo.
- Não se pertence à classe, mas é-se tratado por ela com consideração, replicou logo o tio Osório,
que a satisfação fazia parecer mais pançudo.
- Por causa de meia dúzia de votos!
- Dezoito na freguesia, e esperanças de dezenove. E que se há-de servir mais aos cavalheiros?
Nada mais?... Pois é pena. Então é beber-lhe, é beber-lhe!
E correu a cortina, deixando os dois amigos em frente da garrafa cheia, aspirarem a uma
Revolução que lhes permitisse - a um reaver a menina Amélia, a outro espancar o patrão Godinho.
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Eram quase cinco horas quando saíram enfim do cubículo. O tio Osório, que se interessava por
eles por serem rapazes de instrução, notou logo, examinando-os do canto do balcão onde saboreava o seu
Popular, que vinham tocaditos. João Eduardo, sobretudo, de chapéu carregado e beiço trombudo: "pessoa
de mau vinho", pensou o tio Osório, que o conhecia pouco. Mas o Sr. Gustavo, como sempre, depois dos
três litros, resplandecia de júbilo. Grande rapaz! Era ele que pagava a conta; e gingando para o balcão,
batendo de alto com as suas duas placas:
- Encafua mais essas na burra, Osório pipa!
- O que é pena é que sejam só duas, Sr. Gustavo.
- Ah bandido! imaginas que o suor do povo, o dinheiro do trabalho é para encher a pança dos
Filistinos? Mas não as perdes! Que no dia do ajuste de contas quem há-de ter a honra de te furar esse
bandulho há-de ser cá o Bibi... E o Bibi sou eu... Eu é que sou o Bibi! Não é verdade, João, quem é o
Bibi?
João Eduardo não escutava; muito carrancudo, olhava com desconfiança um borracho, que na
mesa do fundo, diante do seu litro vazio, com o queixo na palma da mão e o cachimbo nos dentes,
embasbacara, maravilhado, para os dois amigos.
O tipógrafo puxou-o para o balcão:
- Diz aqui ao tio Osório quem é o Bibi! Quem é o Bibi?... Olhe para isto, tio Osório! Rapaz de
talento, e dos bons! Veja-me isto! Com duas penadas dá cabo do Ultramontanismo! É cá dos meus!
Também entre nós é para a vida e para a morte. Deixa lá a conta, Osório barrigudo, ouve o que te digo!
Este é dos bons... E se ele aqui voltar e quiser dois litros a crédito, é dar-lhos... Cá o Bibi responde por
tudo.
- Temos pois, começou o tio Osório, iscas a dois, salada a dois...
Mas o borracho arrancara-se com esforço ao seu banco: de cachimbo espetado, arrotando forte,
veio plantar-se diante do tipógrafo, e, tremeleando nas pernas, estendeu-lhe a mão aberta.
Gustavo considerou-o de alto, com nojo:
- Que quer você? Aposto que foi você que berrou há pouco: Viva Pio Nono! Seu vendido... Tire
para lá a pata!
O borracho, repelido, grunhiu; e, embicando contra João Eduardo, ofereceu-lhe a mão
espalmada.
- Arrede para lá, seu animal! disse-lhe o escrevente desabrido.
- Tudo amizade... Tudo amizade... resmungava o borracho.
E não se arredava, com os cinco dedos muito espetados, despedindo um hálito fétido.
João Eduardo, furioso, atirou-o de repelão contra o contador.
- Brincadeiras de mãos, não! exclamou logo severamente o tio Osório. Brutalidades, não!
- Que se não metesse comigo, rosnou o escrevente. E a você faço- lhe o mesmo...
- Quem não tem decência vai para a rua, disse muito grave o tio Osório.
- Quem vai para a rua, quem vai para a rua? rugiu o escrevente, empinando-se, de punho
fechado. Repita lá isso de ir para a rua! Com quem está você a falar?
O tio Osório não replicava, apoiado sobre as mãos ao balcão, patenteando os seus enormes
braços que lhe faziam o estabelecimento respeitado.
Mas Gustavo, com autoridade, pôs-se entre os dois, e declarou que era necessário ser-se
cavalheiro! Questões e más palavras, não! Podia-se chalacear e troçar os amigos, mas como cavalheiros!
E ali só havia cavalheiros.
Arrastou para um canto o escrevente, que resmungava muito ressentido.
- Oh, João! oh, João! dizia-lhe com grandes gestos, isso não é dum homem ilustrado!
Que diabo! Era necessário ter-se boas maneiras! Com repentes, com vinho desordeiro, não havia
pândega, nem sociedade, nem fraternidade!
Voltou ao tio Osório, falando-lhe sobre o ombro, excitado:
- Eu respondo por ele, Osório! É um cavalheiro! Mas tem tido desgostos, e não está acostumado
a um litro de mais. É o que é! Mas é dos bons... Você desculpe, tio Osório. Que eu respondo por ele...
Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a mão ao tio Osório. O taberneiro declarou com ênfase que
não quisera insultar o cavalheiro. Os shake-hands então sucederam-se com veemência. Para consolidar
a reconciliação, o tipógrafo pagou três canas brancas. João Eduardo, por brio, ofereceu também um giro
de conhaque. E com os copos em fila sobre o balcão, trocavam boas palavras, tratavam-se de cavalheiros,
- enquanto o borracho, esquecido ao seu canto, derreado para cima da mesa, a cabeça sobre os punhos e o
nariz sobre o litro, se babava silenciosamente, com o cachimbo cravado nos dentes.
- Disto é que eu gosto, dizia o tipógrafo a quem a aguardente aumentara a ternura. Harmonia! Cá
o meu fraco é a harmonia! Harmonia entre a rapaziada e entre a humanidade... O que eu queria era ver
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uma grande mesa, e toda a humanidade sentada num banquete, e fogo preso, e chalaça, e decidirem-se as
questões sociais! E o dia não vem longe em que você o há-de ver, tio Osório!... Em Lisboa as coisas vãose
preparando para isso. E o tio Osório é que há-de fornecer o vinho... Hem, que negociozinho! Diga que
não sou amigo!
- Obrigado, Sr. Gustavo, obrigado...
- Isto aqui entre nós, hem? Que somos todos cavalheiros! E cá este - abraçava João Eduardo - é
como se fosse irmão! Entre nós é pra vida e pra morte! E é mandar a tristeza ao diabo, rapazão! Toca a
escrever o folheto... O Godinho, e o Nunes...
- O Nunes racho-o! soltou com força o escrevente, que, depois das saúdes com cana, parecia
mais sombrio.
Dois soldados entraram então na taberna - e Gustavo julgou que eram horas de ir para a
tipografia. Senão, não se haviam de separar todo o dia, não se haviam de separar toda a vida!... Mas o
trabalho é dever, o trabalho é virtude!
Saíram, enfim, depois de mais shake-hands com o tio Osório. À porta, Gustavo jurou ainda ao
escrevente uma lealdade de irmão; obrigou-o a aceitar a sua bolsa de tabaco; e desapareceu à esquina da
rua, de chapéu para a nuca, trauteando o Hino do Trabalho.
···
João Eduardo, só, abalou logo para a Rua da Misericórdia. Ao chegar à porta da S. Joaneira,
apagou com cuidado o cigarro na sola do sapato, e deu um puxão tremendo ao cordão da campainha.
A Ruça veio, correndo.
- A Ameliazinha? Quero-lhe falar!
- As senhoras saíram, disse a Ruça espantada do modo do Sr. Joãozinho.
- Mente, sua bêbeda! berrou o escrevente.
A rapariga, aterrada, fechou a porta de estalo.
João Eduardo foi-se encostar à parede defronte, e ficou ali, de braços cruzados, observando a
casa: as janelas estavam fechadas, as cortinas de cassa corridas; dois lenços de rapé do cônego secavam
embaixo na varanda.
Aproximou-se de novo e bateu devagarinho a aldrava. Depois repicou com furor a campainha.
Ninguém apareceu: então, indignado, partiu para os lados da Sé.
Ao desembocar no largo, diante da fachada da igreja, parou, procurando em redor com o
sobrolho carregado: mas o largo parecia deserto; à porta da farmácia do Carlos um rapazito, sentado no
degrau, guardava pela arreata um burro carregado de erva; aqui e além, galinhas iam picando o chão
vorazmente; o portão da igreja estava fechando; e apenas se ouvia o ruído de marteladas numa casa ao pé
em que havia obras.
E João Eduardo ia seguir para os lados da alameda - quando apareceram no terraço da igreja, da
banda da sacristia, o padre Silvério e o padre Amaro, conversando, devagar.
Batia então um quarto na torre, e o padre Silvério parou a acertar o seu cebolão. Depois os dois
padres observaram maliciosamente a janela da administração de vidraças abertas, onde se via, no escuro,
o vulto do senhor administrador de binóculo cravado para a casa do Teles alfaiate. E desceram enfim a
escadaria da Sé, rindo de ombro a ombro, divertidos com aquela paixão que escandalizava Leiria.
Foi então que o pároco viu João Eduardo que estacara no meio do largo. Parou para voltar à Sé
decerto, evitar o encontro; mas viu o portão fechado, e ia seguir de olhos baixos, ao lado do bom Silvério
que tirava tranqüilamente a sua caixa de rapé, - quando João Eduardo, arremessando-se, sem uma palavra,
atirou a toda a força um murro no ombro de Amaro.
O pároco, aturdido, ergueu frouxamente o guarda-chuva.
- Acudam! berrou logo o padre Silvério, recuando de braços no ar. Acudam!
Da porta da administração um homem correu, agarrou furiosamente o escrevente pela gola:
- Está preso! rugia. Está preso!
- Acudam, acudam! berrava Silvério a distância.
Janelas no largo abriam-se à pressa. A Amparo da botica, em saia branca, apareceu à varanda,
espavorida; o Carlos precipitara-se do laboratório em chinelas; e o senhor administrador, debruçado na
sacada, bracejava, com o binóculo na mão.
Enfim o escrivão da administração, o Domingos, compareceu, muito grave, de mangas de
lustrina enfiadas; e com o cabo de polícia levou logo para a administração o escrevente, que não resistia,
todo pálido...
O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor pároco para a botica; fez preparar, com estrépito,
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flor de laranja e éter; gritou pela esposa, para arranjar uma cama... Queria examinar o ombro de sua
senhoria: haveria intumescência?
- Obrigado, não é nada, dizia o pároco muito branco. Não é nada. Foi um raspão. Basta-me uma
gota de água...
Mas a Amparo achava melhor um cálice de vinho do Porto; e correu acima a buscar-lho,
tropeçando nos pequenos que se lhe despenduravam das saias, dando ais, explicando pela escada à criada
que tinham querido matar o senhor pároco!
À porta da botica juntara-se gente, que embasbacava para dentro; um dos carpinteiros que
trabalhavam nas obras afirmava que "fora uma facada"; e uma velha por trás debatia-se, de pescoço
esticado, para ver o sangue. Enfim, a pedido do pároco, que receava escândalo, o Carlos
veio majestosamente declarar que não queria motim à porta! O senhor pároco estava melhor. Fora apenas
um soco, um raspão de mão... Ele respondia por sua senhoria.
E como o burro ao lado começara a ornear, o farmacêutico voltando- se indignado para o
rapazito que o segurava pela arreata:
- E tu não tens vergonha, no meio dum desgosto destes, um desgosto para toda a cidade, de ficar
aqui com esse animal, que não faz senão zurrar? Para longe, insolente, para longe!
Aconselhou então os dois sacerdotes a que subissem para a sala, para evitar a "curiosidade da
populaça". E a boa Amparo apareceu logo com dois cálices do Porto, um para o senhor pároco, outro para
o Sr. padre Silvério que se deixara cair a um canto do canapé apavorado ainda, extenuado de emoção.
- Tenho cinqüenta e cinco anos, disse ele depois de ter chupado a última gota de Porto, e é a
primeira vez que me vejo num barulho!
O padre Amaro, mais sossegado agora, afetando bravura, chasqueou o padre Silvério:
- Você tomou o caso muito ao trágico, colega... E lá ser a primeira, vamos lá... Todos sabem que
o colega esteve pegado com o Natário...
- Ah, sim, exclamou o Silvério, mas isso era entre sacerdotes, amigo!
Mas a Amparo, ainda muito trêmula, enchendo outro cálice ao senhor pároco, quis saber "os
particulares, todos os particulares..."
- Não há particulares, minha senhora, eu vinha aqui com o colega... Vínhamos cavaqueando... O
homem chegou-se a mim, e, como eu estava desprevenido, deu-me um raspão no ombro.
- Mas por quê, por quê? exclamou a boa senhora, apertando as mãos, num assombro.
O Carlos então deu a sua opinião. Ainda havia dias, ele dissera, diante da Amparozinho e de D.
Josefa, a irmã do respeitável cônego Dias, que estas idéias de materialismo e ateísmo estavam levando a
mocidade aos mais perniciosos excessos... E mal sabia ele então que estava profetizando!
- Vejam vossas senhorias este rapaz! Começa por esquecer todos os deveres de cristão (assim nolo
afirmou D. Josefa), associa-se com bandidos, achincalha os dogmas nos botequins... Depois (sigam
vossas senhorias a progressão), não contente com estes extravios, publica nos periódicos ataques abjetos
contra a religião... E enfim, possuído duma vertigem de ateísmo, atira-se, diante mesmo da catedral, sobre
um sacerdote exemplar (não é por vossa senhoria estar presente) e tenta assassiná-lo! Ora, pergunto eu, o
que há no fundo de tudo isto? Ódio, puro ódio à religião de nossos pais!
- Infelizmente assim é, suspirou o padre Silvério.
Mas a Amparo, indiferente às causas filosóficas do delito, ardia na curiosidade de saber o que se
passaria na administração, o que diria o escrevente, se o teriam posto a ferros... O Carlos prontificou-se
logo a ir averiguar.
De resto, disse ele, era o seu dever, como homem de ciência, esclarecer a justiça sobre as
conseqüências que podia ter trazido um murro, à força de braço, na região delicada da clavícula... (ainda
que, louvado Deus, não havia fratura, nem inchaço), e sobretudo queria revelar à autoridade, para que ela
tomasse as suas providências, que aquela tentativa de espancamento não provinha de vingança pessoal.
Que podia ter feito o senhor pároco da Sé ao escrevente do Nunes? Provinha duma vasta conspiração de
ateus e republicanos contra o sacerdócio de Cristo!
- Apoiado, apoiado! disseram os dois sacerdotes gravemente.
- E é o que eu vou provar cabalmente ao senhor administrador do concelho!
Na sua precipitação zelosa de conservador indignado, ia mesmo de chinelas e quinzena de
laboratório: mas Amparo alcançou-os no corredor:
- Oh filho, a sobrecasaca, põe a sobrecasaca ao menos, que o administrador é de cerimônias!
Ela mesmo lha ajudou a enfiar, enquanto o Carlos, com a imaginação trabalhando viva (aquela
desgraçada imaginação que, como ele dizia, até às vezes lhe dava dores de cabeça), ia preparando o seu
depoimento, que faria ruído na cidade. Falaria de pé. Na saleta da administração seria um aparato judicial;
à sua mesa, o senhor administrador, grave como a personificação da Ordem; em redor os amanuenses,
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ativos sobre o seu papel selado; e o réu, defronte, na atitude tradicional dos criminosos políticos, os
braços cruzados sobre o peito, a fronte alta desafiando a morte. Ele, Carlos, então, entraria e diria:
"Senhor administrador, aqui venho espontaneamente pôr-me ao serviço da vindita social!"
- Hei-de-lhes mostrar, com uma lógica de ferro, que é tudo resultado duma conspiração do
racionalismo. Podes estar certa, Amparozinho, é uma conspiração do racionalismo! disse, puxando, com
um gemido de esforço, as presilhas dos botins de cano.
- E repara se ele fala da pequena, da S. Joaneira...
- Hei-de tomar notas. Mas não se trata da S. Joaneira. Isto é um processo político!
Atravessou o largo majestosamente, certo que os vizinhos, pelas portas, murmuravam: Lá vai o
Carlos depor... Ia depor, sim, mas não sobre o murro no ombro de sua senhoria. Que importava o murro?
O grave era o que estava por trás do murro - uma conspiração contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a
Propriedade! É o que ele provaria de alto ao senhor administrador. Este murro, ilustríssimo senhor, é o
primeiro excesso duma grande revolução social!
E empurrando o batente de baeta que dava acesso para a administração do concelho de Leiria,
ficou um momento com a mão no ferrolho, enchendo o vão da porta da pompa da sua pessoa. Não, não
havia o aparato judicial que ele concebera. O réu lá estava, sim, o pobre João Eduardo, mas sentado à
beira do banco, com as orelhas em brasa, olhando estupidamente o soalho. Artur Couceiro, embaraçado
com a presença daquele íntimo dos serões da S. Joaneira, ali no assento dos presos, para o não
olhar fixara o nariz sobre o imenso copiador de ofícios, onde desdobrara o Popular da véspera. O
amanuense Pires, de sobrancelhas muito erguidas e muito sérias, embebia-se na ponta da pena de pato que
aparava sobre a unha. O escrivão Domingos, esse sim, vibrava de atividade! O seu lápis rascunhava com
furor; o processo estava-se decerto apressando; era tempo de trazer a sua idéia... E o Carlos então
adiantando-se:
- Meus senhores! O senhor administrador?
Justamente, a voz de sua excelência chamou de dentro do seu gabinete:
- Ó Sr. Domingos?
O escrivão perfilou-se, puxando os óculos para a testa.
- Senhor administrador!
- O senhor tem fósforos?
O Domingos procurou ansiosamente pela algibeira, na gaveta, entre os papéis...
- Algum dos senhores tem fósforos?
Houve um rebuscar de mãos sobre a mesa... Não, não havia fósforos.
- Ó Sr. Carlos, o senhor tem fósforos?
- Não tenho, Sr. Domingos. Sinto.
O senhor administrador apareceu então, ajeitando as suas lunetas de tartaruga:
- Ninguém tem fósforos, hem? É extraordinário que não haja aqui nunca fósforos! Uma
repartição destas sem um fósforo... Que fazem os senhores aos fósforos? Mande buscar por uma vez meia
dúzia de caixas!
Os empregados olhavam-se consternados dessa falta flagrante no material do serviço
administrativo. E o Carlos, apoderando-se logo da presença e da atenção de sua excelência:
- Senhor administrador, eu aqui venho... Aqui venho solicito e espontâneo, por assim dizer...
- Diga-me uma coisa, Sr. Carlos, interrompeu a autoridade. O pároco e o outro ainda estão lá na
botica?
- O senhor pároco e o Sr. padre Silvério ficaram com minha esposa a repousar da comoção que...
- Tem a bondade de lhes dizer que são cá precisos...
- Eu estou à disposição da lei.
- Que venham quanto antes... São cinco horas e meia, queremo-nos ir embora! Vejam que
maçada tem sido esta aqui, todo o dia! A repartição fecha-se às três!
E sua excelência, rodando, sobre os tacões, foi debruçar-se à sacada do seu gabinete - àquela
sacada de onde ele diariamente, das onze às três, retorcendo o bigode louro e entesando o plastrão azul,
depravava a mulher do Teles.
O Carlos abria já o batente verde, quanto um pst do Domingos o deteve.
- Ó amigo Carlos .- e o sorrisinho do escrivão tinha uma suplicação tocante - desculpe, hem?
Mas... Traz-me de lá uma caixita de fósforos?
Neste momento à porta aparecia o padre Amaro; e por trás a massa enorme do Silvério.
- Eu desejava falar ao senhor administrador em particular, disse Amaro.
Todos os empregados se ergueram; João Eduardo também, branco como a cal do muro. O
pároco, com as sua passadas sutis de eclesiástico, atravessou a repartição, seguido do bom Silvério que ao
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passar diante do escrevente descreveu de esguelha um semicírculo cauteloso, com terror ao réu; o senhor
administrador acudira a receber suas senhorias; e a porta do gabinete fechou-se discretamente.
- Temos composição, rosnou o experiente Domingos, piscando o olho aos colegas.
O Carlos sentara-se descontente. Viera ali para esclarecer a autoridade sobre os perigos sociais
que ameaçavam Leiria, o Distrito e a Sociedade, para ter o seu papel naquele processo, que, segundo ele,
era um processo político - e ali estava calado, esquecido, no mesmo banco ao lado do réu! Nem lhe
tinham oferecido uma cadeira! Seria realmente intolerável que as coisas se arranjassem entre o pároco e o
administrador sem o consultarem a ele! Ele, o único que percebera naquele murro dado no ombro do
padre - não o punho do escrevente, mas a mão do Racionalismo! Aquele desdém pelas suas luzes parecialhe
um erro funesto da administração do Estado. Positivamente o administrador não tinha a capacidade
necessária para salvar Leiria dos perigos da revolução! Bem se dizia na Arcada - era uma bambocha!
A porta do gabinete entreabriu-se, e as lunetas do administrador reluziram.
- Ó Sr. Domingos, faz favor, vem-nos falar? disse sua excelência.
O escrivão apressou-se com importância; e a porta cerrou-se de novo, confidencialmente. Ah!
aquela porta, fechada diante dele, deixando-o de fora, indignava o Carlos. Ali ficava, com o Pires, com o
Artur, entre as inteligências subalternas, ele que prometera à Amparozinho falar de alto ao administrador!
E quem era ouvido, e quem era chamado? O Domingos, um animal notório, que começava satisfação com
c cedilhado! Que se podia de resto esperar duma autoridade que passava as manhãs de binóculo a
desonrar uma família? Pobre Teles, seu vizinho, seu amigo!... Não, realmente devia falar ao Teles!
Mas a sua indignação cresceu, quando viu o Artur Couceiro, um empregado da repartição, na
ausência do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha, vir familiarmente junto do réu, dizer-lhe com
melancolia:
- Ah, João, que rapaziada, que rapaziada!... Mas a coisa arranja- se, verás!
João tinha encolhido tristemente os ombros. Havia meia hora que ali estava, sentado à beira
daquele banco, sem se mexer, sem despregar os olhos do soalho, sentindo-se interiormente tão vazio de
idéias, como se lhe tivessem tirado os miolos. Todo o vinho, que na taberna do Osório e no Largo da Sé
lhe acendia na alma fogachos de cólera, lhe retesava os pulsos num desejo de desordem, parecia
subitamente eliminado do seu organismo. Sentia-se agora tão inofensivo como quando no cartório
aparava cautelosamente a sua pena de pato. Um grande cansaço entorpecia-o; e ali esperava, sobre o
banco, numa inércia de todo o seu ser, pensando estupidamente que ia viver para uma enxovia em S.
Francisco, dormir numa palhoça, comer da Misericórdia... Não tornaria a passear na alameda, não
veria mais Amélia... A casita em que vivia seria alugada a outro... Quem tomaria conta do seu canário?
Pobre animalzinho, ia morrer de fome, decerto... A não ser que a Eugênia, a vizinha, o recolhesse...
O Domingos de repente saiu do gabinete de sua excelência, e fechando vivamente a porta sobre
si, em triunfo:
- Que lhes dizia eu? Composição! Arranjou-se tudo!
E para João Eduardo:
- Seu felizão! Parabéns! parabéns!
O Carlos pensou que aquele era o maior escândalo administrativo desde o tempo dos Cabrais! E
ia retirar-se enojado (como no quadro clássico o Estóico que se afasta duma orgia Patrícia) quando o
senhor administrador abriu a porta do seu gabinete. Todos se ergueram.
Sua excelência deu dois passos na repartição, e revestido de gravidade, destilando as palavras, com as
lunetas cravadas no réu:
- O Sr, padre Amaro, que é um sacerdote todo caridade e bondade, veio-me expor... Enfim, veiome
suplicar que não desse mais andamento a este negócio... Sua senhoria com razão não quer ver o seu
nome arrastado nos tribunais. Além disso, como sua senhoria disse muito bem, a religião, de que ele é...
de que ele é, posso dizê-lo, a honra e o modelo, impõe- lhe o perdão da ofensa... Sua excelência
reconhece que o ataque foi brutal, mas frustrado... Além disso parece que o senhor estava bêbedo...
Todos os olhos se fixaram em João Eduardo, que se fez escarlate. Aquilo pareceu-lhe nesse
momento pior que a prisão.
- Enfim, continuou o administrador, por altas considerações que eu pesei devidamente, tomo a
responsabilidade de o soltar. Veja agora como se porta. A autoridade não o perde de olho... Bem, pode ir
com Deus!
E sua excelência recolheu-se ao gabinete. João Eduardo ficou imóvel, como parvo.
- Posso ir, hem? balbuciou.
- Para a China, para onde quiser! Liberus, libera, liberum! exclamou o Domingos que,
interiormente detestando padres, jubilava com aquele final.
João Eduardo olhou um momento em redor os empregados, o carrancudo Carlos; duas lágrimas bailavam-
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lhe nas pálpebras; de repente agarrou o chapéu e abalou.
- Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos, esfregando vivamente as mãos.
Imediatamente a papelada foi arrumada, aqui e além, à pressa. É que era tarde! O Pires recolhia
as suas mangas de lustrina e a sua almofadinha de vento. O Artur enrolou os seus papéis de música. E no
vão da janela, amuado, esperando ainda, o Carlos olhava sombriamente o largo.
Enfim os dois padres saíram acompanhados até à porta pelo senhor administrador, que,
terminados os deveres públicos, reaparecia homem de sociedade. - Então por que não tinha o amigo
Silvério vindo a casa da baronesa de Via-Clara? Houvera um voltarete furibundo. O Peixoto levara dois
codilhos. Tinha dito blasfêmias medonhas!... Criado de suas excelências. Estimava bem que tudo se
tivesse harmonizado. Cuidado com o degrau... Às ordens de suas excelências...
Ao voltar porém ao seu gabinete dignou-se parar diante da mesa do Domingos, e retomando
alguma solenidade:
- A coisa passou-se bem. É um bocado irregular, mas sensata! Bem basta já os ataques que há
contra o clero nos jornais... A coisa podia fazer barulho. O rapaz era capaz de dizer que tinham sido
ciúmes do padre, que queria desinquietar a rapariga, etc. É mais prudente abafar a coisa. Quanto mais
que, segundo o pároco me provou, toda a influência que ele tem exercido. na Rua da Misericórdia ou
onde diabo é, tem tido por fim livrar a rapariga de casar com aquele amigo, que, como se vê, é um bêbedo
e uma fera!
O Carlos roía-se. Todas aquelas explicações eram dadas ao Domingos! A ele, nada! Ali ficava,
esquecido no vão da janela!
Mas não! Sua excelência, de dentro do seu gabinete, chamou-o misteriosamente com o dedo.
Enfim! Precipitou-se, radiante, subitamente reconciliado com a autoridade.
- Eu estava para passar pela botica - disse-lhe o administrador baixo e sem transição, dando-lhe
um papel dobrado - para que me mandasse isto a casa, hoje. É um receita do doutor Gouveia... Mas já que
o amigo aqui está...
- Eu tinha vindo para me pôr à disposição da vindita...
- Isso está acabado! interrompeu vivamente sua excelência. Não se esqueça, mande-me isso antes
das seis. É para tomar ainda esta noite. Adeus. Não se esqueça!
- Não faltarei, disse secamente o Carlos.
Ao entrar na botica, a sua cólera flamejava. Ou ele não se chamava Carlos, ou havia de mandar
uma correspondência tremenda ao Popular!... Mas a Amparo, que lhe espreitara a volta da varanda,
correu, atirando-lhe as perguntas:
- Então? Que se passou? O rapaz foi para a rua? Que disse ele? Como foi?
O Carlos fixava-a, com as pupilas chamejantes.
- Não foi culpa minha, mas triunfou o materialismo1 Eles o pagarão!
- Mas tu que disseste?
Então, vendo os olhos da Amparo e os do praticante abertos para devorar a citação do seu
depoimento - o Carlos, tendo de ressalvar a dignidade de esposo e a superioridade de patrão, disse
laconicamente:
- Dei a minha opinião, com firmeza!
- E ele que disse, o administrador?
Foi então que o Carlos, recordando-se, leu a receita que amarrotara na mão. A indignação
emudeceu-o - vendo que era aquele todo o resultado da sua grande entrevista com a autoridade!
- Que é? perguntou sofregamente a Amparo.
O que era? e no seu furor, desdenhando o segredo profissional e o bom renome da autoridade, o
Carlos exclamou:
- É um frasco de xarope de Gibert para o senhor administrador! Aí tem a receita, Sr. Augusto.
Amparo, que, com alguma prática de farmácia, conhecia os benefícios do mercúrio, fez-se tão
escarlate como as fitas flamejantes que lhe enfeitavam a cuia.
···
Toda essa tarde se falou com excitação pela cidade da "tentativa de assassinato de que estivera
para ser vitima o senhor pároco". Algumas pessoas censuravam o administrador por não ter procedido: os
cavalheiros da oposição sobretudo, que viram na debilidade daquele funcionário uma prova incontestável
de que o governo ia, com os seus desperdícios e as suas corrupções, levando o país a um abismo!
Mas o padre Amaro, esse, era admirado como um santo. Que piedade! que mansidão! O senhor chantre
mandou-o chamar à noitinha, recebeu-o paternalmente com um "viva o meu cordeiro pascal!". E depois
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de escutar a história do insulto, a generosa intervenção...
- Filho, exclamou, isso é aliar a mocidade de Telêmaco à prudência de Mentor! Padre Amaro,
você era digno de ser sacerdote de Minerva na cidade de Salento!
Quando Amaro entrou à noite em casa da S. Joaneira - foi como a aparição dum santo escapo às
feras do Circo ou à plebe de Diocleciano! Amélia, sem disfarçar a sua exaltação, apertou-lhe ambas as
mãos, muito tempo, toda trêmula, com os olhos úmidos. Deram-lhe, como nos grandes dias, a poltrona
verde do cônego. A Sra. D. Maria da Assunção quis mesmo que se lhe pusesse uma almofada para ele
apoiar o ombro dorido. Depois, teve de contar miudamente toda a cena, desde o momento em que,
conversando com o colega Silvério (que se portara muito bem), avistara o escrevente no meio do largo, de
bengalão alçado e ar de mata-mouros...
Aqueles detalhes indignavam as senhoras. O escrevente aparecia-lhes pior que Longuinhos e que
Pilatos. Que malvado! O senhor pároco devia-o ter calcado aos pés! Ah! era dum santo, ter perdoado!
- Fiz o que me inspirou o coração, disse ele baixando os olhos. Lembrei-me das palavras de
Nosso Senhor Jesus Cristo: ele manda oferecer a face esquerda depois de ter sido esbofeteado na face
direita...
O cônego, a isto, escarrou grosso e observou:
- Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofetão à face direita... Enfim, são ordens de Nosso Senhor
Jesus Cristo, ofereço a face esquerda. São ordens de cima!... Mas depois de ter cumprido esse dever de
sacerdotes, oh, senhoras, desanco o patife!
- E doeu-lhe muito, senhor pároco? perguntou do canto uma vozinha expirante e desconhecida.
Acontecimento extraordinário! Era a Sra. D. Ana Gansoso que falara depois de dez longos anos
de taciturnidade sonolenta! Aquele torpor que nada sacudira, nem festas, nem lutos, tinha enfim, sob um
impulso de simpatia pelo senhor pároco, uma vibração humana! - Todas as senhoras lhe sorriram,
agradecidas: e Amaro, lisonjeado, respondeu com bondade:
- Quase nada, Sra. D. Ana, quase nada, minha senhora... Que ele deu de rijo! Mas eu sou de boa
carnadura.
- Ai, que monstro! exclamou D. Josefa Dias, furiosa à idéia do punho do escrevente
descarregado sobre aquele ombro santo. Que monstro! Eu queria-o ver com uma grilheta a trabalhar na
estrada ! Que eu é que o conhecia! A mim nunca ele me enganou... Sempre lhe achei cara de assassino!
- Estava embriagado, homens com vinho... arriscou timidamente a S. Joaneira.
Foi um clamor. Ai, que o não desculpasse! Parecia até sacrilégio! Era uma fera, era uma fera!
E a exultação foi grande quando Artur Couceiro, aparecendo, deu logo da porta a novidade, a última: o
Nunes mandara chamar o João Eduardo e dissera-lhe (palavras textuais): "Eu, bandidos e malfeitores
não os quero no meu cartório. Rua!"
A S. Joaneira então comoveu-se:
- Pobre rapaz, fica sem ter que comer... ,
- Que beba! que beba! gritou a Sra. D. Maria da Assunção.
Todos riram. Só Amélia, curvada sobre a sua costura, se fizera muito pálida, aterrada àquela
idéia que João Eduardo teria talvez fome...
- Pois olhem, não acho caso para rir! disse a S. Joaneira. É até coisa que me vai tirar o sono..,
Pensar que o rapaz há-de querer um bocado de pão e não o há-de ter... Credo! Não, isso não! E o Sr. padre
Amaro desculpe...
Mas Amaro também não desejava que o rapaz caísse em miséria! Não era homem de rancor, ele!
E se o escrevente viesse à sua porta, com necessidade, duas ou três placas (não era rico, não podia mais),
mas três ou quatro placas dava-lhas... Dava-lhas de coração.
Tanta santidade fanatizou as velhas. Que anjo! Olhavam-no, babosas, com as mãos vagamente
postas. A sua presença, como a dum S. Vicente de Paula, exalando caridade, dava à sala uma suavidade
de capela: e a Sra. D, Maria da Assunção suspirou de gozo devoto.
Mas Natário apareceu, radiante. Deu grandes apertos de mãos em redor, rompeu em triunfo:
- Então já sabem? O patife, o assassino, escorraçado de toda a parte como um cão! O Nunes
expulsou-o do cartório. O doutor Godinho disse-me agora que no governo civil não punha ele os pés.
Enterrado, demolido! É um alívio para a gente de bem!
- E ao Sr. padre Natário se deve! exclamou D. Josefa Dias.
Todos o reconheciam. Fora ele, com a sua habilidade, a sua lábia, que descobrira a perfídia de
João Eduardo, salvara a Ameliazinha, Leiria, a Sociedade.
- E em tudo o que pretender, o maroto, há-de encontrar-me pela frente. Enquanto ele estiver em
Leiria não o largo! Que lhes disse eu, minha senhoras?.,, "Eu é que o esmago!" Pois aí o têm esmagado!
A sua face biliosa resplandecia. Estirou-se na poltrona, regaladamente, no repouso merecido de
107
uma vitória difíci1. E voltando-se para Amélia;
- E agora, o que lá vai, lá vai! Livrou-se de uma fera, é o que lhe posso dizer!
Então os louvores - que já lhe tinham repetido prolixamente desde que ela rompera com a fera -
recomeçaram, mais vivos:
- Foi a coisa de mais virtude que tens feito em toda a tua, vida!
- É a graça de Deus que te tocou!
- Estás em graça, filha!
- Enfim é Santa Amélia, disse o cônego erguendo-se, enfastiado daquelas glorificações. Pois
parece-me que temos falado bastante do patife... Mande agora a senhora vir o chá, hem?
Amélia permanecia calada, cosendo à pressa; erguia às vezes rapidamente para Amaro um olhar
desassossegado; pensava em João Eduardo, nas ameaças de Natário; e imaginava o escrevente com as
faces encovadas de fome, foragido, dormindo pelas portas dos casais... E enquanto as senhoras se
acomodavam, palrando, à mesa do chá, ela pôde dizer baixo a Amaro:
- Não posso sossegar com a idéia que o rapaz sofra necessidades... Eu bem sei que é um
malvado, mas... É como um espinho cá por dentro. Tira-me toda a alegria.
O padre Amaro disse-lhe então, com muita bondade, mostrando-se superior à injúria, num alto
espirito de caridade cristã:
- Minha rica filha, são tolices... O homem não morre de fome. Ninguém morre de fome em
Portugal. É novo, tem saúde, não é tolo, há-de- se arranjar... Não pense nisso... Aquilo é palavreado do
padre Natário... O rapaz naturalmente sai de Leiria, não tomamos a ouvir falar dele... E em toda a parte
há-de ganhar a vida... Eu por mim perdoei-lhe, e Deus há-de tomar isso em conta...
Estas palavras tão generosas, ditas baixo, com um olhar amante, tranqüilizaram-na inteiramente.
A clemência, a caridade do senhor pároco pareceram-lhe melhores que tudo o que ouvira ou lera de
santos e de monges piedosos.
Depois do chá, ao quino, ficou junto dele. Uma alegria plena e suave penetrava-a deliciosamente.
Tudo o que até aí a importunara e a assustara, João Eduardo, o casamento, os deveres, desaparecera
enfim da sua vida: o rapaz iria para longe, empregar-se - e o senhor pároco ali estava, todo dela, todo
apaixonado! Por vezes, por baixo da mesa, os seus joelhos tocavam-se, a tremer; num momento em que
todos faziam um alarido indignado contra Artur Couceiro que pela terceira vez quinara e brandia o cartão
triunfante, foram as mãos que se encontraram, se acariciaram; um pequeno suspiro simultâneo, perdido na
gralhada das velhas, ergueu o peito de ambos; e até ao fim da noite foram marcando os seus cartões,
muitos calados, com as faces acesas, sob a pressão brutal do mesmo desejo.
Enquanto as senhoras se agasalhavam, Amélia aproximou-se do piano para correr uma escala, e
Amaro pôde murmurar-lhe ao ouvido:
- Oh filhinha, que te quero tanto! E não podermos estar sós...
Ela ia responder - quando a voz de Natário, que se embrulhava no seu capote ao pé do aparador,
exclamou, muito severa:
- Então as senhoras deixam andar por aqui semelhante livro?
Todos se voltaram, na surpresa que dava aquela indignação, a olhar o largo volume encadernado
que Natário indicava com a ponta do guarda- chuva, como um objeto abominável. D. Maria da Assunção
aproximou-se logo de olho reluzente, imaginando que seria alguma dessas novelas, tão famosas, em que
se passam coisas imorais. E Amélia chegando-se também, disse, admirada de tal reprovação: .
- Mas é o Panorama... É um volume do Panorama...
- Que é o Panorama vejo eu, disse Natário, com secura. Mas também veio isto. - Abriu o volume
na primeira página branca, e leu alto: - "Pertence-me este volume a mim, João Eduardo Barbosa, e serveme
de recreio nos meus ócios". Não compreende, hem? Pois é muito simples... Parece incrível que as
senhoras não saibam que esse homem, desde que pôs as mãos num sacerdote, está ipso facto
excomungado, e excomunga- dos todos os objetos que lhe pertencem!
Todas as senhoras, instintivamente, afastaram-se do aparador onde jazia aberto o Panorama
fatal, arrebanhando-se, num arrepiamento de medo, àquela idéia da Excomunhão que se lhes representava
com um desabamento de catástrofes, um aguaceiro de raios despedidos das mãos do Deus Vingador: e ali
ficaram mudas, num semicírculo apavorado, em torno de Natário, que, de capotão pelos ombros e braços
cruzados, gozava o efeito da sua revelação.
Então a S. Joaneira, no seu assombro, arriscou-se a perguntar:
- O Sr. padre Natário está a falar sério?
Natário indignou-se:
- Se estou a falar sério!? Essa é forte! Pois eu havia de gracejar sobre um caso de excomunhão,
minha senhora? Pergunte aí ao senhor cônego se eu estou a gracejar!
108
Todos os olhos se voltaram para o cônego, essa inesgotável fonte de saber eclesiástico.
Ele então, tomando logo o ar pedagógico que lhe voltava dos seus antigos hábitos do seminário
sempre que se tratava de doutrina, declarou que o colega Natário tinha razão. Quem espanca um
sacerdote, sabendo que é um sacerdote, está ipso facto excomungado. É doutrina assente. É o que se
chama a excomunhão latente; não necessita a declaração do pontífice ou do bispo, nem o cerimonial, para
ser válida, e para que todos os fiéis considerem o ofensor como excomungado. Devem-no tratar
portanto como tal... Evitá-lo a ele, e ao que lhe pertence... E este caso de pôr mãos sacrílegas num
sacerdote era tão especial, continuava o cônego num tom profundo, que a bula do papa Martinho V,
limitando os casos de excomunhão tácita, conserva-a todavia para o que maltrata um sacerdote... - Citou
ainda mais bulas, as constituições de Inocêncio IX e de Alexandre VII, a Constituição Apostólica, outras
legislações temerosas; rosnou latins, aterrou as senhoras.
- Esta é a doutrina, concluiu dizendo; mas a mim parece-me melhor não se fazer disso
espalhafato...
D. Josefa Dias acudiu logo:
- Mas nós é que não podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por cima das mesas coisas
excomungadas.
- É destruir! exclamou D. Maria da Assunção. É queimar, é queimar!
D. Joaquina Gansoso arrastara Amélia para o vão da janela, perguntando-lhe se tinha outros objetos
pertencentes ao homem. Amélia, atarantada, confessou que tinhas algures, não sabia onde, um lenço, uma
luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha.
- É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada.
A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo. D. Josefa Dias,
D. Maria da Assunção falavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, numa delícia
inquisitorial de exterminação devota. Amélia e a Gansoso, no quarto, rebuscavam pelas gavetas, por entre
a roupa branca, as fitas e as calcinhas, à caça dos "objetos excomungados". E a S. Joaneira assistia,
atônita e assustada, àquele alarido de auto-de-fé que atravessava bruscamente a sua pacata, refugiada ao
pé do cônego, que depois de ter rosnado algumas palavras sobre "a Inquisição em casas particulares", se
enterrara comodamente na poltrona.
- É para lhes fazer sentir que se não perde impunemente o respeito à batina, dizia Natário baixo a
Amaro.
O pároco assentiu, com um gesto mudo de cabeça, contente daquelas cóleras beatas que eram
como a afirmação ruidosa do amor que lhe tinham as senhoras.
Mas D. Josefa impacientava-se. Agarrara já o Panorama com as pontas do xale, para evitar o
contágio, e gritava para dentro, para o quarto, onde continuava pelos gavetões uma rebusca furiosa:
- Então apareceu?
- Cá está, cá está!
Era a Gansoso que entrava triunfante com a cigarreira, a velha luva e o lenço de algodão.
E as senhoras, com alarido, arremeteram para a cozinha. A mesmas S. Joaneira as seguiu, como
boa dona de casa, para fiscalizar a fogueira.
- Os três padres então, sós, olharam-se - e riram.
- As mulheres têm o diabo no corpo, disse o cônego filosoficamente.
- Não senhor, padre-mestre, não senhor, acudiu logo Natário fazendo-se sério. Eu rio, porque a
coisa, assim vista, parece patusca. Mas o sentimento é bom. Para a verdadeira devoção ao sacerdócio,
horror à impiedade... enfim o sentimento é excelente.
- O sentimento é excelente, confirmou Amaro, também sério.
O cônego ergueu-se:
- E é que se pilhassem o homem eram capazes de o queimar... Não lho digo a brincar, que a
mana tem fígados para isso... É um Torquemada de saias...
- Está na verdade, está na verdade, afirmou Natário.
- Eu não resisto a ir ver a execução! exclamou o cônego. Eu quero ver com os meus olhos!
E os três padres então foram até à porta da cozinha. As senhoras lá estavam, em pé diante da lareira,
batidas da luz violenta da fogueira que fazia destacar estranhamente as mantas de agasalho de que já se
tinham coberto. A Ruça, de joelhos, soprava esfalfada. Tinham cortado com o facão a encadernação do
Panorama; e as folhas retorcidas e negras, com um faiscar de fagulhas, voavam pela chaminé nas línguas
de fogo claro. Só a luva de pelica não se consumia. Debalde com as tenazes a punham no vivo da chama:
tisnava, reduzida a um caroço engorolado; mas não ardia. E z sua resistência aterrava as senhoras.
- É que é da mão direita com que cometeu o desacato! dizia furiosa D. Maria da Assunção.
- Bufa-lhe, rapariga, bufa-lhe, aconselhava da porta o cônego muito divertido.
109
- O mano faz favor de não troçar com coisas sérias! gritou D. Josefa.
- Oh, mana! A senhora quer saber melhor que um sacerdote como é que se queima um ímpio? A
pretensão não está má! É bufar-lhe, é bufar-lhe!
Então, confiadas na ciência do senhor cônego, a Gansoso e D. Maria da Assunção, acocoradas,
bufaram também. As outras olhavam, num sorriso mudo, o olho brilhante e cruel, no gozo daquela
exterminação grata a Nosso Senhor. O fogo estalava, pulando com uma força galharda, na glória da sua
antiga função de purificador dos pecados. - E por fim sobre as achas em brasa, nada restou do Panorama,
do lenço e da luva do ímpio.
A essa hora João Eduardo, o ímpio, no seu quarto, sentado aos pés da cama, soluçava, com a face
banhada em lágrimas, pensando em Amélia, nos bons serões da Rua da Misericórdia, na cidade para onde
iria, na roupa que empenharia e perguntando em vão a si mesmo por que o tratavam assim, ele que era tão
trabalhador, que não queria mal a ninguém, e que a adorava tanto, a ela.
XV
No domingo seguinte havia missa cantada na Sé, e a S. Joaneira e Amélia atravessaram a Praça
para ir buscar D. Maria da Assunção, que em dias de mercado e de "populacho" nunca saia só, receosa
que lhe roubassem as jóias ou lhe insultassem a castidade.
Nessa manhã, com efeito, a afluência das freguesias enchia a Praça: os homens em grupo,
atravancando a rua, muito sérios, muito barbeados, de jaqueta ao ombro; as mulheres aos pares, com uma
fortuna de grilhões e de corações de ouro sobre peitos pejados; nas lojas, os caixeiros azafamavam-se por
trás dos balcões alastrados de lençaria e de chitas; nas tabernas apinhadas gralhava-se alto; pelo mercado,
entre os sacos de farinha, os montões de louça, os cestos de broa, ia um regatear sem fim; havia multidão
ao pé das tendas onde reluzem os espelhinhos redondos e trasbordam os molhos de rosários; velhas
faziam pregão por trás dos seus tabuleiros de cavacas; e os pobres, afreguesados à cidade, choramigavam
Padre-Nossos pelas esquinas.
Já senhoras passavam para a missa, todas em sedas, de rostinho sisudo; e a Arcada estava cheia
de cavalheiros, tesos nos seus fatos de casimira nova, fumando caro, gozando o domingo.
Amélia foi muito olhada: o filho do recebedor, um atrevido, disse mesmo alto dum grupo: Ai,
que me leva o coração! E as duas senhoras, apressando-se, dobravam para a Rua do Correio, quando lhes
apareceu o Libaninho de luvas pretas e cravo ao peito. Não as tinha visto desde "o desacato do Largo da
Sé", e rompeu logo em exclamações. Ai, filhas, que desgosto aquele! O malvado do escrevente! Ele tinha
tido tanto que fazer, que só nessa manhã é que pudera ir ao senhor pároco dar-lhe os sentimentos; o
santinho recebera-o muito bem, estava-se a vestir; ele quis ver-lhe o braço e felizmente, louvores a Deus,
nem uma pisadura... E se elas vissem, que carnadura tão delicada, que pele tão branca... Uma pelinha de
arcanjo !
- Mas querem vocês saber, filhas? Encontrei-o numa grande aflição!
As duas senhoras assustaram-se. Por quê, Libaninho?
A criada, a Vicência, que havia dias se queixava, tinha ido nessa madrugada para o hospital com
um febrão...
- E ali está o pobre santo sem criada, sem nada! Vejam vocês! Para hoje bem, que vai jantar com
o nosso cônego (também lá estive, ai, que santo!), mas amanhã, mas depois? Que ele já tem em casa a
irmã da Vicência, a Dionísia... Mas, oh, filhas, a Dionísia! Foi o que eu lhe disse: a Dionísia pode ser uma
santa, mas que reputação!... É que não há pior em Leiria... Uma perdida que não põe os pés na igreja...
Tenho a certeza que o senhor chantre até havia de reprovar!
As duas senhoras concordaram logo que a Dionísia (mulher que não cumpria os preceitos, que
representara em teatros de curiosos) não convinha ao senhor pároco...
- Olha, S. Joaneira, disse Libaninho, sabes o que lhe convinha? Eu là lho disse, lá lhe fiz a
proposta. É ferrar-se outra vez em sua casa. Que é onde está bem, com gente que o acarinha, que lhe trata
da roupa, que lhe sabe os gostos, e onde tudo é virtude! Ele não disse que não, nem que sim. Mas olha
que se lhe podia ler na cara que está a morrer por isso... Tu é que lhe devias falar S. Joaneirinha!
Amélia fizera-se tão escarlate como a sua gravata de seda da Índia. E a S. Joaneira disse
ambiguamente:
- Falar-lhe, não... Eu nessas coisas sou muito delicada... Bem compreendes...
- Era como teres um santo de portas adentro, filha! disse com calor o Libaninho. Lembra-te
disso! E era um gosto para todos... Tenho a certeza que até Nosso Senhor se havia de alegrar... E agora
110
adeus, pequenas, que vou de fugida. Não vos demoreis, que está a missinha a cair.
As duas senhoras continuaram caladas até casa de D. Maria da Assunção. Nenhuma queria
arriscar primeiro uma palavra sobre aquela possibilidade tão inesperada, tão grave, do senhor pároco
voltar para a Rua da Misericórdia! Foi só quando pararam que a S. Joaneira disse, ao puxar a campainha:
- Ai, o senhor pároco realmente não pode ter a Dionísia de portas adentro..,
- Credo, até causa horror!
Foi também a expressão da Sra. D. Maria da Assunção quando lhe contaram, em cima, a doença
da Vicência e a instalação da Dionísia: causava horror!
- Que eu não a conheço, disse a excelente senhora. E tenho até vontade de a conhecer. Que me
dizem que é dos pés à cabeça uma crosta de pecado!
A S. Joaneira então falou da "proposta do Libaninho". D. Maria da Assunção declarou logo com
ardor que era uma inspiração de Nosso Senhor. Que nunca o senhor pároco devia ter saído da Rua da
Misericórdia! Até parece que mal ele se fora embora, Deus retirara a sua graça da casa... Não houvera
senão desgostos - o Comunicado, a dor de estômago do cônego, a morte da entrevadinha, aquele
desgraçado casamento (que estivera por um triz, que horror!), o escândalo do Largo da Sé... A casa tinha
parecido enguiçada!... E era até pecado deixar viver o santinho naquele desarranjo, com a suja da
Vicência, que nem lhe sabia dar uma passagem nas meias!
- Em parte nenhuma pode estar melhor que em tua casa... Tem tudo o que necessita, de portas
adentro... E para ti é uma honra, é estar em graça. Olha, filha, se eu não fosse só, sempre o digo, quem o
hospedava era eu! Que aqui é que ele estava bem... Que salinha para ele, hem?
Riam-se-lhe os olhos, contemplando em redor as suas preciosidades.
A sala com efeito era toda ela uma imensa armazenagem de santaria e de bric-à-brac devoto;
sobre as duas cômodas de pau-preto com fechaduras de cobre apinhavam-se, sobre redomas, em peanhas,
as Nossas Senhoras vestidas de seda azul, os Meninos Jesus frisados com o ventrezinho gordo e a mão
abençoadora, os Santos Antônios no seu burel, os S. Sebastiões bem frechados, os S. Josés barbudos.
Havia santos exóticos, que eram o seu orgulho, que lhe fabricavam em Alcobaça - S. Pascoal Bailão,
S. Didàcio, S. Crisolo, S. Gorislano... Depois eram os bentinhos, os rosários de metal e de caroços de
azeitonas, contas de cores, rendas amarelas de antigas alvas, corações de vidro escarlate, almofadinhas
com J. M, entrelaçados a miçanga, ramos bentos, palmas de mártires, cartuchinhos de incenso. As paredes
desapareciam forradas de estampas de Virgens de todas as devoções, - equilibradas sobre o orbe,
enrodilhadas aos pés da cruz, traspassadas de espadas. Corações de onde gotejava sangue, corações de
onde saia uma fogueira, corações de onde dardejavam raios; orações encaixilhadas para as festas
particularmente amadas - o Casamento de Nossa Senhora, a Invenção da Santa Cruz, os Estigmas de S.
Francisco, sobretudo o Parto da Santa Virgem, a mais devota, que vem pelas quatro têmporas. Sobre
as mesas lamparinas acesas, para serem colocadas sem demora aos santos especiais, quando a boa senhora
tivesse a sua ciática, ou que o catarro se assanhasse, ou lhe viessem as cãibras. Ela mesma, só ela,
arrumava, espanejava, lustrava toda aquela santa população celeste, aquele arsenal beato, que era apenas
suficiente para a salvação da sua alma e o alívio dos seus achaques. O seu grande cuidado era a colocação
dos santos; alterava-a constantemente, porque às vezes, por exemplo, sentia que Santo Eleutério não
gostava de estar ao pé de S. Justino, e ia então pendurá-lo a distância, numa companhia mais simpática ao
santo. E distinguia-os (segundo os preceitos do ritual que o confessor lhe explicava), dando-lhes uma
devoção graduada, e não tendo por S. José de segunda classe o respeito que sentia por S. José de primeira
classe. Aquela riqueza era a inveja das amigas, a edificação dos curiosos, e fazia sempre dizer ao
Libaninho quando a vinha visitar, abrangendo a sala num olhar langoroso: - Ai, filha, é o reininho dos
Céus!
- Não é verdade, continuava a excelente senhora radiante, que ele aqui é que estava bem, o
santinho do pároco? É como ter o Céu debaixo da mão!
As duas senhoras concordaram. Ela podia ter a sua casa arranjada com devoção, ela que era
rica...
- Não o nego, tenho aqui empregadinhos alguns centos de mil-réis. Sem contar o que está no
relicário...
Ah, o famoso relicário de sândalo forrado de cetim! Tinha lá uma lascazinha da verdadeira Cruz,
um bocado quebrado do espinho da Coroa, um farrapinho do cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se
com azedume, entre as devotas, que coisas tão preciosas, de origem divina, deviam estar no sacrário da
Sé. D. Maria da Assunção temendo que o senhor chantre soubesse daquele tesouro seráfico, só o mostrava
às íntimas, misteriosamente. E o santo sacerdote, Que lho obtivera, fizera-a jurar sobre o Evangelho de
não revelar a procedência "para evitar falatórios".
A S. Joaneira, como sempre, admirou sobretudo o farrapinho do cueiro.
111
- Que relíquia, que relíquia! murmurava.
E D. Maria da Assunção muito baixo:
- Não há melhor. Trinta mil-réis me custou... Mas dava sessenta, mas dava cem! mas dava tudo!
- E babando-se toda, diante do trapinho precioso: - O cueirinho! dizia Quase a chorar. Meu rico Menino, o
seu cueirinho...
Deu-lhe um beijo muito repenicado, e foi fechar o relicário no gavetão.
Mas o meio-dia ia bater - e as três senhoras apressaram-se para a Sé, para pilhar lugar no altarmor.
Já no largo encontraram D. Josefa Dias, que se precipitava para a igreja, sôfrega da missa, com o
mantelete descaído sobre o ombro e uma pluma do chapéu a despregar-se. Tinha estado toda a manhã
num frenesi com a criada! Fora necessário fazer ela todos os preparos para o jantar... Ai, tinha medo que
nem a missinha lhe desse virtude, de nervosa que estava...
- Que temos lá o senhor pároco hoje... Vocês sabem que adoeceu a criada... Ah, já me esquecia,
o mano quer que tu lá vás jantar também, Amélia. Diz Que é para haverem duas damas e dois
cavalheiros...
Amélia riu de alegria.
- E tu vai depois buscá-la, S. Joaneira, à noitinha... Credo, vesti- me tanto à pressa, que até
parece que me está a cair o saiote!
Quando as Quatro senhoras entraram, a igreja estava já cheia. Era uma missa cantada ao
Santíssimo. E apesar de contrário ao rigor do ritual, por um costume diocesano (Que o bom Silvério,
muito estrito na liturgia, nunca cessava de reprovar) havia, estando presente a Eucaristia, música de
rabeca, violoncelo e flauta. O altar, muito ornado, com as relíquias expostas, destacava numa alvura
festiva; dossel, frontal, paramentos dos missas eram brancos, com relevos de ouro desmaiado; nos vasos
erguiam- se ramos piramidais de flores e folhagens brancas; os veludilhos decorativos, dispostos como
velários, punham dos dois lados do tabernáculo a brancura de duas vastas asas desdobradas, lembrando a
Pomba Espiritual; e os vinte castiçais erguiam a suas chamas amarelas em trono até ao sacrário aberto,
que mostrava de alto, engastada num rebrilhar de ouros vivos, a hóstia redonda e baça. Por toda a igreja
apinhada corria uma sussurração lenta; aqui e além um catarro expectorava, uma criança choramingava;
o ar adensava-se já dos hálitos juntos e de um cheiro de incenso; e do coro, onde as figuras dos músicos
se moviam por trás dos braços dos rabecões e das estantes, vinha a cada momento um afinar gemido de
rabeca, ou um pio de flautim. As quatro amigas tinham-se apenas acomodado junto ao altar-mor, quando
os dois acólitos, um teso como um pinheiro, o outro gordalhufo e enxovalhado, entraram do lado da
sacristia, sustentando alto e direito nas mãos os dois castiçais consagrados; atrás o Pimenta vesgo, com
uma sobrepeliz muito vasta para ele, lançando os seus sapatões em passadas pomposas, trazia o
incensador de prata; depois sucessivamente, durante o rumor do ajoelhar pela nave e do folhear dós
livrinhos, apareceram os dois diáconos; e enfim, paramentado de branco, de olhos baixos e mãos postas,
com aquele recolhimento humilde que pede o ritual e que exprime a mansidão de Jesus marchando ao
Calvário, entrou o padre Amaro - ainda vermelho da questão furiosa que tivera na sacristia, antes de se
revestir, por causa da lavagem das alvas.
E o coro imediatamente atacou o Intróito.
···
Amélia passou a sua missa embevecida, pasmada para o pároco - que era, como dizia o cônego,
"um grande artista para missas cantadas"; todo o cabido, todas as senhoras o reconheciam. Que dignidade,
que cavalheirismo nas saudações cerimoniosas aos diáconos! Como se prostrava bem diante do altar,
aniquilado e escravizado, sentindo-se cinza, sentindo-se pó diante de Deus, que assiste de perto, cercado
da sua corte e da sua família celeste! Mas era sobretudo admirável nas bênçãos; passava devagar as mãos
sobre o altar como para apanhar, recolher a graça que ali caía do Cristo presente, e atirava-a depois com
um gesto largo de caridade por toda a nave, por sobre o estendal de lenços brancos de cabeça, até ao
fundo onde os homens do campo muito apertados, de varapau na mão, pasmavam para a cintilação do
sacrário! Era então que Amélia o amava mais, pensando que aquelas mãos abençoadoras lhas apertava ela
core paixão por baixo da mesa do quino: aquela voz, com que ele lhe chamava filhinha, recitava agora as
orações inefáveis, e parecia-lhe melhor que o gemer das rabecas, revolvia-a mais que os graves do órgão!
Imaginava com orgulho que todas as senhoras decerto o admiravam também; mas só tinha ciúmes, um
ciúme de devota que sente os encantos do Céu, quando ele ficava diante do altar, na posição estática que
manda o ritual, tão imóvel como se a sua alma se tivesse remontado longe, para as alturas, para o Eterno
e para o Insensível. Preferia-o, por o sentir mais humano e mais acessível, quando, durante o Kyrie ou a
112
leitura da Epistola, ele se sentava com os diáconos no banco de damasco vermelho; ela queria então
atrair-lhe um olhar; mas o senhor pároco permanecia de olhos baixos, numa compostura modesta.
Amélia, sentada sobre os calcanhares, com a face banhada num sorriso, admirava-lhe o perfil, a
cabeça bem-feita, os paramentos dourados - e lembrava-se quando o vira a primeira vez descendo a
escada da Rua da Misericórdia, com o seu cigarro na mão. Que romance se passara desde essa noite!
Recordava o Morenal, o salto do valado, a cena da morte da titi, aquele beijo ao pé da lareira... Ai, como
acabaria tudo aquilo? Queria então rezar; folheava o livro, mas vinha-lhe à idéia o que o Libaninho
nessa manhã dissera: "O senhor pároco tinha uma pelezinha tão branca como um arcanjo..." Devia-a ter
decerto muito delicada, muito tenra... Um desejo intenso queimava-a: imaginava que era uma tentadora
visitação do demônio, - e para a repelir arregalava os olhos para o sacrário e para o trono que o padre
Amaro, cercado dos diáconos, incensava em semicírculos significando a Eternidade dos Louvores,
enquanto o coro berrava o Ofertório... Depois ele mesmo, de pé, no segundo degrau do altar, de mãos
postas, foi incensado; o Pimenta vesgo fazia ranger galhardamente as correntes de prata do turíbulo; um
perfume de incenso derramava-se, como uma anunciação celeste; enevoava-se o sacrário sob os rolos
alvos de fumo; e o pároco aparecia a Amélia transfigurado, quase divinizado!... Oh, adorava-o então!
A igreja tremia ao clamor do órgão em pleno; de bocas abertas, os coristas solfejavam a toda a força; em
cima, alçando-se entre os braços dos rabecões, o mestre da capela, no fogo da execução, brandia
desesperadamente a sua batuta feita dum rolo de cantochão.
···
Amélia saiu da igreja muito fatigada, muito pálida.
Ao jantar, em casa do cônego, a Sra. D. Josefa censurou-a repetidamente de "não dar palavra".
Não falava, mas debaixo da mesa o seu pezinho não cessava de roçar, pisar o do padre Amaro. Como
escurecera cedo tinham acendido as velas; o cônego abrira uma garrafa, não do seu famoso duque de
1815, mas do "1847", para acompanhar a travessa de aletria que enchia o centro da mesa, com as iniciais
do pároco desenhadas a canela; era, como explicara o cônego, "uma galantaria da mana ao convidado".
Amaro fizera logo uma saúde com o 1847 "à digna dona da casa". Ela resplandecia, medonha no seu
vestido de barege verde. O que sentia é que o jantar fosse tão mau... Que aquela Gertrudes estava-se a
fazer uma desleixada... Ia-lhe deixando esturrar o pato com macarrão!
- Oh, minha senhora, estava delicioso! protestou o pároco.
- São favores do senhor pároco. É porque eu lhe acudi a tempo... Mais uma colherzinha de
aletria, senhor pároco.
- Nada mais, minha senhora, tenho a minha conta.
- Então para desgastar, vá mais esse copito do 47, disse o cônego.
Ele mesmo bebeu pausadamente um bom gole, deu um ah de satisfação, e repoltreando-se:
- Boa gota! assim pode-se viver!
Estava já rubro, e parecia mais obeso, com o seu grosso jaquetão de flanela e o guardanapo atado
ao pescoço.
- Boa gota, repetiu, deste não provou hoje você nas galhetas.
- Credo, mano! exclamou D. Josefa com a boca cheia de fios de aletria, muito escandalizada da
irreverência.
O cônego encolheu os ombros com desprezo.
- O credo é para a missa! Esta pretensão de se meter sempre em questões que não percebe! Pois
fique sabendo que é duma grande importância a questão da qualidade do vinho, na missa. É que é
necessário que o vinho seja bom...
- Concorre para a dignidade do santo sacrifício, disse o pároco muito sério, fazendo uma carícia
de joelho a Amélia.
- E não é só isso, disse o cônego tomando logo o tom de pedagogo. É que o vinho, quando não é
bom ou tem ingredientes, deixa um depósito nas galhetas; e, se o sacristão não é cuidadoso e não as
limpa, as galhetas ganham um cheiro péssimo. E sabe a senhora o que acontece? Acontece que o
sacerdote, quando vai a beber o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, não está prevenido e faz-lhe uma
careta. Ora aí tem a senhora!
E deu um forte chupão ao cálice. Mas estava falador nessa noite, e depois de arrotar devagar,
interpelou de novo D. Josefa, assombrada de tanta ciência.
- E diga-me lá então a senhora, já que é tão doutora. O vinho, no divino sacrifício, deve ser
branco ou tinto?
D. Josefa parecia-lhe que devia ser tinto, para se parecer mais com o sangue de Nosso Senhor.
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- Emende a menina, mugiu o cônego de dedo em riste para Amélia.
Ela recusou-se, com um risinho. Como não era sacristão, não sabia...
- Emende o senhor pároco!
Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, então devia ser branco...
- E por quê?
Amaro ouvira dizer que era o costume em Roma.
- E por quê? continuava o cônego, pedante e roncão. Não sabia.
- Porque Nosso Senhor Jesus Cristo, quando pela primeira vez consagrou, fê-lo com vinho
branco. E a razão é muito simples: é porque na Judéia nesse tempo, como é notório, não se fabricava
vinho tinto... Repita- me a senhora a aletria, faça favor.
Então, a propósito do vinho e da limpeza das galhetas, o padre Amaro queixou-se do Bento sacristão.
Nessa manhã antes de se paramentar - justamente quando entrara o senhor cônego na sacristia -
acabava de lhe dar uma desanda a respeito das alvas. Em primeiro lugar dava-as a lavar a uma Antônia
que vivia amancebada com um carpinteiro, em grande escândalo, e que era indigna de tocar os
paramentos santos. Esta era a primeira. Depois, a mulher trazia-as tão enxovalhadas que era um
desacato usá-las no divino sacrifício...
- Ai, mande-mas a mim, senhor pároco, mande-mas a mim, acudiu D. Josefa. Dou-as à minha
lavadeira, que é pessoa de muita virtude e traz a roupa escarolada. Ai, até era uma honra para mim! Eu
mesmo as passava a ferro, e até se podia benzer o ferro...
Mas o cônego (que positivamente estava naquela noite duma loquacidade copiosa) interrompeua,
e voltando-se para o padre Amaro, fixando-o profundamente:
- Ora a propósito de eu entrar na sacristia, sempre lhe quero dizer, amigo e colega, que cometeu
hoje um erro de palmatória.
Amaro pareceu inquieto.
- Que erro, padre-mestre?
- Depois de se revestir, continuou o cônego pausadamente, já com os diáconos ao lado, quando
fez a cortesia à imagem da sacristia, em lugar de fazer a cortesia profunda, fez só a meia cortesia.
- Alto lá, padre-mestre! exclamou o padre Amaro. É o texto da rubrica. Facta reverentia cruci,
feita a reverência à cruz; isto é, a reverência simples, abaixar ligeiramente a cabeça...
E, para exemplificar, fez uma cortesia a D. Josefa que lhe sorriu toda, torcendo-se.
- Nego! exclamou formidavelmente o cônego que em sua casa, à sua mesa, punha de alto as suas
opiniões. E nego com os meus autores. Eles aí vão! - e deixou-lhe cair em cima, como penedos de
autoridade, os nomes venerados de Laboranti, Baldeschi, Merati, Turrino e Pavônio.
Amaro afastara a cadeira, pusera-se em atitude de controvérsia, contente de poder, diante de
Amélia, "enterrar" o cônego, mestre de teologia moral e um colosso de liturgia prática.
- Sustento, exclamou, sustento com Castaldus...
- Alto, ladrão, bramiu o cônego. Castaldus é meu!
- Castaldus é meu, padre-mestre!
E encarniçaram-se, puxando cada um para si o venerável Castaldus e a autoridade da sua
facúndia. D. Josefa pulava de gozo na cadeira, murmurando para Amélia com a cara franzida de riso:
- Ai, que gostinho vê-los! Ai, que santos!
Amaro continuava, com gesto alto:
- E além disso, tenho por mim o bom senso, padre-mestre. Primo, a rubrica, como expus.
Segundo, o sacerdote, tendo na sacristia o barrete na cabeça, não deve fazer cortesia inteira, porque lhe
pode cair o barrete e temos desacato maior. Tertio, seguir-se-ia um absurdo, porque então a cortesia antes
da missa à cruz da sacristia seria maior que a que se faz depois da missa à cruz do altar!
- Mas a cortesia à cruz do altar... bradou o cônego.
- É meia cortesia. Leia a rubrica: Caput inclinat. Leia Gavantus, leia Garriffaldi. E nem podia
deixar de ser assim! Sabe por quê? Porque depois da missa o sacerdote está no auge da dignidade, uma
vez que tem dentro em si o corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Logo, o ponto é meu!
E de pé, esfregou vivamente as mãos, triunfando.
O cônego abatera a papeira sobre as pregas do guardanapo, como um boi atordoado. E depois
dum momento:
- Você não deixa de ter razão... Eu fui para o ouvir... Faz-me honra cá o discípulo, acrescentou
piscando o olho a Amélia. Pois é beber, é beber! E depois salta o cafezinho bem quente, mana Josefa!
Mas um forte repique à campainha sobressaltou-os.
- É a S. Joaneira, disse D. Josefa.
A Gertrudes entrou com um xale e uma manta de lã:
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- Aqui está isto que vem de casa da menina Amélia. A senhora manda muitos recados, que não
pode vir, que se achou incomodada.
- Então com quem hei-de eu ir? disse logo Amélia, inquieta.
O cônego estendeu o braço sobre a mesa, e dando-lhe uma palmadinha na mão:
- Em último caso com este seu criado. E essa virtudezinha podia ir sossegada...
- Tem coisas, mano! gritou a velha.
- Deixa lá, mana. O que passa pela boca dum santo, santo fica.
O pároco aprovou ruidosamente:
- Tem muita razão o senhor cônego Dias! O que passa pela boca de um santo, santo fica! Para
que viva!
- À sua!
E tocaram os copos, com um olho gaiato, reconciliados da controvérsia.
Mas Amélia ficara assustada.
- Jesus, que terá a mamã? Que será?
- Ora que há-de ser? preguiça! disse-lhe o pároco, rindo.
- Não te agonies, filha, disse D. Josefa. Vou-te eu levar, vamos todos levar-te...
- Vai a menina em charola, rosnou o cônego descascando a sua pêra.
Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos em redor, e passando a mão pelo estômago:
- Pois olhem, disse, não me estou também a sentir bem...
- Que é? que é?
- Um ameaçozito da dor. Passou, não vale nada.
D. Josefa, já assustada, não queria que ele comesse a pêra. Que a última vez que lhe dera fora por
causa da fruta...
Mas ele, obstinado, cravou os dentes na pêra.
- Passou, passou, rosnava.
- Foi simpatia com a mamã, disse o pároco baixo a Amélia.
De repente o cônego afastou a cadeira, e torcendo-se de lado:
- Não estou bem, não estou bem! Jesus! Oh, diabo! Oh, caramba! Ai! ai! morro!
Alvoroçaram-se em volta dele. D. Josefa amparou-o pelo braço até o quarto, gritando à criada
que fosse buscar o doutor. Amélia correu á cozinha a aquecer uma flanela para lhe pôr no estômago. Mas
não aparecia flanela. Gertrudes topava contra as cadeiras, espavorida, à procura do seu xale para sair.
- Vá sem xale, sua estúpida! gritou-lhe Amaro.
A rapariga abalou. Dentro o cônego dava urros.
Amaro então, realmente assustado, entrou-lhe no quarto. D. Josefa de joelhos diante da cômoda
gemia orações a uma grande litografia de Nossa Senhora das Dores; e o pobre padre-mestre, estirado de
barriga sobre a cama, rilhava o travesseiro.
- Mas minha senhora, disse o pároco severamente, não se trata agora de rezar. É necessário fazerlhe
alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?
- Ai, senhor pároco, não há nada, não há nada, choramigou a velha. É uma dor que vem e vai
num momento. Não dá tempo pra nada! Um chá de tília alivia-o às vezes... Mas por desgraça hoje nem
tília tenho! Ai, Jesus!
Amaro correu a casa a buscar tília. E dai a pouco voltava esbaforido com a Dionísia, que vinha
oferecer a sua atividade e a sua experiência.
Mas o senhor cônego, felizmente, sentira-se de repente aliviado!
- Muito agradecida, senhor pároco, dizia D. Josefa. Rica tília! É de muita caridade. Ele agora
naturalmente cai em sonolência. Vem-lhe sempre depois da dor... Eu vou para ao pé dele, desculpemme...
Esta foi pior que as outras... São estas frutas mald... - reteve a blasfêmia, aterrada. - São as frutas de
Nosso Senhor. É a sua divina vontade... Desculpem- me, sim?
Amélia e o pároco ficaram sós na sala. Os seus olhares reluziram logo do desejo de se tocar, de
se beijar, mas as portas estavam abertas; e sentiam no quarto ao lado, as chinelas da velha. O padre
Amaro disse então alto:
- Pobre padre-mestre! É uma dor terrível.
- Dá-lhe todos os três meses, disse Amélia. A mamã já andava com o pressentimento. Ainda me
tinha dito antes de ontem: é o tempo da dor do senhor cônego, estou com mais cuidado...
O pároco suspirou, e baixinho:
- Eu é que não tenho quem pense nas minhas dores...
Amélia pousou nele longamente os seus belos olhos umedecidos de ternura.
As suas mãos iam apertar-se ardentemente por sobre a mesa; mas D. Josefa apareceu, encolhida
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no seu xale. O mano tinha adormecido. E ela estava que não se podia ter nas pernas. Ai, aqueles abalos
arrasavam-lhe a saúde! Acendera duas velas a S. Joaquim, e fizera uma promessa a Nossa Senhora da
Saúde. Era a segunda aquele ano, por causa da dor do mano. E Nossa Senhora não lhe tinha faltado...
- Nunca falta a quem a implora com fé, minha senhora, disse com unção o padre Amaro.
O alto relógio de armário bateu então cavamente oito horas. Amélia falou outra vez no cuidado
em que estava pela mamã... De mais a mais ia- se a fazer tão tarde...
- E é que quando eu sai estava a chuviscar, disse Amaro.
Amélia correu à janela, inquieta. O lajedo defronte, debaixo do candeeiro, reluzia muito
molhado. O céu estava tenebroso.
- Jesus, vamos ter uma noite de água!
D. Josefa estava aflita com o contratempo; mas a Amélia bem via, ela agora não podia despegar
de casa; a Gertrudes fora ao doutor; naturalmente não o encontrara; andava a procurá-lo de casa em casa,
quem sabe quando viria...
O pároco então lembrou que a Dionísia (que viera com ele e esperava na cozinha) podia ir
acompanhar a Sra. D. Amélia. Eram dois passos, não havia ninguém pelas ruas. Ele mesmo iria com elas
até à esquina da Praça... Mas deviam apressar-se que ia cair água!
D. Josefa foi logo buscar um guarda-chuva para Amélia. Recomendou-lhe muito que contasse à
mamã o que tinha sucedido. Mas que não se afligisse ela, que o mano estava melhor...
- E olha! gritou-lhe ainda de cima da escada. Diz-lhe que se fez tudo o que se pôde, mas que a
dor não deu tempo para nada!
- Sim, lá direi. Boa noite.
Ao abrirem a porta a chuva caía grossa. Amélia então quis esperar. Mas o pároco, apressado,
puxou-a pelo braço:
- Não vale nada, não vale nada!
Desceram a rua deserta, aconchegados debaixo do guarda-chuva, com a Dionísia ao lado, muito
calada, de xale pela cabeça. Todas as janelas estavam apagadas; no silêncio as goteiras cantavam de
enxurrão.
- Jesus, que noite! disse Amélia. Vai-se-me a perder o vestido.
Estavam então na Rua das Sousas.
- É que agora cai a cântaros, disse Amaro. Realmente parece-me que o melhor é entrar no pátio
de minha casa e esperar um bocado...
- Não, não! acudiu Amélia.
- Tolices! exclamou ele impaciente. Vai-se-lhe estragar o vestido... É um instante, é um
aguaceiro. Para aquele lado, vê, está a aliviar. Vai passar... É uma tolice... A mamã, se a visse aparecer
debaixo duma carga de água, zangava-se, e com razão!
- Não, não!
Mas Amaro parou, abriu rapidamente a porta, empurrando Amélia de levei
- É um instante, vai passar, entre...
E ali ficaram, calados, no pátio escuro, olhando as cordas de água que reluziam à luz do
candeeiro defronte. Amélia estava toda atarantada. A negrura do pátio e o silêncio assustavam-na; mas
parecia-lhe delicioso estar assim naquela escuridão, ao pé dele, ignorada de todos... Insensivelmente
atraída, roçava-se-lhe pelo ombro; e recuava logo, inquieta de ouvir a sua respiração tão agitada, de o
sentir tão junto das saias. Percebia por trás, sem a ver, a escada que levava ao quarto dele; e tinha um
desejo imenso de lhe ir ver, acima, os seus móveis, os seus arranjos... A presença da Dionísia, encolhida
contra a porta e muito calada, embaraçava-a; todavia a cada momento voltava os olhos para ela, receando
que desaparecesse, se sumisse na negrura do pátio ou da noite...
Amaro então começou a bater com os pés no chão, a esfregar as mãos, arrepiado.
- Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lajes estão regeladas. Realmente era melhor esperar
em cima na sala de jantar...
- Não, não! disse ela.
- Pieguices! Até a mamã se havia de zangar... Vá, Dionísia, acenda luz em cima.
A matrona imediatamente galgou os degraus.
Ele então, muito baixo, tomando o braço de Amélia:
- Por que não? Que pensas tu? É uma pieguice. É enquanto não passa o aguaceiro. Dize...
Ela não respondia, respirando muito forte. Amaro pousou-lhe a mão sobre o ombro, sobre o
peito, apertando-lho, acariciando a seda. Toda ela estremeceu. E foi-o enfim seguindo pela escada, como
tonta, com as orelhas a arder, tropeçando a cada degrau na roda do vestido.
- Entra para aí, é o quarto, disse-lhe ao ouvido.
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Correu à cozinha. Dionísia acendia a vela.
- Minha Dionísia, tu percebes... Eu fiquei de confessar aqui a menina Amélia. É um caso muito
sério... Volta daqui a meia hora. Toma! meteu-lhe três placas na mão.
A Dionísia descalçou os sapatos, desceu em pontas de pés e fechou- se na loja do carvão.
Ele voltou ao quarto com a luz. Amélia lá estava, imóvel, toda pálida. O pároco fechou a porta -
e foi para ela, calado, com os dentes cerrados, soprando como um touro.
···
Meia hora depois Dionísia tossiu na escada. Amélia desceu logo, muito embrulhada na manta: ao
abrirem a porta do pátio passavam na rua dois borrachos galrando: Amélia recuou rapidamente para o
escuro. Mas Dionísia daí a pouco espreitou; e vendo a rua deserta:
- Está a barra livre, minha rica menina...
Amélia embrulhou mais o rosto e apressaram o passo para a Rua da Misericórdia. Já não chovia;
havia estrelas; e uma frialdade seca anunciava o Norte e o bom tempo.
XVI
Ao outro dia Amaro, vendo no relógio que tinha à cabeceira que ia chegando a hora da missa,
saltou alegremente da cama. E, enfiando o velho paletó que lhe servia de robe-de-chambre, pensava nessa
outra manhã em Feirão em que acordara aterrado, por ter na véspera, pela primeira vez depois de padre,
pecado brutalmente sobre a palha da estrebaria da residência com a Joana Vaqueira. E não se atrevera a
dizer missa com aquele crime na alma, que o abafava com um peso de penedo. Considerara-se
contaminado, imundo, maduro para o inferno, segundo todos os santos padres e o seráfico concilio de
Trento. Três vezes chegara à porta da igreja, três vezes recuara assombrado. Tinha a certeza de que, se
ousasse tocar na Eucaristia com aquelas mãos com que repanhara os saiotes da Vaqueira, a capela se
aluiria sobre ele, ou ficaria paralisado vendo erguer-se diante do sacrário, de espada alta, a figura rutilante
de S. Miguel Vingador! Montara a cavalo e trotara duas horas, pelos barreiros de D. João, para ir
à Gralheira confessar-se ao bom abade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos de inocência, de exagerações
piedosas e de terrores noviços! Agora tinha aberto os olhos em redor à realidade humana. Abades,
cônegos, cardeais e monsenhores não pecavam sobre a palha da estrebaria, não - era em alcovas cômodas,
com a ceia ao lado. E as igrejas não se aluíam, e S. Miguel Vingador não abandonava por tão pouco os
confortos do Céu!
Não era isso o que o inquietava - o que o inquietava era a Dionísia, que ele ouvia na cozinha,
arrumando e tossicando, sem se atrever a pedir- lhe água para a barba. Desagradava-lhe sentir aquela
matrona introduzida, instalada no seu segredo. Não duvidava decerto da sua discrição, era o seu ofício; e
algumas meias libras manteriam a sua fidelidade. Mas repugnava ao seu pudor de padre saber que aquela
velha concubina de autoridades civis e militares, que rolara a sua massa de gordura por todas as
torpezas seculares da cidade, conhecia as suas fragilidades, as concupiscências que lhe ardiam sob a
batina de pároco. Preferiria que fosse o Silvério ou Natário que o tivesse visto na véspera, todo inflamado:
era entre sacerdotes, ao menos!... E o que o incomodava era a idéia de ser observado por aqueles olhinhos
cínicos, que não se impressionavam nem com austeridade das batinas nem com a responsabilidade dos
uniformes, porque sabiam que por baixo estava igualmente a mesma miséria bestial da carne...
- Acabou-se, pensou, dou-lhe uma libra e imponho-a.
Nós de dedos bateram discretamente à porta do quarto.
- Entre! disse Amaro sentando-se logo, curvando-se vivamente sobre a mesa, como absorvido,
abismado nos seus papéis.
A Dionísia entrou, pousou o púcaro da água sobre o lavatório, tossiu, e falando sobre as costas
de Amaro:
- Ó senhor pároco, olhe que isto assim não tem jeito. Ontem iam vendo sair daqui a pequena. É
muito sério, menino... Para bem de todos é necessário segredo!
Não, não a podia impor! A mulher estabelecia-se, à força, na sua confidência. Aquelas palavras
mesmo, murmuradas com medo das paredes, revelando uma prudência de ofício, mostravam-lhe a
vantagem duma cumplicidade tão experiente.
Voltou-se na cadeira, muito vermelho.
- Iam vendo, hem?
117
- Iam vendo. Eram dois bêbedos... Mas podiam ser dois cavalheiros.
- É verdade.
- E na sua posição, senhor pároco, na posição da pequena!... Tudo se deve fazer pelo calado...
Nem os móveis do quarto devem saber! Em coisas que eu protejo, exijo tanta cautela como se se tratasse
da morte!
Amaro então decidiu-se bruscamente a aceitar a proteção da Dionísia.
Rebuscou num canto da gaveta, meteu-lhe meia libra na mão.
- Seja pelo amor de Deus, filho, murmurou ela.
- Bem; e agora, Dionísia, que lhe parece? perguntou ele, recostado na cadeira, esperando os
conselhos da matrona.
Ela disse, muito naturalmente, sem afetação de mistério ou de malícia:
- A mim parece-me que para ver a pequena não há como a casa do sineiro!
- A casa do sineiro?
Ela recordou-lhe, muito tranqüilamente, a excelente disposição do sítio?. Um dos quartos ao pé
da sacristia, como ele sabia, dava para um pátio onde se tinha feito um barracão no tempo das obras. Pois
bem, justamente do outro lado eram as traseiras da casa do sineiro... A porta , da cozinha do tio Esguelhas
abria para o pátio: era sair da sacristia, atravessá-lo, e o senhor pároco estava no ninho!
- E ela?
- Ela entra pela porta do sineiro, pela porta da rua que dá para o adro. Não passa viva alma, é um
ermo. E se alguém visse, nada mais natural, era a menina Amélia que ia dar um recado ao sineiro... Isto,
já se vê, é ainda pelo alto, que o plano pode-se aperfeiçoar...
- Sim, compreendo, é um esboço, disse Amaro que passeava pelo quarto refletindo.
- Eu conheço bem o sítio, senhor pároco, e creia o que lhe digo: para um senhor eclesiástico que
tem o seu arranjinho, não há melhor que a casa do sineiro!
Amaro parou diante dela, rindo, familiarizando-se:
- Ó tia Dionísia, diga lá com franqueza: não é a primeira vez que você aconselha a casa do
sineiro, hem?
Ela então negou, muito decisivamente. Era homem que nem conhecia, o tio Esguelhas! Mas
tinha-lhe vindo aquela idéia de noite, a malucar na cama. Pela manhã cedo fora examinar o sítio, e
reconhecera que estava a calhar.
Tossicou, foi-se aproximando sem ruído da porta: e voltando-se ainda, com um último conselho:
- Tudo está em que vossa senhoria se entenda bem com o sineiro.
···
Era isso agora o que preocupava o padre Amaro.
O tio Esguelhas passava na Sé, entre os serventes e os sacristães, por um macambúzio. Tinha
uma perna cortada e usava muleta: e alguns sacerdotes, que desejariam o emprego para os seus
protegidos, sustentavam mesmo que aquele defeito o tornava, segundo a Regra, impróprio para o
serviço da Igreja. Mas o antigo pároco José Miguéis, em obediência ao senhor bispo, conservara-o na Sé,
argumentando que o trambolhão desastroso que motivara a amputação fora na torre, numa ocasião de
festa, colaborando no culto: ergo estava claramente indicada a intenção de Nosso Senhor em não
prescindir do tio Esguelhas. E quando Amaro tomara conta da paróquia, o coxo valera-se da influência da
S. Joaneira e de Amélia para conservar, como ele dizia, a corda do sino. Era além disso (e fora a
opinião da Rua da Misericórdia) uma obra de caridade. O tio Esguelhas, viúvo, tinha uma filha de quinze
anos paralítica, desde pequena, das pernas. "O diabo embirrou com as pernas da família", costumava dizer
o tio Esguelhas. Era decerto esta desgraça que lhe dava uma tristeza taciturna. Contava-se que a rapariga
(cujo nome era Antônia, e que o pai chamava Totó) o torturava com perrices, frenesis, caprichos
abomináveis. O doutor Gouveia declarara-a histérica: mas era uma certeza, para as pessoas de
bons princípios, que a Totó estava possuída do Demônio. Houvera mesmo o plano de a exorcismar; o
senhor vigário-geral, porém, sempre assustado com a imprensa, hesitara em conceder a permissão ritual, e
tinham-lhe feito apenas, sem resultado, as aspersões simples de água benta. De resto não se sabia a
natureza do endemoninhamento da paralítica: a Sra. D. Maria da Assunção ouvira dizer que consistia em
uivar como um lobo; a Gansosinho, em outra versão, assegurava que a desgraçada se dilacerava com
as unhas... O tio Esguelhas, esse, quando lhe perguntavam pela rapariga, respondia secamente:
- Lá está.
Os intervalos do seu serviço da igreja passava-os todos com a filha no casebre. Só atravessava o
largo para ir à botica por algum remédio, ou comprar bolos à confeitaria da Teresa. Todo o dia aquele
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recanto da Sé, o pátio, o barracão, o alto muro ao lado coberto de parietárias, a casa ao fundo com a sua
janela de portada negra numa parede lazeirenta, permaneciam num silêncio, numa sombra úmida: e os
meninos do coro, que às vezes se arriscavam a ir pé ante pé, pelo pátio, espreitar o tio Esguelhas, viam-no
invariavelmente curvado à lareira, com o cachimbo na mão, cuspilhando tristemente para as cinzas.
Costumava todos os dias respeitosamente ouvir a missa do senhor pároco. E Amaro, nessa
manhã, ao revestir-se, sentindo-lhe nas lájeas do pátio a muleta, ia já ruminando a sua história - porque
não podia pedir ao tio Esguelhas o uso do seu casebre sem explicar, de algum modo, que o desejava para
um serviço religioso... E que serviço, a não ser preparar, em segredo e longe das oposições mundanas,
alguma alma terna para o convento e para a santidade?
Ao vê-lo entrar na sacristia, deu-lhe logo um "bons-dias" amáveis. Achou-lhe uma bela cara de
saúde! Também não admirava - porque, segundo todos os santos padres, a freqüentação dos sinos, pela
virtude particular que lhes comunica a consagração, dá uma alegria e um bem-estar especiais. Contou
então com bonomia ao tio Esguelhas e aos dois sacristães que, quando era pequeno, em casa da Sra.
marquesa de Alegros, o seu grande desejo era ser um dia sineiro...
Riram muito, extasiando-se com a pilhéria de sua senhoria.
- Não se riam, é verdade. E não me ficava mal... Noutros tempos eram clérigos de ordens
menores que tocavam os sinos. Os nossos padres consideravam-nos um dos meios mais eficazes da
piedade. Lá disse a glosa, pondo o verso na boca do sino:
Laudo deum, populum voco, congrego clerum,
Defunctum ploro, pestem fugo, festa decoro...
O que quer dizer, como sabem: Louvo a Deus, chamo o povo, congrego o clero, choro os
mortos, afugento as pestes, alegro as festas.
Citava a glosa com respeito, já revestido de amito e alva, no meio da sacristia; e o tio Esguelhas
empertigava-se sobre a sua muleta àquelas palavras que lhe davam uma autoridade e uma importância
imprevista.
O sacristão tinha-se aproximado com a casula roxa. Mas Amaro não terminara a glorificação dos
sinos; - explicou ainda a sua grande virtude em dissipar as tempestades (apesar do que dizem alguns
sábios presunçosos), não só porque comunicam ao ar a unção que recebem da bênção, mas porque
dispersam os demônios que erram entre os vendavais e os trovões. O santo concílio de Milão recomenda
que se toquem os sinos sempre que haja tormenta...
- Em todo o caso, tio Esguelhas, acrescentou sorrindo com solicitude pelo sineiro, aconselho-lhe
que nesses casos é melhor não se arriscar. Sempre é estar no alto, e perto da trovoada... Vamos a isso, tio
Matias.
E recebeu sobre os ombros a casula, murmurando com muita compostura:
- Domine, qui dixisti jugum meum... Aperte mais os cordões por trás, tio Matias. Suave est, et
onus meum leve...
Fez uma cortesia à imagem e entrou na igreja, na atitude da rubrica, de olhos baixos e corpo
direito; enquanto o Matias, depois de ter também saudado com um raspão de pé o Cristo da sacristia, se
apressava com as galhetas, tossindo forte para clarear a garganta.
Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave, no Ofertório e ao Orate, fratres, o padre Amaro
dirigia-se sempre (por uma benevolência que o ritual permite) para o sineiro, como se o Sacrifício fosse
por sua intenção particular; - e o tio Esguelhas, com a sua muleta pousada ao lado, abismava-se então
numa devoção mais respeitosa. Mesmo ao Benedicat, depois de ter começado a bênção voltado para o
altar para recolher do Deus vivo o depósito da Misericórdia, terminou-a, virando-se devagar para o tio
Esguelhas especialmente, como para lhe dar a ele só as Graças e Dons de Nosso Senhor!
- E agora, tio Esguelhas, disse-lhe baixo ao entrar na sacristia, vá-me esperar ao pátio que temos
que conversar.
Não tardou a vir ter com ele, com uma face grave que impressionou o sineiro.
- Cubra-se, cubra-se, tio Esguelhas. Pois eu venho falar-lhe dum caso sério... Verdadeiramente
pedir-lhe um favor...
- Oh, senhor pároco!
Não, não era um favor... Porque, quando se tratava do serviço de Deus, todos tinham o dever de
concorrer na proporção das suas forças... Tratava-se duma menina que se queria fazer freira. Enfim, para
lhe provar a confiança que tinha nele, ia-lhe dizer o nome...
- É a Ameliazinha da S. Joaneira!
- Que me diz, senhor pároco?!
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- Uma vocação, tio Esguelhas! Vê-se o dedo de Deus! É extraordinário...
Contou-lhe então uma história difusa que ia forjando laboriosamente, segundo as sensações que
imaginava ver na face pasmada do sineiro. A rapariga desgostara-se da vida, com as desavenças que
tivera com o noivo. Mas a mãe que estava velha, que a necessitava para o governo da casa, não queria
consentir, supondo que era uma veleidade... Mas não, era vocação... Ele sabia-o... Infelizmente, quando
havia oposição, a conduta do sacerdote era muito delicada... Todos os dias os jornais ímpios (e
infelizmente era a maioria!) gritavam contra as influências do clero... As autoridades, mais ímpias que os
jornais, punham obstáculos... Havia leis terríveis... Se soubessem que ele andava a instruir a menina para
professar, ferravam-no na cadeia! Que queria o tio Esguelhas?... Impiedade, ateísmo do tempo!
Ora, ele necessitava ter com a pequena muitas e muitas conferências: para a experimentar, para
conhecer as suas disposições, ver bem se é para a Solidão que ela tem jeito, ou para a Penitência, ou para
o serviço dos enfermos, ou para a Adoração Perpétua, ou para o Ensino... Enfim, estuda-la por dentro e
por fora.
- Mas onde? exclamou, abrindo os braços como na desolação de um santo dever contrariado.
Onde? Em casa da mãe não pode ser, já andam desconfiados. Na igreja impossível, era o mesmo que na
rua. Em minha casa, já vê, menina nova...
- Está claro.
- De modo que, tio Esguelhas... E estou certo que você mo há-de agradecer... pensei na sua
casa...
- Oh, senhor pároco, acudiu o sineiro, eu, a casa, os trastes, está tudo às ordens!
- Bem vê, é no interesse daquela alma, é um regozijo para Nosso Senhor...
- E para mim, senhor pároco, e para mim!
O que o tio Esguelhas receava é que a casa não fosse decente e não tivesse as comodidades...
- Oral fez o padre sorrindo, num renunciamento de todos os confortos humanos. Contanto que
haja duas cadeiras e uma mesa para pôr o livro da oração...
De resto, por outro lado, dizia o sineiro, lá como sítio retirado e casa sossegada estava a preceito.
Ficavam ali, ele e a menina, como os monges no deserto. Nos dias em que o senhor pároco viesse, ele saía
a dar o seu giro. Na cozinha não poderiam acomodar-se, porque o quartito da pobre Totó era ao pé... Mas
tinham o quarto dele, em cima.
O padre Amaro bateu com a mão na testa. Não se lembrara da paralítica!
- Isso estraga-nos o arranjinho, tio Esguelhas! exclamou.
Mas o sineiro tranqüilizou-o, vivamente. Estava agora todo interessado naquela conquista de
uma noiva para Nosso Senhor; queria por força que o seu telhado abrigasse a santa preparação da alma da
menina... Talvez lhe atraísse a ele a piedade de Deus! Mostrou com calor as vantagens, as facilidades da
casa. A Totó não embaraçava. Não se mexia da cama. O senhor pároco entrava pela cozinha do lado da
sacristia, a menina vinha pela porta da rua: subiam, fechavam-se no quarto...
- E ela que faz, a Totó? perguntou o padre Amaro, hesitando ainda.
Coitadita, para ali estava... Tinha manias: ora fazia bonecas e apaixonava-se por elas a ponto de
ter febre; outros dias passava-os num silêncio medonho com os olhos cravados na parede. Mas às vezes
estava alegre, palrava, chalaceava... Uma desgraça!
- Devia-se entreter, devia ler, disse o padre Amaro para mostrar interesse.
O sineiro suspirou. Não sabia ler, a pequena, nunca quisera aprender. Era o que ele lhe dizia - se
pudesses ler, já te não pesava tanto a vida! Mas então? Tinha horror a aplicar-se... O Sr. padre Amaro
devia ter a caridade de a persuadir, quando viesse a casa...
Mas o pároco não o escutava, todo abismado numa idéia que lhe alumiara a face dum sorriso.
Achara subitamente a explicação natural a dar à S. Joaneira e às amigas das visitas de Amélia a casa do
sineiro: era a ensinar a ler a paralítica! A educá-la! A abrir-lhe a alma às belezas dos livros santos, da
história dos mártires e da oração!...
- Está decidido, tio Esguelhas, exclamou, esfregando as mãos de júbilo. É em sua casa que se háde
fazer da rapariga uma santa. E disto - e a sua voz deu um grave profundo - um segredo inviolável!
- Oh, senhor pároco! fez o sineiro, quase ofendido.
- Conto consigo! disse Amaro.
Veio logo à sacristia escrever um bilhete, que devia passar em segredo a Amélia, em que lhe
explicava detalhadamente o "arranjinho que fizera para gozarem novas e divinas felicidades". Prevenia-a
que o pretexto para ela vir todas as semanas a casa do sineiro devia ser a educação da paralítica: ele
mesmo o proporia à noite, em casa da mamã. "Que nisto, dizia, há alguma verdade, pois seria grato a
Deus que se alumiasse com uma boa instrução religiosa as trevas daquela alma. E matamos assim,
querido anjo, dois coelhos com uma só cacheirada!"
120
Depois, entrou em casa. Como se sentou regaladamente à mesa do almoço, com um
contentamento pleno de si, da vida e das doces facilidades que nela encontrava! Ciúmes, dúvidas, torturas
do desejo, solidão da carne, tudo o que o consumira meses e meses, além na Rua da Misericórdia e ali na
Rua das Sousas, passara. Estava enfim instalado à larga na felicidade! E recordava, abismado num gozo
mudo, com o garfo esquecido na mão, toda aquela meia hora da véspera, prazer por prazer,
ressaboreando-os mentalmente um a um, saturando-se da deliciosa certeza da posse - como o lavrador que
percorre a leira de terra adquirida que os seus olhos invejaram muitos anos. Ah, não tomaria a olhar de
lado, com azedume, os cavalheiros que passeavam na Alameda com as suas mulheres pelo braço!
Também ele agora tinha uma, toda sua, alma e carne, linda, que o adorava, que usava boas roupas
brancas, e trazia no peito um cheirinho de água-de-colônia! Era padre, é verdade... Mas para isso tinha o
seu grande argumento: é que o comportamento do padre, logo que não dê escândalo entre os fiéis, em
nada prejudica a eficácia, a utilidade, a grandeza da religião. Todos os teólogos ensinam que a ordem dos
sacerdotes foi instituída para administrar os sacramentos; o essencial é que os homens recebam a
santidade interior e sobrenatural que os sacramentos contêm; e contanto que eles sejam dispensados
segundo as fórmulas consagradas, que importa que o sacerdote seja santo ou pecador? O sacramento
comunica a mesma virtude. Não é pelos méritos do sacerdote que eles operam, mas pelos méritos de Jesus
Cristo. O que é batizado ou ungido, ou seja por mãos puras ou por mãos torpes, fica igualmente bem
lavado da mácula original, ou bem preparado para a vida eterna. Isto lê-se em todos os santos
padres, estabeleceu-o o seráfico concílio de Trento. Os fiéis nada perdem, na sua alma e na sua salvação,
com a indignidade do pároco. E se o pároco se arrepende à hora extrema, também se lhe não fecham as
portas do Céu. Logo em definitivo tudo acaba bem, e em paz geral... - E o padre Amaro, raciocinando
assim, sorvia com prazer o seu café.
A Dionísia, ao fim do almoço, veio saber, muito risonha, se o senhor pároco falara ao tio
Esguelhas...
- Falei por alto, disse ele ambiguamente. Não há nada decidido... Roma não se construiu num
dia.
- Ah! fez ela.
E recolheu-se à cozinha, pensando que o senhor pároco mentia como um herege. Também, não
se importava... Nunca gostara de arranjos com os senhores eclesiásticos; pagavam mal, e suspeitavam
sempre...
E mesmo ouvindo Amaro que saía, correu à escada, a dizer-lhe - que enfim, ela tinha a olhar pela
sua casa, e quando o senhor pároco tivesse arranjado criada. ..
- A Sra. D. Josefa Dias anda-me a tratar disso, Dionísia. Espero ter alguém amanhã. Mas você
apareça... Agora que somos amigos...
- Quando o senhor pároco quiser é chamar-me da janela para o quintal, disse ela do alto da
escada. Para tudo o que precisar. De tudo sei um bocadinho; até de desarranjos e de partos... E neste
ponto posso até dizer...
Mas o padre não a escutava: atirara com a porta de repelão, fugindo, indignado daquela utilidade
torpe assim brutalmente oferecida.
···
Foi dai a dias que ele falou em casa da S. Joaneira da filha do sineiro.
Na véspera dera o bilhete a Amélia; e nessa noite, enquanto na sala se galrava alto, aproximarase
do piano, onde Amélia, com os dedos preguiçosos, corria escalas, e abaixando-se para acender o
cigarro à vela, murmurara.
- Leu?
- Ótimo!
Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde a Gansoso estava contando uma catástrofe que
lera num jornal, sucedida em Inglaterra: uma mina de carvão que desabara, sepultando cento e vinte
trabalhadores. As velhas arrepiavam-se horrorizadas. A Gansoso então, gozando o efeito, acumulou
loquazmente os detalhes: a gente que estava fora esforçara-se por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes
embaixo gemidos e os ais; era ao lusco-fusco; havia uma tormenta de neve...
- Desagradável! rosnou o cônego, aconchegando-se na sua poltrona, gozando o calor da sala e a
segurança dos tetos.
A Sra. D. Maria da Assunção declarou que todas essas minas, essas máquinas estrangeiras lhe
causavam medo. Vira uma fábrica ao pé de Alcobaça, e parecera-lhe uma imagem do inferno. Estava
certa que Nosso Senhor não as via com bons olhos...
121
- É como os caminhos de ferro, disse D. Josefa. Tenho a certeza que foram inspirados pelo
demônio! Não o digo a rir. Mas vejam aqueles uivos, aquele fogaracho, aquele fragor! Ai, arrepia!
O padre Amaro galhofou, - assegurando à Sra. D. Josefa que eram ricamente cômodos para andar
depressa! Mas, tomando-se logo sério, acrescentou:
- Em todo o caso é incontestável que há nessas invenções da ciência moderna muito do demônio.
E é por isso que a nossa santa Igreja as abençoa, primeiro com orações e depois com água benta. Hão-de
saber que é o costume. Com água benta, para lhes fazer o exorcismo, expulsar o espírito inimigo: e com
orações para as resgatar do pecado original que não só existe no homem, mas nas coisas que ele constrói.
É por isso que se benzem e se purificam as locomotivas... Para que o demônio não se possa servir delas
para seu uso.
D. Maria da Assunção quis imediatamente uma explicação. Como em a maneira usual do
Inimigo se servir dos caminhos de ferro?
O padre Amaro esclareceu-a, com bondade. O Inimigo tinha muitas maneiras, mas a habitual era
esta: fazia descarrilar um trem de modo que morressem passageiros, e como essas almas não estavam
preparadas pela Extrema-Unção, o demônio ali mesmo, zás, apoderava-se delas!
- É de velhaco! rosnou o cônego com uma admiração secreta por aquela manha tão hábil do
Inimigo.
Mas D. Maria da Assunção abanou-se langorosamente, com o rosto banhado num sorriso de
beatitude:
- Ai, filhas! dizia pausadamente para os lados, a nós é que não nos sucedia isso... Que não nos
pilhava desprevenidas!
Era verdade; e todas gozaram um momento aquela certeza deliciosa de estarem preparadas, de
poderem lograr a malícia do Tentador!
O padre Amaro então tossiu como para preparar as vias, e apoiando as duas mãos sobre a mesa,
num tom de prática:
- É necessário muita vigilância para conservar de longe o demônio. Ainda hoje eu estava a
pensar nisso (foi mesmo a minha meditação) a respeito de um caso bem triste que tenho lá ao pé da Sé...
É a filhita do sineiro.
As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe as palavras, numa curiosidade subitamente
excitada, esperando ouvir a história picante de alguma façanha de Satanás. E o pároco continuou com
uma voz a que o silêncio em redor dava solenidade:
- Ali está aquela rapariga, todo o santo dia, pregada na cama! Não sabe ler, não tem devoções
habituais, não tem o costume da meditação; é por conseqüência, para empregar a expressão de S.
Clemente - uma alma sem defesa. O que sucede? Que o demônio, que ronda constantemente e não perde
dentada, estabelece-se ali como em sua casa! Por isso, como me dizia hoje o pobre tio Esguelhas, são
frenesis, desesperos, furores sem razão... Enfim o pobre homem tem a vida estragada.
- E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou D. Maria da Assunção, indignada daquela
impudência de Satanás, instalando-se num corpo, num leito, que apenas a estreiteza do pátio separava dos
contrafortes da Sé.
Amaro acudiu:
- Tem a D. Maria razão. O escândalo é enorme. Mas então? Se a rapariga não sabe ler! Se não
sabe uma oração, se não tem quem a instrua, quem lhe leve a palavra de Deus, quem a fortifique, quem
lhe ensine o segredo de frustrar o Inimigo!...
Ergueu-se animado, deu alguns passos pela sala, de ombros vergados, numa mágoa de pastor a
quem uma força desproporcional arrebata uma ovelha amada. E, exaltado pelas suas palavras, sentia, com
efeito, uma piedade que o invadia, uma compaixão verdadeira por aquela pobre criatura, a quem a falta de
consolações devia tornar mais intensa a agonia da imobilidade...
As senhoras olhavam-se, magoadas com aquele caso triste de abandono de alma, - sobretudo
pela dor que ele parecia trazer ao senhor cônego.
A Sra. D. Maria da Assunção, que percorria em imaginação o abundante arsenal da devoção,
lembrara logo que se lhe pusessem alguns santos à cabeceira, como S. Vicente, Nossa Senhora das Sete
Chagas... Mas o silêncio das amigas exprimiu bem a insuficiência daquela galeria devota.
- As senhoras dir-me-ão, talvez, disse o padre Amaro sentando-se de novo, que se trata apenas da
filha do sineiro. Mas é uma alma! É uma alma como as nossas!
- Todos têm direito à graça do Senhor, disse o cônego gravemente, num sentimento de
imparcialidade, admitindo a igualdade das classes logo que não se tratava de bens materiais e apenas dos
confortos do Céu.
- Para Deus não há pobre nem rico, suspirou a S. Joaneira. Antes pobre, que dos pobres é o reino
122
do Céu.
- Não, antes rico, acudiu o cônego, estendendo a mão para deter aquela falsa interpretação da lei
divina. Que o Céu também é para os ricos. A senhora não compreende o preceito Beati pauperes,
benditos os pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não desejarem os bens
dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que têm; não aspirarem a participar das riquezas dos
outros, sob pena de não serem benditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que prega que os
trabalhadores e as classes baixas devem viver melhor do que vivem, vai de encontro à expressa vontade
da Igreja e de Nosso Senhor, e não merece senão chicote, como excomungados que são! Ouf!
E estirou-se, extenuado de ter falado tanto. O padre Amaro, esse, permanecia calado, com o
cotovelo sobre a mesa, esfregando devagar a testa. Ia lançar a sua idéia, como vinda de uma inspiração
divina, propor que fosse Amélia levar uma educação devota à triste paralítica... E hesitava
supersticiosamente diante do seu motivo todo carnal, todo de concupiscência. A filha do sineiro aparecialhe
agora, exageradamente, abismada numa treva de agonia. Sentia toda a caridade que haveria em
consolá-la, entretê-la, fazer-lhe os dias menos amargos... Esta ação redimiria decerto muitas culpas,
encantaria Deus, se fosse feita num puro espírito de fraternidade cristã! Vinha-lhe uma compaixão
sentimental de bom rapaz por aquele miserável corpo pregado numa cama sem nunca ver o sol nem
a rua... E ali estava embaraçado, naquela piedade que o invadia, sem se decidir, coçando a nuca,
arrependido quase de ter falado às senhoras da Totó... Mas D. Joaquina Gansoso tivera uma idéia:
- Ó Sr. padre Amaro, se se lhe mandasse aquele livro com pinturas de vidas dos santos? Eram
pinturas que edificavam. A mim tocavam-me a alma... Não és tu que o tens, Amélia?
- Não, disse ela, sem erguer os olhos da costura.
Amaro então olhou-a. Tinha-a quase esquecido. Estava agora do outro lado da mesa, abainhando
um esfregão: a risca muito fina desaparecia na abundância espessa do cabelo, onde a luz do candeeiro ao
lado punha um traço lustroso; as pestanas pareciam mais longas, mais negras sobre a pele da face, dum
trigueiro cálido, que uma tinta rosada aquecia; o vestido justo, que se franzia numa prega sobre o ombro,
elevava-se amplamente sobre a forma dos peitos, que ele via arfar no ritmo da respiração igual... Era
aquela a beleza que mais apetecia nela; imaginava-os duma cor de neve, redondos e cheios; tivera-a nos
braços, sim, mas vestida, e as suas mãos sôfregas tinham encontrado só a seda fria... Mas na casa do
sineiro seriam dele, sem obstáculo, sem vestido, à disposição dos seus lábios. Por Deus! e nada impedia
que ao mesmo tempo consolassem a alma da Totó! Não hesitou mais. E erguendo a voz, no meio do
palratório das velhas que discutiam agora a desaparição da Vida dos Santos:
- Não, minhas senhoras, não é com livros que se vale à rapariga. Sabem a idéia que me veio? Era
um de nós, o que estiver menos ocupado, levar-lhe a palavra de Deus e educar aquela alma! - E
acrescentou, sorrindo: - E a falar a verdade, a pessoa mais desocupada aqui de todos nós é a menina
Amélia...
Então foi uma surpresa! Pareceu a mesma vontade de Nosso Senhor vinda numa revelação. Os
olhos de todas acenderam-se numa excitação devota, à idéia daquela missão de caridade, que partia ali
delas, da Rua da Misericórdia... Extasiavam-se, no antegosto guloso dos elogios do senhor chantre e do
cabido! Cada uma dava o seu conselho, numa assiduidade de participar da santa obra, de partilharem as
recompensas que o Céu certamente prodigalizaria. D. Joaquina Gansoso declarou com calor que invejava
Amélia; e chocou-se muito vendo-a de repente rir.
- Imaginas que não o faria com a mesma devoção? Já estás com orgulho da boa ação... Olha que
assim não te aproveita!
Mas Amélia continuava tomada de um riso nervoso, deitada para as costas da cadeira,
sufocando-se para se conter.
Os olhinhos de D. Joaquina chamejavam.
- É indecente, é indecente! gritava.
Calmaram-na: Amélia teve de lhe jurar sob os Santos Evangelhos que fora uma idéia
extravagante que tivera, que era nervoso...
- Ai, disse D. Maria da Assunção, ela tem razão em se orgulhar. Que é uma honra para a casa!
Em se sabendo...
O pároco interrompeu com severidade:
- Mas não se deve saber, Sra. D. Maria da Assunção! De que serve, aos olhos do Senhor, uma
boa obra de que se tire alarde e vanglória?
D. Maria vergou os ombros, humilhando-se à repreensão. E Amaro, com gravidade:
- Isto não deve sair daqui. É entre Deus e nós. Queremos salvar uma alma, consolar uma
enferma, e não ter elogios nos periódicos. Pois não é assim, padre-mestre?
O cônego ergueu-se pesadamente:
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- Você esta noite tem falado com a língua de ouro de S. Crisóstomo. Eu estou edificado; e não se
me dava agora de ver aparecer as torradas.
Foi então, enquanto a Ruça não trazia o chá, que se decidiu que Amélia, todas as semanas, uma
ou duas vezes segundo fosse a sua devoção, iria em segredo, para que a ação fosse mais valiosa aos olhos
de Deus, passar uma hora à cabeceira da paralítica, ler-lhe a Vida dos Santos, ensinar-lhe rezas e insuflarlhe
a virtude.
- Enfim, resumiu a Sra. D. Maria da Assunção voltando-se para Amélia, não te digo senão uma
coisa: abichaste!
A Ruça entrou com o tabuleiro, no meio dos risos que provocara a "tolice de D. Maria", como
disse Amélia, que se fizera escarlate. - E foi assim que ela e o padre Amaro se puderam ver livremente,
para glória do Senhor e humilhação do Inimigo.
···
Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as suas visitas caridosas
à paralítica perfizessem ao fim do mês o número simbólico de sete, que devia corresponder, na idéia das
devotas, às Sete Lições de Maria. Na véspera o padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que deixava
a porta da rua apenas cerrada, depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a prática do
senhor pároco. Amélia nesses dias erguia-se cedo; tinha sempre alguma saia branca a engomar, algum
laçarote a compor; a mãe estranhava-lhe aqueles arrebiques, o desperdício de água-de-colônia de que ela
se inundava; mas Amélia explicava que "era para inspirar à Totó idéias de asseio e de frescura". E depois
de vestida sentava-se, esperando as onze horas, muito séria, respondendo distraidamente às conversas da
mãe, com uma cor nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relógio: enfim a velha matraca gemia
cavamente as onze horas, e ela, depois de uma olhadela ao espelho, saía, dando uma beijoca à mamã.
Ia sempre receosa, numa inquietação de ser espreitada. Todas as manhãs pedia a Nossa Senhora
da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola,
para lisonjear os gostos de Nosso Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O que a assustava era o
Largo da Sé, sobre o qual a Amparo da botica, costurando por trás da janela, exercia uma vigilância
incessante. Fazia-se então pequenina no seu mantelete, e abaixando o guarda-sol sobre o rosto, entrava
enfim na Sé, sempre com o pé direito.
Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida numa luz fosca, amedrontava-a; parecia-lhe sentir,
na taciturnidade dos santos e das cruzes, uma repreensão ao seu pecado; imaginava que os olhos de vidro
das imagens, as pupilas pintadas dos painéis se fixavam nela, com uma insistência cruel, e percebiam o
arfar que ao seu seio dava a esperança do prazer. Às vezes mesmo, atravessada duma superstição, para
dissipar o descontentamento dos santos, prometia dar-se nessa manhã toda à Totó, ocupar-se
caridosamente só dela, e não se deixar tocar sequer no vestido pelo Sr. padre Amaro. Mas se ao entrar na
casa do sineiro o não encontrava, ia logo, sem se deter ao pé da cama da Totó, postar-se à janela da
cozinha, vigiando a porta maciça da sacristia, de que ela conhecia uma por uma as chapas negras de ferro.
Ele aparecia, enfim. Era então nos começos de março; já tinham chegado as andorinhas; ouviamnas
chilrear, naquele silêncio melancólico, esvoaçando entre os contrafortes da Sé. Aqui e além, plantas
dos lugares úmidos cobriam os cantos de uma verdura escura. Amaro, às vezes muito galante, ia procurar
uma florzinha. Amélia impacientava-se, rufava na vidraça da cozinha. Ele apressava-se; ficavam um
momento à porta, apertando-se as mãos, com olhos brilhantes que se devoravam; e iam enfim ver a Totó -
e dar-lhe os bolos que o pároco lhe trazia no bolso da batina.
A cama da Totó era na alcova, ao lado da cozinha; o seu corpinho de tísica quase não fazia
saliência enterrado na cova da enxerga, sob os cobertores enxovalhados que ela se entretinha a esfiar.
Nesses dias tinha vestido um chambre branco, os cabelos reluziam-lhe de óleo; porque ultimamente,
desde as visitas de Amaro, viera-lhe "uma birra de parecer alguém", como dizia encantado o tio
Esguelhas, a ponto de se não querer separar dum espelho e dum pente que escondia debaixo do
travesseiro e obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa suja, as bonecas que agora desprezava.
Amélia sentava-se um instante aos pés do catre, perguntando-lhe se estudara o ABC, obrigando-a
a dizer aqui e além o nome duma letra. Depois queria que ela repetisse sem errar a oração que lhe andava
ensinando; - enquanto o padre, sem passar da porta, esperava, com as mãos no bolsos, enfastiado,
embaraçado com os olhos reluzentes da paralítica que o não deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe o
corpo com pasmo e com ardor, e que pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto trigueiro
tão chupado que se lhe via a saliência das maxilas. Não sentia agora nem compaixão nem caridade pela
Totó; detestava aquela demora; achava a rapariga selvagem e embirrenta. A Amélia também pesavam
aqueles momentos em que, para não escandalizar muito Nosso Senhor, se resignava a falar à paralítica. A
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Totó parecia odiá-la; respondia-lhe muito carrancuda; outras vezes persistia num silêncio rancoroso,
voltada para a parede; um dia despedaçara o alfabeto; e encolhia-se toda encruada se Amélia lhe queria
compor o xale sobre os ombros ou conchegar-lhe a roupa...
Enfim Amaro, impaciente, fazia um sinal a Amélia; ela punha logo diante da Totó o livro com
estampas da Vida dos Santos.
- Vá, ficas agora a ver as figuras... Olha, este é S. Mateus, esta Santa Virgínia... Adeus, eu vou lá
acima com o senhor pároco rezarmos para que Deus te dê saúde e te deixe ir passear... Não estragues o
livro, que é pecado.
E subiam a escada, enquanto a paralítica, estendendo o pescoço sofregamente, os seguia,
escutando o ranger dos degraus, com os olhos chamejantes que lágrimas de raiva enevoavam. O quarto,
em cima, era muito baixo, sem forro, com um teto de vigas negras sobre que assentavam as telhas. Ao
lado da cama pendia a candeia que pusera sobre a parede um penacho negro dó fumo. E Amaro ria
sempre dos preparativos que fizera o tio Esguelhas - a mesa ao canto com o Novo Testamento, uma
caneca de água, e duas cadeiras dispostas ao lado...
- É para a nossa conferência, para te ensinar os deveres de freira, dizia ele, galhofando.
- Ensina, então! murmurava ela, de braços abertos, pondo-se diante do padre, com um sorriso
cálido onde brilhava um branquinho dos dentes, num abandono que se oferecia.
Ele atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos cabelos; às vezes mordia-lhe a orelha; ela dava
um gritinho; e ficavam então muito quedos, escutando, com medo da paralítica embaixo. O pároco depois
fechava as portadas da janela e a porta muito perra que tinha de empurrar com o joelho. Amélia ia-se
despindo devagar; e com as saias caídas aos pés ficava um momento imóvel, como uma forma branca na
escuridão do quarto. Em redor o padre, preparando-se, respirava forte. Ela então persignava-se depressa, e
sempre ao subir para o leito dava um suspirozinho triste.
Amélia só podia demorar-se até ao meio-dia. O padre Amaro por isso pendurava o seu cebolão
no prego da candeia. Mas quando não ouviam as badaladas da torre, Amélia conhecia a hora pelo cantar
dum galo vizinho.
- Devo ir, filho, murmurava toda cansada.
- Deixa lá... Estás sempre com a pressa...
Ficavam ainda uns momentos calados, numa lassidão doce, muito chegados um ao outro. Pelas
vigas separadas do telhado mal junto viam aqui e além fendas de luz: ás vezes sentiam um gato, com as
suas passadas fofas, vadiar, fazendo bulir alguma telha solta; ou um pássaro, pousando, chilreava e
ouviam-lhe o frêmito das asas.
- Ai, são horas, dizia Amélia.
O padre queria detê-la; não se fartava de lhe beijar a orelhinha.
- Lambão! murmurava ela. Deixe-me!
Vestia-se à pressa no escuro do quarto; depois ia abrir a janela, vinha ainda abraçar o pescoço de
Amaro, que ficara estatelado sobre o leito; e ia enfim arrastar a mesa e as cadeiras, para a paralítica sentir
embaixo, saber que tinham acabado a conferência.
Amaro não findava ainda de a beijocar: ela então, para acabar, fugia- lhe, ia escancarar a porta
do quarto; o padre descia, atravessava em duas passadas a cozinha sem olhar para a Totó, e entrava na
sacristia.
Amélia, essa, antes de sair, vinha ver a paralítica, saber se gostara das estampas. Encontrava-a às
vezes com a cabeça debaixo dos cobertores, que entalava e prendia com as mãos para se esconder; outras
vezes, sentada na cama, examinava Amélia com olhos em que se acendia uma curiosidade viciosa;
chegava o rosto para ela, com as narinas dilatadas que pareciam cheirá-la; Amélia recuava, inquieta,
corando também; queixava-se então de ser tarde, recolhia a Vida dos Santos, - e saía,
amaldiçoando aquela criatura tão maliciosa na sua mudez.
···
Ao passar no largo, àquela hora, via sempre a Amparo à janela. Ultimamente mesmo julgara
prudente contar-lhe em segredo a sua caridade com a Totó. A Amparo, mal a via, chamava-a; e
debruçando-se toda na varanda:
- Então como vai a Totó?
- Lá vai.
- Já lê?
- Já soletra.
- E a oração a Nossa Senhora?
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- Já a diz.
- Ai, que devoção a tua, filha!
Amélia baixava os olhos, modesta. E o Carlos, que estava também no segredo, deixava o balcão
para vir à porta admirar Amélia.
- Vem da sua grande missão de caridade, hem? dizia, de olho arregalado, balanceando-se na
ponta das chinelas.
- Estive um bocado com a pequena, a entretê-la...
- Grandioso! murmurava o Carlos. Um apostolado! Pois vá, minha santa menina, recados à
mamã.
Voltava-se então para dentro, para o praticante:
- Veja o Sr. Augusto aquilo... Em lugar de passar o seu tempo, como as outras, em namoros, fazse
anjo da guarda! Passa a flor dos anos com uma entrevada! Veja o senhor se a filosofia, o materialismo,
e essas porcarias são capazes de inspirar ações deste jaez... Só a religião, meu caro senhor! Eu queria que
os Renans e essa cambada de filósofos vissem isto! Que eu, tenha o senhor em vista, admiro a filosofia,
mas quando ela, por assim dizer, vai de mãos dadas com a religião... Sou homem de ciência e admiro um
Newton, um Guizot... Mas (e grave o senhor estas palavras) se a filosofia se afasta da religião... (grave
bem estas palavras) dentro de dez anos, Sr. Augusto, está a filosofia enterrada!
E continuava a mexer-se pela farmácia a passos lentos, de mãos atrás das costas, ruminando o
fim da filosofia.
XVII
Foi aquele o período mais feliz da vida de Amaro.
"Ando na graça de Deus", pensava ele às vezes à noite, ao despir- se, quando por um hábito
eclesiástico, fazendo o exame dos seus dias, via que eles se seguiam fáceis, tão confortáveis, tão
regularmente gozados. Não houvera, nos últimos dois meses, nem atritos nem dificuldades no serviço da
paróquia; todo o mundo, como dizia o padre Saldanha, andava dum humor de santo. D. Josefa Dias
arranjara-lhe muito barata uma cozinheira excelente, e que se chamava Escolástica. Na Rua da
Misericórdia tinha a sua corte admiradora e devota; cada semana, uma ou duas vezes, vinha aquela hora
deliciosa e celeste na casa do tio Esguelhas; e para completar a harmonia até a estação ia tão linda, que já
no Morenal começavam a abrir as rosas.
Mas o que o encantava era que nem as velhas, nem os padres, ninguém da sacristia suspeitava os
seus rendez-vous com Amélia. Aquelas visitas à Totó tinham entrado nos costumes da casa; chamavamlhe
"as devoções da pequena"; e não a interrogavam com particularidades, pelo princípio beato que as
devoções são um segredo que se tem com Nosso Senhor. Só às vezes alguma das senhoras perguntava a
Amélia - como ia a doente; ela assegurava que estava muito mudada, que começava a abrir os olhos à lei
de Deus; então, muito discretamente, falavam de coisas diferentes. Havia apenas o plano vago de irem um
dia, mais tarde, quando a Totó soubesse bem o seu catecismo e pela eficácia da oração se tivesse tomado
boa, admirar em romaria a obra santa de Amélia e a humilhação do Inimigo.
Amélia mesmo, perante esta confiança tão larga na sua virtude, propusera um dia a Amaro, como
muito hábil - dizer às amigas que o senhor pároco às vezes vinha assistir à prática piedosa que ela fazia à
Totó...
- Assim, se alguém te surpreendesse a entrar para a casa do tio Esguelhas, já não havia suspeitas.
- Não me parece necessário, disse ele. Deus está conosco, filha, é claro. Não queiramos
intrometer-nos nos seus planos. Ele vê mais longe que nós...
Ela concordou logo - como em tudo que saía dos seus lábios. Desde a primeira manhã, na casa
do tio Esguelhas, ela abandonara-se-lhe absolutamente, toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento:
não havia na sua pele um cabelinho, não corria no seu cérebro uma idéia a mais pequenina, que não
pertencesse ao senhor pároco. Aquela possessão de todo o seu ser não a invadira gradualmente; fora
completa, no momento que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ela. Parecia que os beijos dele
lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era como uma dependência inerte da sua pessoa. E não lho
ocultava; gozava em se humilhar, oferecer-se sempre, sentir-se toda dele, toda escrava; queria que ele
pensasse por ela e vivesse por ela; descarregara-se nele, com satisfação, daquele fardo da
responsabilidade que sempre lhe pesara na vida; os seus juízos agora vinham-lhe formados do cérebro do
pároco, tão naturalmente como se saísse do coração dele o sangue que lhe corria nas veias. "O senhor
pároco queria ou o senhor pároco dizia" era para ela uma razão toda suficiente e toda poderosa. Vivia
com os olhos nele, numa obediência animal: tinha só a curvar- se quando ele falava, e quando vinha o
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momento a desapertar o vestido.
Amaro gozava prodigiosamente esta dominação; ela desforrava-o de todo um passado de
dependências - a casa do tio, o seminário, a sala branca do Sr. conde de Ribamar... A sua existência de
padre era uma curvatura humilde que lhe fatigava a alma; vivia da obediência ao senhor bispo, à câmara
eclesiástica, aos cânones, à Regra que nem lhe permitia ter uma vontade própria nas suas relações com o
sacristão. E agora, enfim, tinha ali aos seus pés aquele corpo, aquela alma, aquele ser vivo sobre quem
reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por profissão, louvando, adorando e incensando Deus, -
era ele também agora o Deus duma criatura que o temia e lhe dava uma devoção pontual. Para ela ao
menos, era belo, superior aos condes e aos duques, tão digno da mitra como os mais sábios. Ela mesma,
um dia, dissera-lhe, depois de ter estado um momento pensativa:
- Tu podias chegar a papa!
- Desta massa se fazem, respondeu ele com seriedade.
Ela acreditava-o - com um receio, todavia, que as altas dignidades o afastassem dela, o levassem
para longe de Leiria. Aquela paixão, em que estava abismada e que a saturava, tomara-a estúpida e obtusa
a tudo o que não respeitava ao senhor pároco ou ao seu amor. Amaro de resto não lhe consentia
interesses, curiosidades alheias à sua pessoa. Proibia-lhe até que lesse romances e poesias. Para que se
havia de fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? Um dia que ela falara, com algum
apetite, dum baile que iam dar os Vias-Claras, ofendeu-se como duma traição. Fez- lhe em casa do tio
Esguelhas acusações tremendas: era uma vaidosa, uma perdida, uma filha de Satanás!...
- Mas mato-te! Percebes? Mato-te! exclamou agarrando-lhe os pulsos, fulminando-a com o olhar
aceso.
Tinha um medo, que o pungia, de a ver subtrair-se ao seu império, perder-lhe a adoração muda e
absoluta. Pensava às vezes que ela se fatigaria, com o tempo, dum homem que não lhe satisfazia as
vaidades e os gostos de mulher, sempre metido na sua batina negra, com a cara rapada e a coroa aberta.
Imaginava que as gravatas de cores, os bigodes bem torcidos, um cavalo que trota, um uniforme de
lanceiros exercem sobre as mulheres uma fascinação decisiva. E se a ouvia falar de algum oficial do
destacamento, de algum cavalheiro da cidade, eram ciúmes desabridos...
- Gostas dele? Hem! É pelos trapos, pelo bigode?...
- Gosto dele! Oh, filho, eu nunca vi o homem!
Mas escusava de falar da criatura, então! Era ter curiosidade, pôr o pensamento noutro! Dessas
faltas de vigilância sobre a alma e a vontade é que se aproveitava o demônio!...
Viera assim a ter um ódio a todo o mundo secular - que a poderia atrair, arrastar para fora da
sombra da sua batina. Impedia-lhe, com pretextos complicados, toda a comunicação com a cidade.
Convenceu mesmo a mãe que a não deixasse ir só à Arcada e às lojas. E não cessava de lhe representar os
homens como monstros de impiedade, cobertos de pecados como duma crosta, estúpidos e falsos, votados
ao Inferno! Contava-lhe horrores de quase todos os rapazes de Leiria. Ela perguntava-lhe aterrada, mas
curiosa:
- Como sabes tu?
- Não te posso dizer, respondia com uma reticência, indicando que lhe fechava os lábios o
segredo da confissão.
E ao mesmo tempo martelava-lhe os ouvidos com a glorificação do sacerdócio. Desenrolava-lhe
com pompa a erudição dos seus antigos compêndios, fazendo-lhe o elogio das funções da superioridade
do padre. No Egito, grande nação da antigüidade, o homem só podia ser rei se era sacerdote! Na Pérsia,
na Etiópia, um simples padre tinha o privilégio de destronar os reis, dispor das coroas! Onde havia uma
autoridade igual à sua? Nem mesmo na corte do Céu. O padre era superior aos anjos e aos serafins -
porque a eles não fora dado como ao padre o poder maravilhoso de perdoar os pecados! Mesmo a Virgem
Maria, tinha ela um poder maior que ele, padre Amaro? Não: com todo o respeito devido à majestade
de Nossa Senhora, ele podia dizer com S. Bernardino de Sena: "O sacerdote excede-te, ó mãe amada!" -
porque, se a Virgem tinha encarnado Deus no seu castíssimo seio, fora só uma vez, e o padre, no santo
sacrifício da missa, encarnava Deus todos os dias! E isto não era argúcia dele, todos os santos padres o
admitiam...
- Hem, que te parece?
- Oh, filho! murmurava ela pasmada, desfalecida de voluptuosidade.
Então deslumbrava-se com citações venerandas: S. Clemente, que chamou ao padre "o Deus da
Terra"; o eloqüente S. Crisóstomo, que disse "que o padre é o embaixador que vem dar as ordens de
Deus". E Santo Ambrósio que escreveu: "Entre a dignidade do rei e a dignidade do padre há maior
diferença que a que existe entre o chumbo e o ouro!"
- E o ouro é cá o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te parece?
127
Ela atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes, como para tocar, possuir nele o "ouro de Santo
Ambrósio", o "embaixador de Deus", tudo o que na Terra havia mais alto e mais nobre, o ser que excede
em graça os arcanjos!
Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou mais que a influência da
sua, voz - que a faziam crer na promessa que ele lhe repetia sempre: que ser amada por um padre
chamaria sobre ela o interesse, a amizade de Deus; que depois de morta dois anjos viriam tomá-la pela
mão para a acompanhar e desfazer todas as dúvidas que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do Céu; e que na
sua sepultura, como sucedera em França a uma rapariga amada por um cura, nasceriam
espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que a virgindade não se estraga nos braços santos
dum padre...
Isto encantava-a. Àquela idéia da sua cova perfumada de rosas brancas, ficava toda pensativa,
num antegosto de felicidades místicas, com suspirinhos de gozo. Afirmava, fazendo beicinho, que queria
morrer.
Amaro galhofava.
- A falar da morte, com essas carnezinhas...
Engordara com efeito. Estava agora duma beleza ampla e toda igual. Perdera aquela expressão
inquieta que lhe punha nos lábios uma secura e lhe afilava o nariz. Nos seus beiços havia um vermelho
quente e úmido; o seu olhar tinha risos sob um fluido sereno; toda a sua pessoa uma aparência madura de
fecundidade. Fizera-se preguiçosa: em casa, a cada momento suspendia o seu trabalho, ficava a olhar
longamente com um sorriso mudo e fixo; e tudo parecia ficar adormecido um momento, a agulha, o
pano que ela costurava, toda a sua pessoa. Estava revendo o quarto do sineiro, o catre, o senhor pároco em
mangas de camisa.
Passava os seus dias esperando as oito horas, em que ele aparecia regularmente com o cônego.
Mas os serões agora pesavam-lhe. Ele recomendara-lhe muita reserva; ela exagerava-a, por um excesso
de obediência, a ponto de nunca se sentar ao pé dele ao chá, e de nem mesmo lhe oferecer bolos. Odiava
então a presença das velhas, a gralhada das vozes, as pachorras do quino; tudo lhe parecia intolerável no
mundo, exceto estar só com ele... Mas depois, em casa do sineiro, que desforra! Aquele rosto todo
alterado, aquelas sufocações de delírio, aqueles ais agonizantes, depois a imobilidade da morte,
assustavam às vezes o padre. Erguia-se no cotovelo, inquieto:
- Estás incomodada?
Ela abria os olhos espantados, como ressurgindo de muito longe; e era realmente bela, cruzando
os braços nus sobre o peito descoberto, dizendo lentamente com a cabeça que não...
XVIII
Uma circunstância inesperada veio estragar aquelas manhãs em casa do sineiro. Foi a
extravagância da Totó. Como disse o padre Amaro, "a rapariga saia-lhes um monstro"!
Tinha agora por Amélia uma aversão desabrida. Apenas ela se aproximava da cama, atirava a cabeça para
debaixo dos cobertores, torcendo- se com frenesi se lhe sentia a mão ou a voz. Amélia fugia,
impressionada com a idéia de que o diabo que habitava a Totó, recebendo o cheiro que ela trazia da igreja
nos vestidos, impregnados de incenso e salpicados de água benta, se espolinhava de terror dentro do
corpo da rapariga...
Amaro quis repreender a Totó, fazer-lhe sentir, em palavras tremendas, a sua ingratidão
demoníaca para com a menina Amélia que vinha entretê-la, ensiná-la a conversar com Nosso Senhor...
Mas a paralítica rompeu num choro histérico; depois, de repente, ficou imóvel, hirta, esbugalhando os
olhos em alvo, com uma escuma branca na boca. Foi um grande susto; inundaram-lhe a cama de água;
Amaro, por prudência, recitou os exorcismos... E Amélia desde então resolveu "deixar a fera em paz".
Não tentou mais ensinar-lhe o alfabeto, nem orações a Santa Ana.
Mas, por escrúpulo, iam sempre ao entrar vê-la um instante. Não passavam da porta da alcova,
perguntando-lhe de alto "como ia". Nunca respondia. E eles retiravam-se logo aterrados com aqueles
olhos selvagens e brilhantes, que os devoravam, indo de um a outro, percorrendo-lhes o corpo, fixando-se
com uma faiscação metálica nos vestidos de Amélia e na batina do padre, como para lhe adivinhar o que
estava por baixo, numa curiosidade ávida que lhe dilatava desesperadamente as narinas e lhe arreganhava
os beiços lívidos. Mas era a mudez, obstinada e rancorosa, que os incomodava sobretudo. Amaro, que não
acreditava muito em possessos e endemoninhados, via ali os sintomas de loucura furiosa. Os sustos de
Amélia aumentaram. - Felizmente que as pernas inertes cravavam a Totó ali na enxerga! Senão, Jesus, era
capaz de lhes entrar no quarto e mordê-los num acesso!
Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer da manhã, "depois daquele espetáculo"; e
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decidiu então, daí por diante, subir para o quarto sem falar à Totó.
Foi pior. Quando a via atravessar da porta da rua para a escada, a Totó debruçava-se para fora do
leito, agarrada às bordas da enxerga, num esforço ansioso para a seguir, para a ver, com a face toda
descomposta do desespero da sua imobilidade. E Amélia ao entrar no quarto sentia vir debaixo uma
risadinha seca, ou um ui! prolongado e uivado que a gelava...
Andava agora aterrada: viera-lhe a idéia que Deus estabelecera ali, ao lado do seu amor com o
pároco, um demônio implacável para a escarnecer e apupar. Amaro, querendo-a tranqüilizar, dizia-lhe que
o nosso santo padre Pio IX, ultimamente, declarara pecado crer em pessoas possessas...
- Mas para que há rezas, então, e exorcismos?
- Isso é da religião velha. Agora vai-se mudar tudo isso... Enfim a ciência é a ciência...
Ela pressentia que Amaro a enganava - e a Totó estragava a sua felicidade. Enfim Amaro achou
o meio de escaparem à "maldita rapariga": era entrarem ambos pela sacristia: tinham apenas a atravessar a
cozinha para subir a escada, e a posição da cama da Totó, na alcova, não lhe permitia vê-los, quando eles
cautelosamente passassem pé ante pé. Era fácil, de resto, porque à hora do rendez-vous, entre as onze e o
meio-dia, nos dias da semana, a sacristia estava deserta.
Mas sucedia que, quando eles entravam em pontas de pés e mordendo a respiração, os seus
passos, por mais sutis, faziam ranger os velhos degraus da escada. E então a voz da Totó saía da alcova,
uma voz rouca e áspera, berrando:
- Passa fora, cão! passa fora, cão!
Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a paralítica. Amélia tremia, toda branca.
E a criatura uivava de dentro:
- Lá vão os cães! lá vão os cães!
Eles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se por dentro. Mas aquela voz de um desolamento
lúgubre, que lhes parecia vir dos infernos, chegava-lhes ainda, perseguia-os:
- Estão a pegar-se os cães! Estão a pegar-se os cães!
Amélia caía sobre o catre, quase desmaiada de terror. Jurava não voltar àquela casa maldita...
- Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre furioso. Onde nos havemos de ver então? Queres
que nos deitemos nos bancos da sacristia?
- Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava Amélia, apertando as mãos.
- Nada! É doida... E o pobre tio Esguelhas tem tido um desgosto... Enfim, que queres que lhe
faça?
Ela não respondia. Mas em casa, quando se ia aproximando o dia do rendez-vous, começava a
tremer à idéia daquela voz que lhe atroava sempre nos ouvidos e que sentia em sonhos. E este terror ia-a
despertando lentamente do adormecimento de todo o ser, em que caíra nos braços do pároco. Interrogavase
agora: não andaria cometendo um pecado irremissível? As afirmações de Amaro, assegurando-lhe o
perdão do Senhor, já não a tranqüilizavam. Ela bem via, quando a Totó uivava, uma palidez cobrir o rosto
do pároco, como correr-lhe no corpo um calafrio do inferno entrevisto. E se Deus os desculpava - por que
deixava assim o demônio atirar- lhes, pela voz da paralítica, a injúria e o escárnio?
Ajoelhava então aos pés da cama, arremessava orações sem fim para Nossa Senhora das Dores,
pedindo-lhe que a alumiasse, que lhe dissesse o que era aquela perseguição da Totó, e se era sua intenção
divina mandar- lhe assim um aviso medonho. Mas Nossa Senhora não lhe respondia. Não a sentia como
outrora descer do Céu às suas orações, entrar-lhe na alma aquela tranqüilidade suave como uma onda de
leite que era uma visitação da Senhora. Ficava toda murcha, torcendo as mãos, abandonada da
graça. Prometia então não voltar a casa do sineiro; - mas quando o dia chegava, à idéia de Amaro, do
leito, daqueles beijos que lhe levavam a alma; daquele fogo que a penetrava, sentia-se toda fraca contra a
tentação; vestia-se, jurando que era a última vez; e ao toque das onze partia, com as orelhas a arder, o
coração tremendo da voz da Totó que ia ouvir, as entranhas abrasando-se no desejo do homem que a ia
atirar para cima da enxerga.
Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos santos.
Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se á autoridade sagrada da sua batina.
Ele então, vendo-a chegar tão pálida e tão transtornada, galhofava para a tranqüilizar. Não, era uma tolice,
se iam agora estragar o regalozinho daquelas manhãs, porque havia uma doida na casa! Prometera-lhe de
resto procurar outro sítio para se verem; e mesmo com o fim de a distrair, aproveitando a solidão da
sacristia, mostrava-lhe às vezes os paramentos, os cálices, as vestimentas, procurando interessá-la por um
frontal novo ou por uma antiga renda de sobrepeliz, provando-lhe, pela familiaridade com que tocava nas
relíquias, que era ainda o senhor pároco e não perdera o seu crédito no Céu.
Foi assim que uma manhã lhe fez ver uma capa de Nossa Senhora, que havia dias chegara de
presente duma devota rica de Ourém. Amélia admirou-a muito. Era de cetim azul, representando um
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firmamento, com estrelas bordadas, e um centro, de lavor rico, onde flamejava um coração de ouro
cercado de rosas de ouro. Amaro desdobrara-a, fazendo cintilar junto da janela os bordados espessos.
- Rica obra, hem? centos de mil-réis... Experimentamo-la ontem na imagem... Vai-lhe como um
brinco. Um bocadito comprida, talvez... - E olhando Amélia, numa comparação da sua alta estatura com a
figura atarracada da imagem da Senhora: - A ti é que te havia de ficar bem. Deixa ver...
Ela recuou:
- Não, credo, que pecado!
- Tolice! disse ele adiantando-se com a capa aberta, mostrando o forro de cetim branco, duma
alvura de nuvem matutina. Não esta benzida... É como se viesse da modista.
- Não, não, dizia ela frouxamente, com os olhos jà1uzidios de desejo. Ele então zangou-se.
Queria talvez saber melhor do que ele o que era pecado, não? Vinha agora a menina ensinar-lhe o respeito
que se deve aos vestuários dos santos?
- Ora não seja tola. Deixe ver.
Pôs-lha aos ombros, apertou-lhe sobre o peito o fecho de prata lavrada. E afastou-se para a
contemplar toda envolvida no manto, assustada e imóvel, com um sorriso cálido de gozo devoto.
- Oh filhinha, que linda que ficas!
Ela então, movendo-se com uma cautela solene, chegou-se ao espelho da sacristia - um antigo
espelho de reflexo esverdeado, com um caixilho negro de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz.
Mirou-se um momento, naquela seda azul-celeste que a envolvia toda, picada do brilho agudo das
estrelas, com uma magnificência sideral. Sentia-lhe o peso rico. A santidade que o manto adquirira no
contato com os ombros da imagem penetrava-a duma vo1uptuosidade beata. Um fluido mais doce que o
ar da terra envolvia-a, fazia-lhe passar no corpo a carícia do éter do Paraíso. Parecia-lhe ser uma santa no
andor, ou mais alto, no Céu...
Amaro babava-se para ela:
- Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhoras!
Ela deu uma olhadela viva ao espelho. Era, decerto, linda. Não tanto como Nossa Senhora... Mas
cora o seu rosto trigueiro, de lábios rubros, a1umiado por aquele rebrilho dos olhos negros, se estivesse
sobre o altar, com cantos ao órgão e um culto sussurrando em redor, faria palpitar bem forte o coração dos
fiéis...
Amaro então chegou-se por detrás dela, cruzou-lhe os braços sobre o seio, apertou-a toda - e
estendendo os lábios por sobre os dela, deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos de Amélia
cerravam-se, a cabeça inclinava-se-lhe para trás, pesada de desejo. Os beiços do padre não se
desprendiam, ávidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração dela apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com
um gemido desfaleceu sobre o ombro do padre, descorada e morta de gozo.
Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo as pálpebras como acordada de muito longe;
uma onda de sangue escaldou-lhe o rosto:
- Oh! Amaro, que horror, que pecado!...
- Tolice! disse ele.
Mas ela desprendia-se do manto, toda aflita:
- Tira-mo, tira-mo! gritava, como se a seda a queimasse.
Então Amaro fez-se muito sério. Realmente não se devia brincar com coisas sagradas...
- Mas não está benzida... Não tem dúvida...
Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no lençol branco, colocou-o no gavetão, sem uma
palavra. Amélia olhava-o petrificada; e só os seus lábios pálidos se moviam numa oração.
Quando ele lhe disse, enfim, que eram horas de irem a casa do sineiro - recuou, como diante do
demônio que a chamasse.
- Hoje não! exclamou, implorando-o.
Ele insistiu. Era levar realmente muito longe a pieguice... Ela bem sabia que não era pecado,
quando as coisas não estavam benzidas... Era ser muito pobre de espirito... Que demônio, só meia hora,
ou um quarto de hora!
Ela, sem responder, ia-se aproximando da porta.
- Então não queres?
Ela voltou-se, e com uns olhos suplicantes:
- Hoje não!
Amaro encolheu os ombros. E Amélia atravessou rapidamente a igreja, de cabeça baixa e olhos
nas lajes, como se passasse entre as ameaças cruzadas dos santos indignados.
···
130
No dia seguinte de manhã, a S. Joaneira, que estava na sala de jantar, sentindo o senhor cônego
subir soprando forte, veio encontrá-lo à escada e fechou-se com ele na saleta.
Queria contar-lhe a aflição que tivera de madrugada. A Amélia acordara de repente aos gritos, que Nossa
Senhora lhe estava a pousar o pé no pescoço! que sufocava! que a Totó a queimava por detrás! e que as
labaredas do Inferno subiam mais alto que as torres da Sé!... Enfim um horror!... Viera encontrá-la em
camisa a correr pelo quarto, como doida. Daí a pouco caíra para o lado com um ataque de nervos. Toda a
casa estivera em alvoroço... A pobre pequena lá estava de cama, e em toda a manhã apenas tocara numa
colher de caldo.
- Pesadelos, disse o cônego. Indigestão!
- Ai, senhor cônego, não! exclamou a S. Joaneira, que parecia acabrunhada, sentada diante dele
na borda duma cadeira. É outra coisa: são aquelas desgraçadas visitas à filha do sineiro!
E então desabafou, com a efusão labial de quem abre os diques a um descontentamento acumulado.
Nunca quisera dizer nada, porque enfim reconhecia que era uma grande obra de caridade. Mas, desde que
aquilo começara, a rapariga parecia transtornada. Ultimamente, então, andava de todo. Ora alegrias sem
razão, ora umas trombas de dar melancolia aos móveis. De noite sentia-a passear pela casa até tarde, abrir
as janelas... Às vezes tinha até medo de lhe ver o olhar tão esquisito: quando vinha de casa do sineiro era
sempre branca como a cal, a cair de fraqueza. Tinha de tomar logo um caldo... Enfim, dizia-se que a Totó
tinha o demônio no corpo. E o senhor chantre, o outro que tinha morrido (Deus lhe fale na alma),
costumava dizer que, neste mundo, as duas coisas que se pegavam mais às mulheres eram tísicas e
demônio no corpo. Parecia-lhe, pois, que não devia consentir que a pequena fosse a casa do sineiro, sem
estar certa que aquilo nem lhe prejudicava a saúde, nem lhe prejudicava a alma. Enfim, queria que uma
pessoa de juízo, de experiência, fosse examinar a Totó...
- Numa palavra, disse o cônego, que escutara de olhos cerrados aquela verbosidade repassada de
lamúria; o que a senhora quer é que eu vá ver a paralítica, e saber à justa o que se passa...
- Era um alívio para mim, riquinho!
Aquela palavra, que a S. Joaneira, na sua gravidade de matrona, reservava para a intimidade das
sestas, enterneceu o cônego. Fez uma carícia ao pescoço gordo da sua velhota, e prometeu com bondade
ir estudar o caso...
- Amanhã, que a Totó está só, lembrou logo a S. Joaneira.
Mas o cônego preferia que Amélia estivesse presente. Podia assim ver como as duas se davam,
se havia influência do espírito maligno...
- Que isto que eu faço é de agradecer... É por ser para quem é... Que bem me bastam os meus
achaques, sem me ocupar dos negócios de Satanás.
A S. Joaneira recompensou-o com uma beijoca sonora.
- Ah, sereias, sereias!... murmurou o cônego filosoficamente.
No fundo aquele encargo desagradava-lhe: era uma perturbação nos seus hábitos, toda uma
manhã desarranjada; ia decerto fatigar-se, tendo de exercitar a sua sagacidade; além disso odiava o
espetáculo de doenças e de todas as circunstâncias humanas relacionadas com a morte. Mas, enfim, fiel à
sua promessa, daí a dias, na manhã em que fora prevenido que Amélia ia à Totó, arrastou-se contrariado
para a botica do Carlos; e instalou- se, com um olho no Popular e outro na porta, à espera que a rapariga
atravessasse para a Sé. O amigo Carlos estava ausente; o Sr. Augusto ocupava os seus vagares sentado à
escrivaninha, de testa sobre o punho, relendo o seu Soares de Passos; fora, o sol já quente dos fins de abril
fazia rebrilhar o lajeado do largo; não passava ninguém; e só quebravam o silêncio as marteladas nas
obras do doutor Pereira. Amélia tardava. E o cônego, depois de ter considerado longo tempo, com o
Popular caído nos joelhos, o medonho sacrifício que fazia pela sua velhota, ia cerrando as pálpebras, já
tomado da quebreira, naquele repouso calado do meio-dia próximo - quando entrou na botica um
eclesiástico.
- Oh, abade Ferrão, você pela cidade! exclamou o cônego Dias despertando do seu quebranto.
- De fugida, colega, de fugida, disse o outro colocando cuidadosamente sobre uma cadeira dois
grossos volumes que trazia, amarrados num barbante.
Depois voltou-se e tirou, com respeito, o seu chapéu ao praticante.
Tinha o cabelo todo branco; devia passar já dos sessenta anos; mas era robusto, uma alegria
bailava sempre nos seus olhinhos vivos, e tinha dentes magníficos a que uma saúde de granito conservava
o esmalte; o que o desfigurava era um nariz enorme.
Informou-se logo com bondade se o amigo Dias estava ali de visita ou infelizmente por motivo de
doença.
- Não, estou aqui à espera. Uma embaixada de truz, amigo Ferrão!
131
- Ah, fez o velho discretamente. - E enquanto tirava com método duma carteira atulhada de
papéis a receita para o praticante, deu ao cônego notícias da freguesia. Era lá, nos Poiais, que o cônego
tinha a fazenda, a Ricoça. O abade Ferrão passara de manhã diante da casa e ficara surpreendido vendo
que lhe andavam a pintar a fachada. O amigo Dias tinha algumas idéias de ir lá passar o Verão?
Não, não tinha. Mas como trouxera obras dentro e a fachada estava uma vergonha, mandara-lhe
dar uma mão de ocre. Enfim, era necessário alguma aparência, sobretudo numa casa que estava à beira da
estrada, onde passava todos os dias o morgadelho dos Poiais, um parlapatão que imaginava que só ele
tinha um palacete decente em dez léguas á roda... Só para meter ferro, àquele ateu! Pois não lhe parecia,
amigo Ferrão?
O abade estava justamente lamentando consigo aquele sentimento de vaidade num sacerdote;
mas, por caridade cristã, para não contrariar o colega, apressou-se a dizer:
- Está claro, está claro. A limpeza é a alegria das coisas...
O cônego então, vendo passar no largo uma saia e um mantelete, foi à porta afirmar-se se era
Amélia. Não era. E voltando, retomado agora da sua preocupação, vendo que o praticante fora dentro ao
laboratório, disse ao ouvido do Ferrão:
- Uma embaixada da fortuna! Vou ver uma endemoniada!
- Ah, fez o abade, todo sério à idéia daquela responsabilidade.
- Quer você vir comigo, abade? É aqui perto...
O abade desculpou-se polidamente. Viera falar ao senhor vigário-geral, fora depois ao Silvério
para lhe pedir aqueles dois volumes, vinha ali aviar uma receita para um velho da freguesia, e tinha de
estar de volta aos Poiais ao toque das duas horas.
O cônego insistiu; era um instante, e o caso parecia curioso...
O abade então confessou ao caro colega que eram coisas que não gostava de examinar.
Aproximava-se sempre delas com um espírito rebelde à crença, com desconfianças e suspeitas que lhe
diminuíram a imparcialidade.
- Mas enfim há prodígios! disse o cônego. - Apesar das suas próprias dúvidas, não gostava
daquela hesitação do abade, a propósito dum fenômeno sobrenatural, em que ele, cônego Dias, estava
interessado. Repetiu com secura: - Tenho alguma experiência, e sei que há prodígios.
- Decerto, decerto há prodígios, disse o abade. Negar que Deus ou a Rainha do Céu possa
aparecer a uma criatura, é contra a doutrina da Igreja... Negar que o demônio possa habitar o corpo de um
homem, seria estabelecer um erro funesto... Aconteceu a Jó, sem ir mais longe, e à família de Sara. Está
claro, há prodígios. Mas que raríssimos que são, cônego Dias!
Calou-se um momento olhando o cônego, que tapava o nariz com rapé em silêncio - e continuou
mais baixo, com o olho brilhante e fino:
- E depois não tem o colega notado que é uma coisa que só sucede às mulheres? É só a elas, cuja
malícia é tão grande que o próprio Salomão não lhes pôde resistir, cujo temperamento é tão nervoso, tão
contraditório, que os médicos não as compreendem. É só a elas que sucedem prodígios!... O colega já
ouviu de ter aparecido a nossa Santa Virgem a um respeitável tabelião? Já ouviu dum digno juiz de direito
possuído do espírito maligno? Não. Isto faz refletir... E eu concluo que é malícia nelas, ilusão,
imaginação, doença, etc... Não lhe parece? A minha regra nesses casos é ver tudo isso de alto e com muita
indiferença.
Mas o cônego, que vigiava a porta, brandiu subitamente o guarda-sol, fazendo pari o largo:
- Pst, pst! Eh lá!
Era Amélia que passava. Parou logo, contrariada daquele encontro que a ia ainda retardar mais.
E já o senhor pároco devia estar desesperado...
- De modo que, disse o cônego à porta abrindo o seu guarda-sol, você, abade, em lhe cheirando a
prodígio...
- Suspeito logo escândalo.
O cônego contemplou-o um momento, com respeito:
- Você, Ferrão, é capaz de dar quinaus a Salomão em prudência!
- Oh, colega! oh, colega! exclamou o abade, ofendido com aquela injustiça feita à incomparável
sabedoria de Salomão.
- Ao próprio Salomão! afirmou ainda o cônego da rua.
Tinha preparado uma história hábil para justificar a sua visita à paralítica; mas durante a sua
conversação com o abade ela escapara-lhe, como tudo o que deixava um momento nos reservatórios da
memória; e foi sem transição que disse simplesmente a Amélia:
- Vamos lá, também quero ir ver essa Totó!
Amélia ficou petrificada. E o senhor pároco, naturalmente, já lá estava! Mas a sua madrinha
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Nossa Senhora das Dores, que ela invocou logo naquela aflição, não a deixou enleada no embaraço. - E o
cônego, que caminhava ao lado dela, ficou surpreendido ouvindo-lhe dizer com um risinho:
- Viva, hoje é o dia das visitas à Totó! O senhor pároco disse-me que também talvez hoje
aparecesse por lá... Talvez lá esteja até.
- Ah! O amigo pároco também? Está bom, está bom. Faremos uma consulta à Totó!
Amélia então, contente de sua malícia, tagarelou sobre a Totó. O senhor cônego ia ver... Era uma
criatura incompreensível... Ultimamente, ela não tinha querido contar em casa, mas a Totó tomara-lhe
birra... E dizia coisas, tinha um modo de falar de cães e de animais, de arrepiar!... Ai, era um encargo que
já lhe pesava... Que a rapariga não lhe escutava as lições, nem as orações, nem os conselhos... Era uma
fera!
- O cheiro é desagradável! rosnou o cônego, entrando.
Que queria! A rapariga era uma porca, não havia tê-la arranjado. O pai, esse, um desleixado
também...
- É aqui, senhor cônego, disse, abrindo a porta da alcova - que, agora, em obediência às ordens
do senhor pároco, o tio Esguelhas deixava sempre fechada.
Encontraram a Totó meio erguida sobre a cama, com a face acesa numa curiosidade, àquela voz
do cônego que não conhecia.
- Ora viva lá a Sra. Totó! disse ele da porta, sem se aproximar.
- Vá, cumprimenta o senhor cônego, disse Amélia, começando logo, com uma caridade
desacostumada, a compor a roupa da cama, a arrumar a alcova. Dize-lhe como estás... Não te faças
amuada!
Mas a Totó permaneceu tão muda como a imagem de S. Bento que tinha à cabeceira,
examinando muito aquele sacerdote tão gordo, tão grisalho, tão diferente do senhor pároco... E os seus
olhos, mais brilhantes todos os dias à medida que se lhe cavavam as faces, iam, como de costume, do
homem para Amélia, numa ansiedade de perceber por que o trazia ela ali, àquele velho obeso, e se ia
também subir com ele para o quarto.
Amélia agora tremia. Se o senhor pároco entrasse, e ali, diante do cônego, a Totó, tomada do seu
frenesi, rompesse aos gritos, tratando-os de cães!... Com o pretexto de dar uma arrumadela, foi à cozinha
vigiar o pátio. Faria um sinal da janela, apenas Amaro aparecesse.
E o cônego, só na alcova da Totó, preparando-se para começar as suas observações, ia perguntarlhe
quantas eram as pessoas da Santíssima Trindade, - quando ela, adiantando a face, lhe disse numa voz
sutil como um sopro:
- E o outro?
O cônego não compreendeu. Que falasse alto! Que era?
- O outro, o que vem com ela!
O cônego chegou-se, com a orelha dilatada de curiosidade:
- Que outro?
- O bonito. O que vai com ela para o quarto. O que a belisca...
Mas Amélia entrava; e a paralítica calou-se logo, repousada, com os olhos cerrados e respirando
regaladamente, como num alívio repentino de todo o seu sofrimento. O cônego, esse, imobilizado de
assombro, permanecia na mesma postura, dobrado sobre a cama como para auscultar a Totó. Ergueu-se
por fim, soprou como numa calma de agosto, sorveu de espaço uma pitada forte; e ficou com a caixa
aberta entre os dedos, os olhos muito vermelhos cravados na colcha da Totó.
- Então, senhor cônego, que lhe parece cá a minha doente? perguntou Amélia.
Ele respondeu, sem a olhar:
- Sim senhor, muito bem... Vai bem... É esquisita... Pois é andar, é andar... Adeus...
Saiu, resmungando que tinha negócios, - e voltou imediatamente à botica.
- Um copo de água! exclamou, caindo em cheio sobre a cadeira.
O Carlos, que voltara, apressou-se, oferecendo flor de laranja, perguntando se sua excelência
estava incomodado...
- Cansadote, disse.
Tomou o Popular de sobre a mesa, e ali ficou, sem se mexer, abismado nas colunas do periódico.
O Carlos tentou falar da política do pais, depois dos negócios de Espanha, depois dos perigos
revolucionários que ameaçavam a Sociedade, depois da deficiência da administração do concelho de que
era agora um adversário feroz... Debalde. Sua excelência grunhia apenas monossílabos soturnos. E o
Carlos, enfim, recolheu-se a um silêncio chocado, comparando, num desdém interior que lhe vincava de
sarcasmo os cantos dos beiços, a obtusidade soturna daquele sacerdote à palavra inspirada dum
Lacordaire e dum Malhão! Por isso o Materialismo em Leiria, em todo o Portugal, erguia a sua cabeça de
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hidra...
Batia uma hora na torre quando o cônego, que vigiava a Praça pelo canto do olho, vendo passar
Amélia, arremessou o jornal, saiu da botica sem dizer uma palavra e estugou o seu passo de obeso para a
casa do tio Esguelhas. A Totó estremeceu de medo ao ver de novo aquela figura bojuda aparecer à porta
da alcova. Mas o cônego riu-se para ela, chamou-lhe Totozinha, prometeu-lhe um pinto para bolos; e
mesmo sentou-se aos pés da cama com um ah! regalado, dizendo:
- Ora vamos nós agora conversar, amiguinha... Esta é que é a pernita doente, hem? Coitadita!
Deixa que te hás-de curar... Hei-de pedir a Deus... Fica por minha conta.
Ela fazia-se ora toda branca ora toda vermelha, olhando aqui e além, inquieta, na perturbação
que lhe dava aquele homem a sós com ela tão perto que lhe sentia o hálito forte.
- Então, ouve cá, disse ele chegando-se mais para ela, fazendo ranger o catre com o seu peso.
Ouve cá, quem é o outro? Quem é que vem com a Amélia?
Ela respondeu logo, atirando as palavras dum fôlego:
- É o bonito, é o magro, vêm ambos, sobem para o quarto, fecham- se por dentro; são como cães!
Os olhos do cônego injetaram-se para fora das órbitas:
- Mas quem é ele, como se chama? O teu pai que te disse?
- É o outro, é o pároco, o Amaro! fez ela impaciente.
- E vão para o quarto, hem? Lá para cima? E tu que ouves, tu que ouves? Diz tudo, pequena, diz
tudo!
A paralítica então contou, com um furor que dava tons sibilantes à sua voz de tísica, - como
ambos entravam, e a vinham ver, e se roçavam um pelo outro, e abalavam para o quarto em cima, e
estavam lá uma hora fechados...
Mas o cônego, com uma curiosidade lúbrica que lhe punha uma chama nos olhos mortiços,
queria saber os detalhes torpes:
- E ouve lá, Totozinha, tu que ouves? Ouves ranger a cama?
Ela respondeu com a cabeça afirmativamente, toda pálida, os dentes cerrados.
- E olha, Totozinha, já os viste beijarem-se, abraçarem-se? Anda, diz, que te dou dois pintos.
Ela não descerrava os lábios; e a sua face transtornada parecia ao cônego selvagem.
- Tu embirras com ela, não é verdade?
Ela fez que sim numa afirmação feroz de cabeça.
- E viste-os beliscarem-se?
- São como cães! soltou ela por entre os dentes.
O cônego então endireitou-se; bufou outra vez com o seu grande sopro de encalmado, e coçou
vivamente a coroa.
- Bem, disse, erguendo-se. Adeus, pequena... Agasalha-te. Não te constipes...
Saiu; e ao fechar com força a porta exclamou alto:
- Isto é a infâmia das infâmias! Eu mato-o! eu perco-me!
Esteve um momento considerando, e partiu para a Rua das Sousas, de guarda-sol em riste,
apressando a sua obesidade, com a face apoplética de furor. No Largo da Sé, porém, parou a refletir
ainda; e rodando sobre os tacões, entrou na igreja. Ia tão levado que, esquecendo um hábito de quarenta
anos, não dobrou o joelho ao Santíssimo. E arremessou-se para a sacristia - justamente quando o padre
Amaro saía, calçando cuidadosamente as luvas pretas que usava agora sempre para agradar à
Ameliazinha.
O aspecto descomposto do cônego assombrou-o.
- Que é isso, padre-mestre?
- O que é, exclamou o cônego de golpe, é a maroteira das maroteiras! É a sua infâmia! é a sua
infâmia!...
E emudeceu, sufocado de cólera.
Amaro, que se fizera muito pálido, balbuciou:
- Que está você a dizer, padre-mestre?
O cônego tomara fôlego:
- Não há padre-mestre! O senhor desencaminhou a rapariga! Isso é que é uma canalhice mestra!
O padre Amaro, então, franziu a testa como descontente dum gracejo:
- Que rapariga!? O senhor está a brincar?
Sorriu mesmo, afetando segurança; e os seus beiços brancos tremiam.
- Homem, eu vi! berrou o cônego.
O pároco, subitamente aterrado, recuou:
- Viu?
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Imaginara, num relance, uma traição, o cônego escondido num recanto da casa do tio
Esguelhas...
- Não vi, mas é como se visse! - continuou o cônego num tom tremendo. - Sei tudo. Venha de lá.
Disse-mo a Totó. Fecham-se no quarto horas e horas! Até se ouve embaixo ranger a cama! É uma
ignomínia!
O pároco, vendo-se pilhado, teve, como um animal acossado e entalado a um canto, uma
resistência de desespero.
- Diga-me uma coisa. O que é que o senhor tem com isso?
O cônego pulou.
- O que tenho? o que tenho? Pois o senhor ainda me fala nesse tom? O que tenho é que vou daqui
imediatamente dar parte de tudo ao senhor vigário-geral!
O padre Amaro, lívido, foi para ele com o punho fechado:
- Ah, seu maroto!
- Que é lá? que é lá? exclamou o cônego de guarda-sol erguido. Você quer-me pôr as mãos?
O padre Amaro conteve-se; passou a mão sobre a testa em suor, com os olhos cerrados; e depois
de um momento, falando com uma serenidade forçada:
- Ouça lá, Sr. cônego Dias. Olhe que eu vi-o ao senhor uma vez na cama com a S. Joaneira...
- Mente! mugiu o cônego.
- Vi, vi, vi! afirmou o outro com furor. Uma noite ao entrar em casa... O senhor estava em
mangas de camisa, ela tinha-se erguido, estava a apertar o colete. Até o senhor perguntou: "Quem está
aí?". Vi, como estou a vê-lo agora. O senhor a dizer uma palavra, e eu a provar-lhe que o senhor vive há
dez anos amigado com a S. Joaneira( à face de todo o clero! Ora aí tem!
O cônego, já antes esfalfado dos excessos do seu furor, ficou agora, àquelas palavras, como um
boi atordoado. Só pôde dizer daí a pouco, muito murcho:
- Que traste você me sai!
O padre Amaro ent